12.30.2003

PASSEIO EXISTENCIAL



( Av. da Liberdade )



No fundo do amor está o amor.

À volta, no cimo, estão diversas coisas

Que às vezes nos entretêm: os nomes,

Principalmente, os nomes!

Somos todos iniciados na técnica de compreender

Que Outono é quando as folhas caem!





Podíamos passar por entre elas...

Ser-lhes a invocação imediata...

Enfim! Sermos díspares parcelas

Desse jogo infinito, a concordata...

...Um tratado! Caminhamos..., elas caem,

O sol vem recortante, capilar,

E os olhos descem e cerram, descem

Para dentro em busca do seu começar!



As pombas rodam, rodam as árvores,

Codificam-se os gestos e as cores

E faz imenso vento ruissussurrante

Mexendo as vestes, os cabelos

Os endereços, os remetentes, os selos

A imagética do corpo tonificante

E o chiar dos pneus, o tilintar eléctrico

A voz anunciante, o nome métrico.

Se nos liquidamos as pombas saem

Do quadro – é melhor deixá-las ficar

Como se fossem paz à volta do amor

Coisas, nomes principalmente, a rodar

A voar!...





Estamos num jardim: um qualquer!

Faz menção de sermos homem e mulher

( É que podíamos!... Deveras! ) Ou avenida!

Porque não sonhos?... O sonho também!

Um saco deles! Bagagem de mistério...

Um livro... Um quarto de aluguer...

Pessoas amorfas que vão e que vêm

E que arrastam consigo toda a vida,

E um odor a incesto e adultério...





E os olhos cerram, descem, descem...



E os olhos cerram, descem, descem...





Deixámos os lábios que sabem a amizade:

Deixámos as roupas que usam o desejo:

Deixámos o sangue que cozinha prazer:

Deixámos as mãos que esculpem carinho:

Deixámos a palavra que recita a verdade:

Deixámos a despedida que encontra o beijo:

Deixámos o sol que encanta o crescer:

Deixámos o vento que murmura caminho:

Mas os olhos cerram, descem, descem...



Mas os olhos cerram, descem, descem...



Mas os olhos cerram, descem, descem...





Há, então, um pestanejar: o sonho agita-se.

E os olhos cerrados, descidos, perguntam:

« Para onde vais? » - somos feitos assim!

E cada um pensa e contrai-se.

Fecha-se. Circula. E as respostas ecoam:

« À procura de mim » « À procura de mim »

« À procura de mim » « À procura de mim »

« À procura de mim » « À procura de mim »

12.18.2003

A próxima sessão da Comunidade será na segunda terça-feira de Janeiro e versará sobre "Filosofia", tanto na correspondente de escritores-filósofos como na de filófosos que também fizeram ficção ou poesia. Dar-se-ão mais notícias

12.10.2003

OFERENDA



Ler é compreender; e compreender é criar.

Albert Camus





Talvez que escrever um livro seja pouco!...

Quem sabe?! Mas lê-lo é muito mais

Se a cada momento de soletrar rouco

O leitor, o escritor e o homem se tornarem iguais.





Em si próprios, perto da aventura,

Rés da esperança, filhos de si mesmos;

Sem pais –

Numa orfandade que não perdura

Mais

Que o ínfimo momento em que nos esquecemos

Que somos fulanos tai$!...





Ou belos, ou feios, ou reais.

Ou assim, ou assado e frito,

Mas que a cada sentimento nos damos fiéis

Sem saber como nem porquê,

Como se fosse cada um que lê

Aquele que o tivera escrito!



(Nota: Este poema e muitos mais podem ser lidos e/ou copiados/impressos, na página www.gatomontez.no.sapo.pt que é igualmente um "sítio" dos nossos Leitores. Quem sabe se aí se encontrarão novas versões de histórias muito antigas!... Quem sabe?!)

Malta!
Durante a tarde de hoje, dia 10, passará continuamente no átrio da Biblioteca Municipal a versão DVD do THE PARIS CONCERT FOR AMNESTY INTERNATIONAL, como entrada ou aperitivo para a sessão da Comunidade de Leitores. Quem quiser aparecer, não se evite, e traga quantos entender por bem!... A Liberdade agradece!
Olá, amigo Castanho:

Como não posso estar presente no dia 10 na comunidade de leitores, junto envio uma cópia das páginas 22 e 23 de "Viver para Contá-la"de G. G. Márquez, numa tradução de Maria do C. Abreu e edição do Círculo de Leitores em 2003.
O autor narra neste primeiro capítulo desta obra auto-biográfica a sua viagem a Aracataca, sua terra natal, com a sua mãe que quer vender a casa de família. É, também, uma viagem a memoria, da infancia nessa casa, e, em geral, da historia da própria família, que apresenta diversas semelhanças com o romance "Cem Anos de Solidão".
Assim é o caso do massacre dos trabalhadores da companhia bananeira na praça central, que terá causado três mil mortos.
Fica, também, esta consideração para o dia da cidadania, de uma altura em que os direitos dos cidadaos, aparentemente, não existiam, nem mesmo o direito à vida e à dignidade do trabalho.
Abracos,

Joao Paulo

12.02.2003

Da lista de obras e autores para escolha de leitura em celebração do Dia Mundial da Cidadania, há algumas incorrecções "ortográficas" que não foram assinaladas e se devem sobretudo à escassez de tempo disponível para utilizar a net, no depositar de texto. Uma delas refere-se à autoria do título "Tecido de Outono", que não é de Batista Bastos mas de Alçada Batista. O seu a seu dono!
Outra é acerca da obra de Virginia Woolf, que se intitula "Um Quarto Que Meu" e não "Seu", como ali figurava.
Mas está também um sério hiato em relação aos títulos sugeridos, pois, na lista, não figura um dos maiores e melhores romances sobre a temática, e que é o de Richard Wright, intitulado "UM NEGRO QUE QUIS VIVER".
É, ou fica a ser a partir de agora, a obra que apresentarei como "Meu Livro / Meu Irmão", sub-tema definido para a sessão da CLP, a 10 de Dezembro próximo.
O objectivo da sessão é pôr na mesa o nosso livro sobre a temática e convencer os demais a lê-lo também. A cidadania não é apenas um tema, mas também uma forma de pensar literatura de intervenção social. Que cada um faça a sua opção e a participe é a ideia principal

11.27.2003

Ainda não foram escolhidas as obras para a próxima sessão da CLP embora já existam algumas preferências apontadas, cuja maioria assenta no Amada de Toni Morrison. Portanto seria justo que o pessoal se aprontasse com a opção, a fim de dar tempo para a leitura, o que se demonstra dia a dia cada vez mais difícil, visto que este livro é "seriamente" volumoso...
Mas há, no entanto, outra sugestão: que tal fazer uma sessão diferente? Em vez de se ler uma só obra, não se poderia, por exemplo, levar cada um de nós um livro que estivesse relacionado com a temática do Dia da Cidadania e que gostávamos de indicar como exemplar nesse sentido?... Houve, em tempos, uma espécie de encontros entre pessoas que se apresentavam através de um livro de que tivessem gostado sobremaneira... Pois bem, esta ideia, não seria a de nos apresentarmos uns aos outros, pois já nos conhecemos bem (ou quase), mas sim a de envolver a temática com a mais-valia da preferência de cada membro, apontando para a problemática em causa... Que tal? Vamos nessa? Se sim ou não, o importante é comunicá-lo. grokare@hotmail.com está ao vosso dispor. Ok?

11.18.2003

“Nunca mais me esqueceu a manhã virginal da Madeira, e as cores
que iam do cinzento ao doirado, do doirado ao azul-índigo – nem a montanha
entreaberta saindo do mar diante de mim, a escorrer azul e verde...”
Raul Brandão, in As Ilhas Desconhecidas

Se considerarmos o muito que se tem dito acerca da Pérola do Atlântico, das paisagens, praias, clima, produtos naturais e situação geográfica, já não é tão efusiva a literatura sobre as suas gentes. Ou por outra: não era. Porque agora, talvez estabelecendo uma equiparidade que faltava, Gabriel Raimundo, jornalista e escritor com créditos acumulados em diversos órgãos de comunicação social regional, autor a quem se devem algumas das mais interessantes páginas da nossa literatura de emigração, qual bússola inquieta sempre apontando para um Norte que é inclusive outro traço essencial para a caracterização da nossa nacionalidade, cujos títulos (Na Estranja – 1979; Gritos de Guerra – 1980; Natal Crítico – 1980; Construtores de Pontes, Usinas e Maisons – 1981; Rafael, o Montanhês – 1981; Vidas Desvitaminadas – 1982; Cantares de Amigo – 1982; A Batalha de Pedra – 1984; Tear de Tomates – 1984; A Diáspora em Letra Viva – 1988; Tarrafal, Meu Amor Verdeano! – 1993; Sonhos no Zimbro – 1994; Estórias para Brancos e Negros – 1994; Mundo Mareado – 1997; Alentejo 2000, Novos Tempos – 200, por exemplo), repartidos por crónica, ficção, poesia e entrevista, reflectem e atestam, não só uma invulgar flexibilidade genérica, como também a preocupação constante em relatar o perfil apaixonado, andarilho e viageiro da alma lusitana, por quem diz que “é andando, teimando e a cantar que um homem acerta o passo e desata a língua”, e vai ainda além no reportar das intimidades familiares, ou da solidariedade entre o português e portuguesa na luta pela sobrevivência e pela criação de um Portugal cada vez melhor.
Neste caso particular, odisseia de um madeirense que regressa à sua ilha onde outra Penélope ou Palmira o aguarda criando os filhos numa perspectiva de vida mais desafogada, recheada de peripécias sentimentais, encontros e desencontros camonianos, dissabores e desenrascanços típicos do navegar lusófono, acrioulados de lisbonês ou francemandeirês, num discurso contido mas vivo, sério mas jocoso, que aquilata para a faceta cosmopolita da nossa personalidade, marcada pelo compasso donjuanino de pola lei e pola grei com que o homem português segurou o leme e marcou o seu destino, Gabriel Raimundo descreve, em Emigrante da Madeira Reencontra o Paraíso, a saga do humilde e inocente pecador Manel de Porto da Cruz, cujo primeiro emprego continental é o de adjunto de merceeiros de secos e pingados, ali ao Martim Moniz, numa Lisboa diferente da actual mas já bastante vincada pelo quotidiano multicultural e pluralismo de hoje, pois estava-se então “muito antes do 25 de Abril, que não se sabia se viria a acontecer, como depois se verificou”, duas vezes emigrado, ilhéu aqui e português em França, trabalhador sempre que anseia regressar à sua terra natal com o estatuto de empresário.
Romance meticuloso, embora curto – 120 páginas, mais ou menos –, demonstra bem quanto é verdade que para dizer tudo não é preciso escrever muito nem obrigar o leitor a peregrinações pormenorizadas e excessivas, tem contudo um alcance histórico e literário que transcende a sua reduzida extensão: sintetiza numa única vida toda a diáspora portuguesa. Principalmente aquela (ou a daqueles) de quem a História menos falou: a dos obreiros de um povo composto por gente que se aventurou no mundo para ser alguém – e o conseguiu.
Para no-lo apresentar e falar dele, estará no próximo dia 25 de Novembro, na Sala Polivalente 1 da Biblioteca Municipal e Portalegre, o seu autor, talvez cumprindo o mesmo destino de outros conterrâneos que de terra em terra foram desvendando novos mundos ao mundo. Serranos, transmontanos, minhotos, beirões, madeirenses, açoreanos, homens e mulheres de qualidade e valor, que com engenho e galhardia souberam edificar este “reino” que tanto sublimamos e pelo qual pelejamos dia a dia, acentuando com a língua a identidade pátria numa Europa una que ora se constitui. Lá estaremos, porque certamente jamais iremos permitir esquecer de quanto todos somos grande parte daquilo que fomos.
Sobre os Cem Anos de Solidão, aqui ficam as minhas considerações:
Ainda não pude averiguar a realidade da existência do personagem Aureliano Buendía, logo te informo das descobertas;
Quando os soldados fazem a revista à casa dos Buendía à procura do sindicalista, é-lhes oferecido um peixinho, mas no final da obra diz-se que estes foram escondidos dos soldados. Incongruência, lapso, ou propositado?
Mais profundo é o tema do incesto, entre irmãos e, sobretudo, entre tia e sobrinho. Será um fantasma, uma reflexão ou?
O papel do capitalismo, sob a forma da exploração bananeira, da mentira da sua existência, e da desgraça que causou à população, afinal, qual é?
O destino trágico da família, como que traçado, afinal esta escrito nos manuscritos, numa referência a alguns contos de J. L. Borges, face aos avanços da investigação sobre o genoma humano, será mesmo inevitável?
A forma de encarar o sexo como uma necessidade inultrapassável, mas ao mesmo tempo um caminho para o amor pleno.
O papel dos mitos, como o de Moisés, descoberto pelas águas, por exemplo, será um reinventar dos mitos?
A personagem, deliberadamente ou não, esquecida de Santa, que é, apenas realçada no final da obra, será um exemplo das mulheres dedicadas à casa e que, passando despercebidas, têm um papel fundamental na vida de muitas pessoas?

Fico por aqui, pois a mensagem alonga-se, e fico à espera de novidades!
Abraço,
João Paulo

11.12.2003

BOM DIA COMUNIDADE!!...

“Quando se consegue alguma coisa que se deseja, é muito bom deixá-la onde está.”
W. Churchil

Eu devia começar por referir a minha indignação sobre o holocausto dos animais e das circunstâncias que rodearam ou foram consequentes à temática do recente “Planeta Azul”, bem como de salientar que o Dia Europeu Sem Carros não serve para fazer macacadas políticas, mas sim para meditar e reflectir sobre os efeitos do excesso de carbono na atmosfera, e de como esta elevada comparticipação na composição do ar afecta o nosso metabolismo, que está “programado” para recebê-lo em percentagens de oxigénio, azoto e carbono, muito diferentes daquelas que é obrigado a receber actualmente. Ou por outra: se fosse um cidadão empenhado e informado como deve ser qualquer indivíduo adulto europeu, responsável por si e pelos seus familiares, conterrâneos, patriotas, continentais e irmãos de espécie – a que se convencionou chamar humanidade –, eu estaria moralmente obrigado a manifestar o meu repúdio e não subscrição dessas duas atitudes humanas que colocam o homem com um QI (Quociente de Inteligência) muito inferior ao de qualquer galinha, bicho doméstico sobre o qual rezam as crónicas e más-línguas populares enaltecendo-lhe singularmente a sua estupidez natural, desinteresse estético, a ditadura política ou carismática do galo, e o gregarismo primário, quase resumido ao cantar de pôr ovo, arrulhar de ensinar pintos a conhecer grãos comestíveis, esgaravatar na vida e esganiçar-se com alarido se acossadas. Mas não irei fazê-lo, dado que esses acontecimentos são indignos de figurar lado a lado com iniciativas de portalegrenses que negam a baixeza geral e demonstram que há outros caminhos e veredas passíveis de serem trilhados pelos que querem fugir à bestialidade: o da leitura de obras literárias, gerando com ela convívio, debate, troca e partilha de saberes ou afectos, conhecimentos diversos, confrontos de projectos de sociedade e teorias comunitárias, aprofundamento da democracia e valorização pessoal – enfim, o manifesto interesse na criação de uma Comunidade de Leitores em Portalegre.
E o que é uma Comunidade de Leitores? Confesso que não sei!... Podia responder que é cozido e assado, ou que existem em Portugal diversas deste ou daquele estilo, como podia salientar que se fosse eu a idealizá-la teria esta ou aquela particularidade que a identificaria face às demais existente pelo país fora. Todavia, se o fizesse estaria simplesmente a fazer demagogia barata e prognóstico de intenções... e a comportar-me como qualquer cocó que quer poleiro e milho fresco.
Portanto, embora reconheça que é uma acção cultural que teve enunciados anteriores e cuja originalidade é tão grande aqui, onde em períodos recentes e distintos aconteceu pelo menos duas vezes ( uma na Biblioteca Municipal de Portalegre sob a coordenação de Inês Pedrosa, e outra na Escola Superior de Educação com a responsabilidade projectiva de um grupo de alunos do curso de Jornalismo e Comunicação), como em qualquer outra parte do planeta, trazendo a lume modalidades, enquadramentos, autores, obras e quoruns emblemáticos de outras tantas maneiras de abordar o conceito e realizar a ideia, estou em crer que finalmente existe na cidade um conjunto de pessoas interessadas na iniciativa e essencialmente empenhadas em levá-la por diante, se atender sobretudo ao que me disseram aquelas com quem pessoalmente contactei acerca dela.
Nesta perspectiva, talvez entusiasmado por uma motivação antiga e por demais conhecida da maioria dos portalegrenses, ouso salientar o meu agrado perante o facto, assim como apresentar publicamente a minha candidatura a integrá-la como qualquer outro leitor que, por diferentes motivações ou expectativas, a ela pertença e se não importe – ou tolere – a colaboração de quem é subversivamente indisciplinado em termos de leitura, e pavoneia o seu diletantismo nestas páginas. Mas que gosta de ler! E que aprendeu o significado da palavra sonho nos romances que sua avó lhe leu nas tardes estivais à sombra de um limoeiro ou nos contos que lhe narrava à lareira, nas noites de Inverno. Que assimilou três coisas distintas e as uniu numa só, a que mais tarde veio a reconhecer como próximo daquilo que as enciclopédias definem como literatura, entrelaçando as pontas da esperança, da liberdade e fantasia, fazendo com elas aquele tapete voador que as mil e uma leituras lhe emprestaram à realidade, mas que ao invés de evasão lhe propuseram novos problemas e questões, inquietudes e preocupações, sensibilidade e dispares técnicas de abordagem a ela. E assim aprendeu que dizer amo-te, tanto pode dito usando só duas palavras como com milhentas páginas delas, resmas e resmas de obras, ou pode ser dirigida a inúmeros seres e universos, desde as coisas á natureza, dos cosmos à simples formiga, à miss universo como à ervinha minúscula dada por inútil, que ninguém hesita em arrancar dos seus canteiros... Porque...
Porque não desconheço a palavra gratidão e sei dizer, obrigado companheiros! Obrigado comunidade! Obrigado aventureira do além e lá na eternidade esperas por mim, à sombra dos limoeiros celestes, a fim me contares todas as histórias que não tiveste tempo de contar-me aqui na terra... E obrigado palavra, que inventaste para todas as coisas e seres a certeza de eternidade!

11.08.2003

O grande carnaval

“Pessoa chata é aquela que, quando se lhe pergunta como está, vai contando, contando...”
Bert Taylor

O destino dos portugueses, sabe-se agora, graças à descoberta de alguns génios e talentos antes encerrados no limbo do anonimato, é de natureza cíclica e dependente sobretudo de modas, tal e qual como o mau tempo, as férias em ilhas do terceiro mundo ou a tendência outonal para as tonalidades castanhas e amarelas, não esquecendo as mini-saias em amarelo torrado que assentam muito bem no café-com-leite. Mais ou menos todos os anos, por esta altura, os órgãos de comunicação social repetem a dose das greves, propinas e reivindicações estudantis, os problemas da justiça e as questões orçamentais, Fátima e a divina comédia papal da sucessão, o atraso dos portugueses face ao resto da Europa, a fuga aos impostos e a generalizada corrupção, os nóbeis e as consequências globais do 11 de Setembro, as acções sindicais em torno da legislação laboral, os aumentos salariais e as actualizações das reformas ou pensões. Digamos que é a altura de fazer a cartinha prò Pai Natal a encomendar o presente, visto que o passado não valeu grande coisa e o futuro se avizinha contaminado pela qualidade dos tempos anteriores a ele. Às vezes, mais esporadicamente e à má fila, entrevista-se o presidente da república e aproveita-se a oportunidade para anunciar os próximos candidatos ao cargo!
Vindos de fora, em alguns rasgos periclitantes, repentinos e sincopados das agências noticiosas internacionais, sabe-se que o mundo pula e avança todavia, ressentidos do impasse a que somos obrigados, dizemos que é muito bem-feita e que não temos nada com isso... O que em certa medida é verdade (ou infelizmente verídico), e à semelhança dos governos que quando se propõem a enfrentar as dificuldades a primeira coisa que fazem é atribui-las à oposição, tal como o marido impotente afirma que a culpa do seu fraco desempenho se deve exclusivamente à fealdade da esposa, conformamo-nos com a ideia de que se estamos atrasados em termos científicos, económicos, culturais, de desenvolvimento humano e coesão social, a responsabilidade não é nossa mas sim desses países avançados que não esperam por nós, não nos puxam e acarinham, e ainda por cima disparam a aprovar textos fundamentais para o progresso sem sequer nos perguntarem como redigi-los, a exemplo vivo do que foram os casos do Pacto Para o Desenvolvimento do Milénio, a Carta dos Direitos da Natureza ou a Constituição Europeia.
Alguns, deveras optimistas e crentes nos poderes das águas santas e sulfurosas das nossas safras serranas, cientes de que somos um país de intelectuais e cujos 1300 cursos do sistema hão-de dar frutos sábios, nem que seja por enxerto genético que garanta evidenciada melhoria nas biologias e matemáticas, não duvidam minimamente do nosso poder de remendeiros com engenho e arte, e aceleram a coisa destruindo jardins e derrubando árvores a fim e fazer parques de estacionamento para os seus popós mais dos dos funcionários públicos que os servem, contribuindo assim com outra imaginativa e genuína interpretação de desenvolvimento sustentado para a terminologia da gaia ciência e progresso mundial. Exemplo vivo daquilo que um sistema educativo pode fazer por nós e pelo nosso futuro, eis que se aprontam a obrar catacumbas onde esconder as suas armas de destruição maciça à base de monóxido de carbono, quais apóstolos das grandes certezas universais baseadas no antropocêntrico sentimento comum a quem lida com o erário público, que é o desde que estejamos bem os demais que se lixem!
Por outro lado, e fazendo jus nas medidas de contenção da despesa ou cortes no investimento público, aplicando os respectivos tabefes na cultura e defesa ambiental, pondo de rastos e a pedir por portas iniciativas que valorizavam a região e sensibilizavam a população mundial para os graves problemas da nossa actualidade, como era o caso do Festival Ambiente – Encontros de Imagem e Som do Norte Alentejano, financiam-se e patrocinam-se obras intragáveis de promoção pessoal, teses de doutoramento, palimpsestos de cordel para empalar ceguinhos, que se não fossem os prefácios e introduções a dar-lhe sustância, caíam na gorpelha dos nunca abertos nem desfolhados... Como? Porquê? A quem assiste o direito de tirar o pão da boca e qualidade de vida de aqueloutros que também são homens mas não investem na regra dos dois pesos e duas medidas? Por onde andam a consciência cívica e democrática daqueles que, não por falta de conhecimentos, de estatuto social ou habilitações, deviam ser os primeiros a pugnar e a corrigir as desigualdades ou atropelos de cidadania?...
Eu respondo que não sei, e não serei o único a dar tamanha resposta. Contudo, tenho uma certeza porém: é que o carnaval é só em Fevereiro do ano que vem! É que, acreditem ou não, o calendário e o bom senso não se mudam de um dia para o outro, e se César Augusto o fez quanto aos meses do ano, aumentando-os, teve também que reduzi-los no número de dias... Que o mesmo é dizer, que quando os meios são restritos e as necessidades diversas, as prioridades residem naquilo que é essencial.

10.31.2003

Lista de autores e obras propostas para a sessão da Comunidade de Leitores, do dia 10 de Dezembro de 2003:
Clarice Lispector - A Hora da Estrela;
José Saramago - Levantado do Chão;
José Cardoso Pires - A Balada da Praia dos Cães, Alexandra Alpha e Dinossauro Excelentíssimo;
Milan Kundera - A Insustentável Leveza do Ser;
Marguerite Duras - A Dor;
Fred Ulman - Reencontro;
Toni Morrison - Amada;
Fernando Savater - O Jardim das Dúvidas;
Jorge Semprun - A Escrita ou a Vida;
Steven Lukes - O Curioso Iluminismo do prof. Caritat;
José Rodrigues Miguéis – O Milagre Segundo Salomé;
António Lobo Antunes - Manual dos Inquisidores e Os Cus de Judas;
Denis Diderot - A Religiosa;
Batista Bastos – Tecido de Outono;
Boris Vian – A Espuma dos Dias;
Stendhal - O Vermelho e o Negro;
Franz Kafka - O Processo;
Virginia Wolf - Um Quarto Que Seja Seu;
Graciliano Ramos - Vidas Secas;
John Steinbeck - As Vinhas da Ira;
Anne Frank - Diário;
Oscar Wilde - De Profundis;
Robert A. Heinlein – Um Estranho Numa Terra Estranha;
Vandam Chalamov - Os Contos de Kolimá;
Primo Levi - Se Isto é um Homem;
Marguerite Yourcenar - A Obra ao Negro.
Aceitam-se propostas, mas convinha que fôssemos apurando a nossa escolha até ao dia 22 de Novembro, para não perdermos demasiado tempo a discutir qual a eleita.
Obrigado
Saudações
JCastanho

Fernando Mano propõe “Levantado do Chão”, de José Saramago, e “Se Isto é um Homem”, de Primo Levi.
José Mourato propõe “Um Estranho Numa Terra Estranha”, de Robert A. Heinlein.
Filipa Ribeiro propõe além de "A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson Através da Suécia", de Selma Lagerlof, e "Um Estranho Numa Terra Estranha", de Robert A. Heinlein, para novas sessões, também, e para esta, "A Dor", de Marguerite Duras, "O Jardim das Dúvidas", de Fernando Savater, "A Escrita ou a Vida", de Jorge Semprun, "O Processo", de Franz Kafka, e "Um Quarto Que Seja Meu", de Virginia Wolf.
Haja mais sugestões!... O mail oficial é o grokare@hotmail.com
Usem-no.

10.30.2003

As histórias repetem-se em trinta exemplos e os porquês continuam por esclarecer

“Quando vemos a carrinha aproximar-se, dispersamos”


“Sou um toxicodependente assumido. Estou aqui também por causa disso”, diz João Miguel, arrumador de carros na área do Bom Sucesso, no Porto, para quem arrumar carros é claramente uma opção que aceitou na sua vida, como sendo a única resposta que obteve sem fazer qualquer questão.
João Miguel, arrumador há dois anos, reconhece que a zona onde normalmente arruma carros tem sido muito policiada, o que dificulta o seu trabalho mas não o impede. “Temos de estar sempre alerta. Quando vemos a carrinha a aproximar-se ou eles [os agentes da polícia municipal] a passearem por aí, dispersamos para que eles não nos levem.” É que já o levaram algumas vezes para a sede da polícia municipal (PM), onde teve de ficar retido durante algumas horas. Mas o pior mesmo, segundo disse foi quando o levaram para os Carvalhos. “Meteram-me na carrinha e levaram-me para os Carvalhos, para perto de um largo onde fazem a feira. Deixaram-me lá só para voltar a pé para aqui. Isso não está certo”, conta. “E ainda me bateram porque eu não queria entrar na carrinha. Só se fosse parvo é que ia querer. Não estou a roubar nem a fazer mal a ninguém. Para que é que me chateiam?”, acrescenta. João Miguel é daqueles casos que não quer nem ouvir falar no programa Porto Feliz, promovido pela Câmara Municipal do Porto (CMP), pois, nas suas próprias palavras, “aquilo é como estar preso”.
Entretanto, aproxima-se Vítor, de 35 anos e arrumador há 12, sempre no Bom Sucesso que está inserido no programa Porto Feliz, tendo já iniciado o tratamento com metadona. “Preciso de dinheiro na mesma. Não tenho emprego e se o peço, só me dizem para esperar. Tenho de esperar para tudo e até lá tenho de comer. Nós já consumimos [droga] há muitos anos e se não for isto também não arranjamos nada”, reconhece. Para piorar a sua situação, diz que as pessoas “influenciadas pela publicidade da CMP, já não dão tanto como antes”. Por dia, soma entre cinco a dez euros por arrumar carros. “Tudo o que queria era ter um emprego, um sítio para dormir e comer todos os dias”, desabafa.
Nuno Nogueira é arrumador há 11 anos. Há cerca de três meses, foi levado duas vezes seguidas pela polícia com “fitas verdes nos bonés que mais parecem azulejos de casa de banho, como o estádio do Sporting”. É assim que descreve os agentes que operam na PM. “Fiquei duas horas lá na Pasteleira e depois tive de voltar a pé. Numa das vezes, recusei-me a ir e eles ameaçaram-me e chamaram-me nomes”, reclama. “É claro que acho mal que nos levem porque eles só querem é falar sem nos ouvirem em altura nenhuma. Além disso, não nos ajudam. Esta mentalidade portuguesa é muito hipócrita”. Apesar disso, vai dizendo que os polícias andam mais “tranquilos”, pois “também eles já estão contra o Rio”.
A lista de testemunhos continua. Flávio, arrumador de carros há quatro anos na Ribeira do Porto, foi levado para a sede da PM, na Pasteleira, pela última vez fazem agora duas semanas. Se foi maltratado? “Nunca somos muito bem tratados, eles estão sempre a dizer “bocas”, mas fisicamente não fui agredido nas duas vezes que tive de ir”. Para Flávio, a CMP “não tinha nada que se meter com os arrumadores”. Manuel Oliveira arruma carros sobretudo na Praça da Liberdade. Nunca foi levado pela PM, segundo ele, porque está em tratamento no CAT- Centro de apoio aos toxicodependentes. “Pois, mas o CAT não nos dá comida nem trabalho. Aliás, soube que alguns colegas meus conseguiram um emprego lá com o programa do “Porto Feliz” e já perguntei o que preciso de fazer e responderam-me que andasse na rua a arrumar carros que eles acabariam por me levar”.
António Fontes, de 36 anos, também já foi levado três vezes pela PM, a última foi há, aproximadamente, um mês. “Como sou de Famalicão não sou levado tantas vezes. Na última vez que fui, perguntei-lhes se queriam que fosse roubar e responderam-me com pontapés. E ainda tive de estar lá na “seca” de duas horas e voltar, depois, a pé”. Já Júlio, nome fictício, diz não ter queixas da polícia municipal, o mesmo já não se passando com a PSP. “Andam aí dois que estão marcadinhos. Estou só à espera que hajam partilhas lá em casa para ter um carrinho e me pôr atrás deles. Olhe, isto é graças a eles”, comenta mostrando a mão inchada e uma perna com alguns hematomas. De acordo com Júlio, os agentes da PSP já o levaram várias vezes, tendo a última ocorrido há oito dias. “Ficam-nos com o dinheiro e ainda gozam connosco. Só meus já lá ficaram com cerca de 100 euros. Põem o dinheiro num envelope para nos taparem os olhos, mas vão é gastá-lo em bares”.
Paulo Fernandes, arrumador de carros há cinco anos, é frequentemente levado por agentes da PSP, pois na zona onde trabalha existe uma esquadra daquela força policial. “Vá lá, desde a passada quinta-feira que não me levam. Até já são eles que me dizem para ir para outro lado porque ali ao fundo moram familiares do Rui Rio. É que assim ele pensa que acaba connosco”, ironiza.
“Acho mal levarem-nos para a Pasteleira porque é muito longe daqui (Santa Catarina), não se preocupam connosco. Sabem que não temos dinheiro para táxi nem para autocarro”, refere João Carlos, de 32 anos. Para este arrumador o programa Porto Feliz não resolve todos os seus problemas nem lhes dá dinheiro para sobreviverem. “Não tenho razões de queixa da PM, já fui levado duas vezes, mas nunca me trataram mal, embora perceba que isso é uma questão de sorte, até porque só lá estive duas horas de castigo”, explica. Um castigo que não percebe por que acontece.
Henrique Ribeiro é toxicodependente há 29 anos e arrumador de carros na Ribeira do Porto, onde vive com a mulher, a filha e duas netas, durante quase outros tantos anos. “Nunca estive preso e a polícia não me incomoda, já me conhecem e sabem que já faço “parte da mobília” aqui da zona”, explica. Henrique soube desta nova metodologia da PM através de Nuno Cardoso, ex-presidente da CMP, que lhe veio perguntar se já tinha sido levado pelos agentes. “Eu nunca fui, mas sei de muitos que já foram. Uma coisa é certa, 90% dos arrumadores roubam e isso baixou com a polícia, a qual agora anda aqui muito. Mas o que o Rio gasta em cartazes com mensagens para as pessoas não darem moedas, bem podia fazer de facto alguma coisa que nos ajudasse, como por exemplo, arranjar algumas casas como aquela em que vivo. É uma miséria”, critica. No passado dia 9 de Setembro, Henrique foi aceite no projecto “Porto Feliz”, mas não vai continuar, pois, segundo diz, “é como estar preso”. “Falta-me é apoio em casa, essa é que era a terapia que eu precisava”, considera.
É automático: uma carrinha da PSP passa e Humberto, nome fictício, afasta-se rapidamente da rotunda onde está a arrumar carros. Pouco depois, quando já não se vêem polícias, lá vem ele. “É melhor até para os polícias que eu fuja e que não os veja”, diz com visível agressividade. Já foi levado pela PM por três vezes, a última das quais aconteceu há quinze dia, em que, pelo que afirma, “foi puxado violentamente para dentro da carrinha da PM. “Eles agora estão tramados comigo, não pensem que me levam e que eu fico lá quieto no banquinho a vê-los tirarem-me o dinheiro e a gozarem com a minha cara”, ameaça. “Também tenho em casa uma coisa que faz buracos e perdido por cem, perdido por mil. É preciso é saber fazer as coisas”, continua, alegando que tem o direito de trabalhar para sustentar os seus vícios. “É claro que fico chateado quando não me dão nada, mas não posso obrigar as pessoas a fazê-lo. Agora, a CMP quer acabar connosco, mas o Rio devia era ter juízo e sair lá do seu luxo para ver como é a vida na cidade onde ele pensa que manda”.
Joaquim Gomes dos Santos, 37 anos, e já foi levado três vezes pela PM. “Por acaso não fui muito mal tratado, mas ‘tava doente e não me deixaram sair. Ainda por cima sou eu que trato da minha mãe, que está acamada e por volta das seis da tarde tenho de lhe ir dar os medicamentos”, conta Joaquim que, da última vez que lá esteve, há cerca de três semanas, ficou retido durante três horas. “Não fazemos mal a ninguém, ninguém nos apoia. Só, de vez em quando é que nos vêm aqui dar umas refeições. Mas o que precisava mesmo era de um emprego. Estava disposto a fazer qualquer coisa”. Para Joaquim, a CMP “não dá nada e agora as pessoas dão menos dinheiro por causa dele. Só consigo fazer cerca de dez euros por dia”. Assim, na opinião de Joaquim, o que a polícia devia fazer era “apanhar aqueles que vendem droga. Esses é que nos arruinam”, reconhece.
É num pequeno jardim junto ao Hospital Conde Ferreira que o JN vai encontra um grupo numeroso de arrumadores de carros, quase todos inseridos no programa “Porto Feliz”. Vítor é um deles. Já foi levado três vezes pela PM, a última vez foi há cerca de dois meses. “Se nos recusamos a ir, agridem-nos e não querem saber se somos doentes, se estamos de muletas, não lhes interessa coisa alguma sobre nós”, reclama. O Vítor caiu quando ia a entrar no autocarro e desde aí tem que usar muletas. O diálogo entre os arrumadores começa de imediato. “Dão-te casa, emprego, comida decente?”, pergunta Luís, que também está inserido no programa promovido pela CMP. Para este último, é “natural” que os polícias “percam a cabeça”. Afinal, diz, “são homens como nós”. Já Gonçalo, nome falso, não perdoa e revolta-se facilmente com as autoridades e explica porquê: “Dizem-nos que somos delinquentes, que nunca nos vamos curar, ainda nos batem por estarmos a tentar fazer algum dinheiro. Qual é o sentido de nos fecharem numa esquadra durante três horas e depois mandarem-nos embora? Quem é que querem enganar?”, questiona indignado. Mais não diz porque o tempo para almoçar no Hospital é pouco. Entretanto, chega a hora de Luís ir “fazer o tratamento”. Já na enfermaria, toma três comprimidos receitados pela sua psiquiatra. “É a medicação para malucos”, ironiza. Segue-se o teste dos limites, ou seja, verificar através da análise à urina que drogas foram consumidas. No caso do Luís, apenas deu positivo o teste do haxixe. À saída, diz “Que bom, ainda na 6ª feira consumi cocaína e não acusou”.
Outro caso especial é o de “Quicas”, nome por que é conhecido um outro arrumador de carros, na área do Bom Sucesso e da Praça da Galiza. “Não consegui fugir às minhas circunstâncias e não sei quem o conseguiria”, afirma. E estas foram as suas circunstâncias de vida, desde sempre. Quicas é toxicodependente assim como os seus irmãos, nasceu num dos bairros degradados do Porto, a mãe é doente, o pai suicidou-se já há alguns anos e, entretanto, contraiu o vírus da sida. Também já foi levado pela PM por duas vezes. “Acho que já todos fomos e todos continuamos na rua, só me chateia que fiquem com o nosso dinheiro. Não acho que seja justo. De resto, é só mais uma coisa entre tantas. Não nos vai ajudar em nada. O que nós fazemos, por vezes, é um serviço público”, opina. Isto porque “nos carros que arrumo, ninguém mexe. Iso é certo”, reitera. Para “Quicas”, a prova de que a CMP “não sabe o que anda a fazer é a história das licenças para arrumadores. Grande anedota que isso foi”. “Ainda diz que só existem quarenta arrumadores na cidade. Ele que saia ali de casa e comece a contá-los. É preciso é ter coragem para mentir”, refere.

Filipa Ribeiro

10.29.2003

Conta-me um conto...

“Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, (...) O mundo
era tão recente que muitas coisas careciam de nome e, para mencioná-las,
era preciso apontar com o dedo.” – in CEM ANOS DE SOLIDÃO, de G.G. Márquez


Se para algumas pessoas ler é já de si uma actividade que implica tortura e sacrifício, para muitas de entre estas é ainda mais constrangedor fazê-lo em conjunto. São demasiadas as que sucumbiram ao prazer solitário e onanista da leitura (e até da criação literária). Nem sempre foi assim! Segundo rezam as crónicas, que não têm que ser verdade ou mentira, terá a escrita nascido da oralidade e na impossibilidade desta...
As Mil e uma noites, A Odisseia, O Amadis de Gaula, o D. Quixote, livros que remontam à nossa ancestralidade ficcional, eram contados aos serões por pessoas que anteriormente os tinham também ouvido contar, e assim semeavam entre os restantes os germes do sonho e da fantasia. Se o faziam profissionalmente ou por puro prazer não consta das relações tributárias, embora houvesse quem andasse de terra em terra espalhando o seu testemunho acerca dos casos fantásticos que vivera!
Mais tarde, e porque quem conta um conto acrescenta-lhe sempre um ponto, as estórias avolumaram-se, ganharam corpo e personalidade, e exigiram dos homens consenso, unificação e identidade. Ao cada um conta de maneira diferente implantaram o seu teor e puseram fim no regabofe fazendo com que alguém lhe traçasse escritura. Ao acto social da literatura acrescentou-se o não menos social acto do registo. Se este facto sucedeu há pouco menos de dois mil anos entre nós, visto constar que na China, Assíria, Egipto, etc., terá acontecido bastante antes, a oralidade e convívio à volta de um enredo remetem-nos ainda para o tempo das cavernas. Não sabemos ao certo quando é que um sacana qualquer para deslumbrar a sua amada ou meter macaquinhos na cabeça do chefe da tribo se pôs a papaguear pinderiquices que tanto assustam como arrebatam, mas o que é certo é que o fez, embora a TV e a rádio não tenham dado a devida cobertura ao acontecimento.
Ora, ainda este vício andava de gatas e já havia quem lhe pusesse asas no dorso como os que inventavam antídotos para lhe combater o mal e contágio nas massas... Uns tinham razão porque os outros a não tinham, como aos outros lhe assistia porque a uns lhe faltava! Se muitos foram obrigados a beber a cicuta, pagando com a dor e a morte, todo o prazer que as estórias e a palavra lhe concederam durante a vida, não menos quantos houve que lhe invejaram o dom e os mandaram para os trabalhos forçados, masmorras e degredos! No entanto, do que ninguém duvida, quase todos sabemos quem foi Sócrates mas ninguém se lembra do nome do presidente da Câmara da Lisboa de há 200 anos atrás, embora entre um e outro haja tantos milénios de distância quer no tempo como de quilómetros no espaço que habitaram...
Actualmente, numa sociedade circunscrita ao poder da imagem, acesso total à informação, vertiginoso ritmo de vida, expansão da cultura facilitista, solicitação e usufruto dos prazeres imediatos, que tende a dispensar os benefícios da leitura (criação de imagens, mobilidade, flexibilidade e enriquecimento vocabular, facilitação do processo de aprendizagem, contacto e apreensão de emoções exteriores, relacionamento de conhecimentos adquiridos com novos sentidos, construções sintácticas e significados, por exemplo), esse acto deveras social da leitura está a irradicar-se dos nossos hábitos, principalmente se não forem tomadas precauções adultas para contrariar o modus vivendi actual. Entre elas cabe a criação de comunidades de leitores, tal como vão surgindo um pouco por todo o país, na tentativa de reabilitar obras e autores que marcaram ou marcam os nossos tradicionais modos de ser e estar, enquanto cidadãos do e para o mundo.
A Comunidade de Leitores de Portalegre convida, portanto, nesta perspectiva, à leitura do romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, com que iniciará a sua actividade em sessão a realizar no mês de Novembro, cuja data precisa será atempadamente divulgada, a fim de que também nós, portalegrenses, possamos ajudar a inventar o futuro reerguendo do passado uma modalidade sócio-cultural que contribuiu em grande parte na formação da cidade que nos acolhe ou em que vivemos.
Há diversas maneiras de contarmos contos uns aos outros e esta é outra entre tantas mais de inscrevermos os nossos passos na resenha da actualidade. A melhor forma de mudar o mundo é começarmos por modificar-nos a nós mesmos, tomando novas atitudes perante hábitos antigos, costumes e consciência participativa na evolução da democracia. A mais-valia de Gabriel García Márquez, quer como jornalista, quer como romancista galardoado pelo Nobel, é inegável e tem entre nós bastantes adeptos, leitores assíduos dos seus títulos, ou mesmo que lhe acompanharam o percurso profissional. Creio que foi uma boa escolha, que encorpará o nosso grupo de leitores com variadas visões deste romance, tal como da obra em geral, e que poderá pôr em contacto pessoas que de há muito têm um gosto comum, bem assim de suscitar naqueles que ainda o não conheçam apetência para o fazerem.
Por conseguinte, aqui fica a nota de boas-vindas e votos de que se divirtam com a saga mirabulante de Aureliano Buendía, que possui todos os ingredientes para guiar-nos através de uma aventura ao realismo fantástico do século passado... E com óptimo cicerone!
grokare@hotmail.com


A D U A S M Ã O S
Por Joaquim Castanho e Filipa Ribeiro

“O rei vai nu”, disse o rapazito


“A engenharia genética condensa, como nenhuma outra tecnologia,
tanto as nossas aspirações quanto as nossas desconfianças”
Margarida Silva

Vem este artigo a propósito do lançamento do livro “Alimentos Transgénicos – um guia para consumidores cautelosos”, de Margarida Silva, professora de biotecnologia no Porto e vice-presidente da Quercus, da Universidade Católica Editora. Os Organismos Geneticamente Modificados (OGM) são organismos que adquirem, pelo uso de técnicas modernas de engenharia genética, características de um outro organismo, o qual, em algumas vezes, é bastante distante do ponto de vista evolutivo. Esta é, sumariamente, a sua definição técnica. Em termos de indústria agro-alimentar e da aplicação que fazem dos OGM, estes são, como disse e muito bem Luísa Schmidt, uma “coqueluche” que “é apresentada sedutoramente aos países pobres, a quem se acena com a quimera da abundância e do fim do problema da fome” (Expresso, Dezembro de 1999).
Com efeito, apesar de poucas, erguem-se já algumas vozes do interior da comunidade científica para alertar sobre as implicações dos OGM na saúde humana, sobre os riscos para o ambiente, para a agricultura e para a sociedade. E fazem-no porque, ao contrário do que se possa pensar, os OGM são uma realidade e todos estamos sujeitos a consumi-los sem sequer disso termos consciência. E é para essa tomada de consciência, esclarecida e rigorosa, que este último trabalho de Margarida Silva contribui, dado existirem várias leituras possíveis desta questão transgénica.
É aqui que a comunicação social é importante na tentativa que deve fazer para despertar nos cidadãos a atenção e posicionamento eficazes face a um dos problemas mais actuais para a qualidade de vida no nosso planeta. Infelizmente, isto é o que não se tem feito, porque simplesmente não é possível quando até os media se declaram, impunemente, indisponíveis para darem espaço nas páginas dos jornais, mediação televisiva integrada e não repetida, cobertura diversificada e personalizada na rádio, internet e afins. Porque as questões científicas e ambientais não podem ser atiradas para a geral condição de produto estratégico na imparável senda de mais e diferentes audiências, segundo a qual a comunicação de questões de grande interesse social relativas à saúde pública e ao ambiente sustentado se cinge ao ciclo hermético e/ou apanágio para fins político-económicos pouco sustentáveis pelos custos que comportam à vida do planeta.
Perante aquela que pode ser a mais radical experiência no mundo natural, temos de estar esclarecidos, posto que esse é um esforço mútuo para cientistas, industriais, políticos, empresas, legisladores e consumidores. É neste sentido, portanto, que surge este “Alimentos Transgénicos – um guia para consumidores cautelosos”, o qual é desprovido de uma gíria demasiado técnica e que tenta, deliberadamente, abrir os olhos e o diálogo com o consumidor. E fá-lo dando conta da controvérsia em torno desta questão desde que surgiu a primeira planta transgénica, em 1983. Assim, a autora começa por enumerar as vantagens dos OGM apontadas por diversos grupos científicos, políticos e de cientistas, mas pelo tom usado percebe-se que as vai atacar, ou seja, que vai dissecar, recorrendo a uma análise cientificamente fundamentada, cada um dos argumentos que são discutidos neste prós e contras dos transgénicos.
Entre os benefícios para quem vende OGM, Margarida Silva indica os seguintes: o aumento da produtividade agrícola (maior resistência a pragas), redução nas aplicações de pesticidas (melhoria ambiental, inúmeras variações especializadas para agradar tanto a agricultor como consumidor e industrial, gestor e necessidades do 3º mundo. Dizem que ainda ninguém morreu por causa dos transgénicos e que os OGM são as plantas mais estudadas do mundo.
Ora, para começar, a nível mundial, apenas 4 países produzem 99% de todos os OGM: EUA (66%), Argentina (23%), Canadá (6%) e China (4%), o que não deixa de ser sintomático do aproveitamento económico e político que apenas visa lutar contra a morte por fome. Pois sim... Além disso, a agricultura insustentável é uma das características da nossa sociedade onde ainda predomina uma cultura alimentar que privilegia as farinhas, os óleos e a distribuição personalizada dos alimentos cuja proveniência e conteúdo são questionáveis. Por outro lado, a estrutura administrativa social fundamentada em representantes que beneficiam grupos económicos em detrimento de valores humanitários básicos, a isenção da responsabilidade pessoal para com a saúde e educação, delegando-a a profissionais formados em perspectiva mercantilista, eliminam o desejável empenho pessoal na vigilância da qualidade dos alimentos. Como é possível que esta esmagadora minoria interessada nos OGMA ignore a perda de equilíbrio ecológico de espaços selvagens e agrícolas, os riscos da introdução na cadeia alimentar animal e humana de substâncias que nunca dela fizeram parte, da contaminação generalizada dos alimentos não transgénicos, da manipulação abusiva e mecanicista da vida e, por fim, do domínio económico do planeta pelas grandes empresas mundiais. Como é possível, que tudo isto se resuma a patentear sementes que sempre foram e deviam continuar a ser um bem comum e de livre acesso? Sim porque a incorporação de um gene significa, que alguma parte do organismo receptor vá produzir uma nova proteína e o aparecimento de uma nova característica, a qula é transmitida de geração em geração? Estão todos cegos perante esta nova “bomba atómica para o mundo natural e humano? Provavelmente, tal como aconteceu com os resultados da bomba atómica de Nagasaki e Hiroshima, quando se perceber as reais consequências dos OGM, então, mais uma vez, será tarde demais e poderão não haver trancas para pôr na porta.
Torna-se, pois, claro que os OGM representam para políticos e cientistas uma solução fácil que consiste na interpretação errónea daquilo que a biotecnologia em particular e a ciência, em geral, podem fazer. A acrescentar a isto está o facto de ainda não existirem, até hoje, provas científicas demonstrativas da segurança dos transgénicos na alimentação humana e animal. Mais: porque a circulação comercial dos alimentos transgénicos só começou em 1996, ainda não decorreu o tempo necessário para aferir das consequências dos agrotóxicos nestes. Na altura em que se completam 50 anos desde a descoberta de Watson e Crick, urge analisar o potencial da genética, pois é notório que um simples gene, na sua complexidade, apresenta infindáveis extensões e, como explica Margarida Silva, “um gene fora do ecossistema molecular onde a evolução facilitou a adaptação mútua torna-se imprevisível e, ao ser inserido, num genoma estranho através de um evento fortuito, num local ao acaso, o seu comportamento pode ficar radicalmente alterado”.
grokare@hotmail.com
Para a sessão de 10 de Dezembro da CLP há uma lista enorme de sugestões... Vou fazê-la, para que se possa adiantar serviço, e não se perder tempo na sessão de 22 de Novembro.

10.27.2003

A próxima sessão da Comunidade de Leitores está a receber aderências, sobretudo de pessoas que já leram o livro. Creio que isso não diminuirá o interesse nem o debate, pois não será pelo facto de o terem lido anteriormente que lhe perderam o enredo e arrebatamento. Gabriel García Márquez é um autor que aguenta bem duas leituras sem perder o interesse. Para o dia 10 de Dezembro, Dia Mundial da Cidadania, é provável que tenhamos nova sessão da CL à volta dessa temática... A cidadania!

10.25.2003

Consultem o gatomontez.no.sapo.pt, pois terão aí textos de virtude virtual e autorias insuspeitas. É uma aposta de futuro e, tal como a arte ou literatura em Portugal, não rende mesmo nada!

10.20.2003

Não obstante a fraca aderência à Comunidade de Leitores, esta irá continuar, conforme a vontade expressa pelos presentes. Nunca se esperou uma forte adesão à ideia, mas confesso que na data tive alguma expectativa. Considerando que o pessoal com quem falei me garantiu a sua ida, fiquei suspreendido quando não apareceu. Ler é um acto pouco aprazível e ler acompanhado, ou estar com pessoas que leram os mesmos livros que nós, ainda é mais constrangedor, sobretudo para aqueles que têm dificuldade na compreensão da ficção, e daqueles que têm muito pouco confiança em si, nos seus dotes literários e capacidade de compreensão dos mundos alheios. Para melhor informação sobre a sua continuidade, conferir artigo da Fonte Nova, na edição de sábado, 25 de Outubro.

10.18.2003

A sessão preliminar da Comunidade de Leitores foi pouco frequentada. Estiveram presentes cinco pessoas mas ficou aprazada nova sessão para o dia 22 de Novembro, sábado, sobre o livro "Cem anos de solidão", do Gabo. Vamos a ver se então resulta!
Para já ficamos com uma série de pessoas que estão interessadas na leitura da obra. Se não suceder o mesmo que sucedeu na sessão preliminar, em que o pessoal fez o manguito, depois de ter dito que ia, pode ser que venha a sair qualquer coisa de jeito...

10.16.2003

A partir de sábado, entra em actividade a Comunidade de Leitores de Portalegre, residente na Biblioteca Municipal desta cidade. A sessão preliminar terá lugar na Sala Polivalente 1, pelas 15 horas, e terá como ordem de trabalhos a apresentação sumária dos constituintes, elaborar o plano de actividades e agendamento. Desde já o nosso convite para aparecerem ou depositarem as vossas sugestões. Das conclusões e resultados, daremos notícia

10.13.2003

Quando estamos em presença das personagens de romances como "Um Estranho Numa Terra Estranha", a primeira senção é de que aquele algo irreal que acompanha qualquer obra de ficção científica estar deveras obliterado. Elas não são do futuro, do presente, nem do passado: são do tempo narrativo, mas mais precisamente daquele que o actualiza, que é o momento da sua leitura.
posted by jcastanho

10.09.2003

A melhor forma de dizer o que se pensa acerca de um livro é ir depositando as impressões que ele nos provoca, as ideias e sentimentos que levanta, enquanto o lemos... Ou seja, enquanto ele está vivo em nós. Enquanto as suas personagens e enredos nos habitam com a premência duma realidade ultra-real, ou que está para além da nossa realidade "aleanatória"... que nos ilude através das sombras quotidianas e das aparências com que deparamos diariamente. São raras as vezes que esquecemos o que é essencial de uma obra literária, desde que hajamos assim... Pelo menos, se entendermos que o devemos fazer para nosso bem e da significação ou descodificação do romance em causa.
Ao princípio somos nós que impomos a nossa vontade sobre o romance ou a motivação com que a ele nos dirigimos. Todavia, se houve entrega e entramos nele pelos nossos próprios pés, ou por aquilo que Albert Camus se referia quando afirmava que "ler é compreender e compreender é criar", deixamos de ter domínio pleno sobre as nossas emoções, ideias, construções imagéticas, e ficamos presos das circunstâncias enunciadas na obra. Foi assim que sucedeu comigo ao ler "Um Estranho Numa Terra Estranha", em que vivia de tal forma o que aí se passava, quer quanto ao narrador, quer em relação a V. M. Smith, que a minha atitude perante a leitura, o querer devorar cada vez mais romances, grocar mais autores, me atirou para um rodopiar constante entre diversas histórias, e... à semelhança do narrador, a guardar os meus escritos momentâneos pela razão, tal e qual como ele fazia, de poderem vir a servir depois para alguma estória que intentasse escrever! Ou seja: fiquei enredado pelo enredo. De onde nasceu este termo para denunciar a trama de uma obra?... Terá esta minha reacção alguma coisa a ver com a justificação e aparecimento de terminologia romanesca?...
posted by jcastanho

10.06.2003

Na leitura sumária de um romance de ficção científica a primeira sensação que se deve ter, para entrar no texto e usufrui-lo ao máximo, é a de que estamos em frente a algo tão real que o seu autor teve que expressá-lo de maneira a que ninguém tivesse dúvidas acerca da sua irrealidade... Ou seja: ele tem mais medo disto ser verdade do que nós, e por isso apenas concedeu publicar a sua fantasia de forma a que não se acreditasse nela. Serviu-se do futuro para relatar o "seu" presente, ou o mundo em que habita. Está a praticar um acto de mágica, mostrando-nos o que existe como se ainda não existisse. Depois... Bem, é apertar os cintos e levantar voo!
E, curiosamente, não nos custa muito, e até estamos desertos de o fazer!... Gostamos de o fazer. Estamos ansiosos por fazê-lo. A FC é a consequência directa do desejo de eternidade que o homem encerra no mais recôndito de si. É, no rodopiar incondicional da espiral existencial, a tentativa de abranger todo o cosmos e todo o tempo. Sem esta apetência, esta ansiedade, não teríamos vontade de futuro, quer idealizando-o, quer preparando-o, como influenciando-o a partir do presente!
posted by jcastanho

10.03.2003

Nas abordagens que cada um possa fazer das obras literárias há sempre um resultado que não se vê ou nota à vista desarmada: o de melhorarmos os nossos níveis de empatia, ainda que tenhamos sido contra as afirmações e enredos apresentados. Portanto, quando nos propomos a ler colectivamente uma obra, romance, ensaio ou poesia, além de melhorarmos as nossas capacidades empáticas como seria normal em qualquer leitura, aperfeiçoamos também a nossa empatia com o grupo através de um veículo comum, o livro, mesmo que estejamos em desarcordo entre nós. As posições de cada um face ao enredo, filosofia sustentatória, emblemática do autor e personagens, ao suscitarem diferenças marcantes e debate, ao contráro do que se pensa, em vez de separar os intervenientes, apenas os une interiormente mais!
Um dos "milagres" da leitura é o da reunião. Reunião entre escritor e leitor, entre significados e significantes, entre universos metafóricos e realidade concreta. Ao desencadearmos os processos de reunião para além do texto - por exemplo, o facto algumas pessoas se encontrarem a ler esta ou aquela obra com objectivos e orientações existenciais similares -, forma-se aquele espírito de assembleia que patrocinou as origens bíblicas... e do qual resultou o ritual religioso da leitura da sagrada escritura, núcleo à volta do qual ainda se orientam hoje quase todas as religiões, tenham elas por base o Corão como as pedras pré-históricas ou divindades aztecas.
posted by jcastanho

9.30.2003

Quase todas as estórias, desde que bem contadas, se cruzam. Se tocam. E se propõem como maneira de encarar a vida... No caso destas duas há uma mais valia importantíssima: preparam-nos para construir a afectividade familiar em termos profundamente positivos, ensinamdo-nos o amor como essência dela. Há nelas como que uma linguagem universal que é outro género de música, como que um murmúrio que nos corre nas veias, e nos transmite o intransmissível, a empatia em estado puro, preenchendo-nos a existência momentânea de algo que parece - e se calhar é mesmo - eterno... Que vai para além do nosso estar terreno e nos põe a comungar do cosmos, ou estar entre as estrelas. A ser uma entre elas... E a curiosidade ou o alargamento desta ideia vai desde a astrofísica de Hubert Reeves como até ao "escolhe um desejo" infantil de quando vemos um cometa a cruzar a abóboda celeste!
V. Smith é, inclusive, um humano que veio de Marte, do céu, daquela parte de nós que nos é estranha mas de que somos inseparáveis... Ele é um humano que foi educado por não-homens, seres infísicos, que sabem habitar o vácuo sem presença material. E como? E porquê?
posted by jcastanho

9.29.2003

Há no "A Pérola", independentemente dos efeitos da música da família, que inicialmente leva esta a procurá-la e depois a destrui-la, uma capacidade de arrebatamento que, parece, só terá equivalente em "Um Estranho Numa Terra Estranha" no amor altruísta V. Michael Smith que o atira para a sua própria destruição?... À primeira vista poderá parecer que sim, no entanto, acho bastante suspeito; e complicado... Se admitíssemos que a única saída para a felicidade alheia estava no sacrifício da nossa própria felicidade, esta leitura ajudar-nos-ia muito, muito, muito pouco! A literatura, se acaso tem outra funcionalidade do que aquela que está explícita na sua definição literal, deve e pode estar para além das aspirações humanas mas, embora lhe sejam essenciais, não se pode resumir a elas. Ou pode?
posted by jcastanho

9.27.2003

A ideia de ler dois livros, neste caso "Um Estranho...." e "A Pérola", de autores diferentes e diferentes géneros é simplesmente magistral. São estilos e modos de escrever, filosofias de vida e abordagens à realidade, bestialmente distantes e tão próximas que apetecem de uma jornada! Essa ideia tua, Filipa, foi excepcional! Obrigado.
Principalmente porque faculta a comparação genérica e estilística... É muito bom que existam pontos de referência exteriores à obra que estamos a ler para poder elaborar patamares de significação. Por exemplo, quando se desenham as personagens e os ambientes, é possível ver como um e outro dos autores fizeram, e recolher de imediato, através das diferenças constadas, a relevância das suas mensagens... E essa qualificação, ao invés do que seria de supôr, funciona melhor quando elas se tocam e cruzam! Digamos que se está em sintonia e com transparência objectiva, numa leitura que é essencialmente subjectiva - a da ficção.
posted by jcastanho

9.26.2003

"Era uma vez um marciano chamado Valentine Michael Smith", eis a primeira frase com que começa o romance. Há milhares de contos, romances, poemas, que começam assim, e, no entando, quase não damos pelo facto. Se fosse uma obra dita de "literatura séria" o nosso sentido estético ditar-nos-ia imediatamente: «outra vez o era uma vez?!...» Mas não, não é, é Ficção Científica e, provavelmente por a considerarmos menos perfeita que outros géneros, toleramos e até apreciamos! Penso que é essa imperfeição esperada (ou mesmo desejada) que nos leva a preferi-la... Nós também não somos perfeitos; e esta é uma literatura que nos espelha. Seria possível conseguir tanta empatia com o personagem marciano se fosse diferente a entrada?... Julgo que não. Ser marciano é algo que nos é acessível... Um dia chamaram-me ET (extra terrestre), e, ao contrário de me ofender, fiquei maravilhado - andava a ler Robert Heinlein!
posted by jcastanho
Por outro lado creio que a interioridade afectiva de "A Pérola" se estabelece em termos mais intimistas... Quando, se pensarmos que a literatura é aquela maneira particular com que as pessoas se dizem "amo-te" aos seus semelhantes, às coisas, à natureza ou aos animais, o que para uns se faz com duas palavras mas para os escritores mais inventivos pode chegar às centenas de milhar de páginas, a relação primordial estabelecida entre os personagens principais se estende à humanidade, no caso de "Um Estranho...", em "A Pérola", há um dizer sentimental mais restrito, singularmente nomeado pela música da família. Família esta que está em constante desassossego e posta em risco pela sociedade burguesa e mercantil, pelo capitalismo desenfreado e anárquico... É o mundo dos monopólios, do poder que se dispersa como um polvo e estende os seus tentáculos a todos os cantos rentáveis da mesma, manipulando os canais de escoamento, produção e valorização das pérolas. E creio, também, que estas são metáforas de uma sentimentalidade profunda... Em cada um de nós está sempre aquela pérola, talvez escondida sob a concha da nossa personalidade, onde a esperança e o amor se fundem como algo precioso. Não achas?
Acho inclusive que "A Pérola" é uma óptima aproximação à intimidade essencial e humana que se espelha no "Estranho...", precisamente porque também nela se apresenta e traduz aquela forma interior de grocar a realidade, através das músicas dos sentidos e sentimentos, das emoções e estádios de alma. Quando aos personagens é dado escutar a música da família transmite-se-nos igualmente a sensação de harmonia que ela comporta, por exemplo. Se é o receio, a mesma coisa. Há em ambas as obras o recurso a linguagens que estão para além do texto propriamente dito e que nos facilitam entrar noutras esferas do "enredo"... estimulando-nos a empatia com os personagens e ambiente. Penso eu...
posted by jcastanho
Entretanto, deixo uma outra sugestão de leitura (que também me foi feita a mim): A pérola, de Steinbeck. Apesar de pertencer a um género literário diferente de Um estranho numa terra estranha, penso que, de uma certa forma, as "estórias" tocam-se de uma maneira, diria eu, especial. Mais à frente deixo mais comentários sobre esta obra.
posted by fribeiro

9.25.2003

Da argumentação e estilo desenvolvido por Robert A. Heinlein falaremos mais tarde. Agora e segundo o espírito da nossa leitura o que é preciso é saber como ela está a operar em nós! Como nos faz sentir depois de 20 páginas e como nos preencheu de novas maneiras de experimentar o real... Como opera a FC em nós e porque não temos receio de nos entregarmos a ela de alma aberta? Será que isto acontece por sabermos que de um género menor não advém perigo de influências nefastas ou, por outro lado, nos fechamos por o saber um género menor que não deve ser levado a sério?... Há possibilidade de enquadrarmos as nossas respostas não perdendo o sentido da estranha realidade....
Ainda bem que assim vês esta leitura, Filipa. Realmente eu senti o mesmo acerca de Smith e da sua maneira de grokar, de entender o mundo terreno e, por vezes, se tivesse o poder de assimilar as novidades também o faria de igual jeito. Este é efectivamente um exemplo de como a literatura pode estar viva em nós e de como se revela. Boa continuação. Eu vou agora continuar a leitura dele... Aliás, há uma coisa em mim que resultou desse livro: a careca. É como que uma tentativa de "imitar" o Smith! De identificar-me com ele através da aparência física... A velha questão do hábito e do monge: não é que o primeiro faça o segundo, mas assim que passamos a usar o hábito sentimo-nos mais próximos de ser monges...
Sim, neste momento estou a ler a primeira sugestão literária deste blog- Robert Anson Heinlein com o seu Um estranho numa terra estranha. A literatura de fição científica, em particular, não se pode ler de ânimo leve, mas Heinlein faz, nesta sua obra-prima, com que esse género fique a martelar-nos na cabeça. A história de Smith embrenha-se-nos no pensamento, sendo que Smith torna-se uma companhia no nosso dia-a-dia. Para não ficarmos a pensar sozinhos e reaprendermos sempre... com os marcianos.
post by fribeiro
Por outro lado, as novidades científicas do tempo foram ficando fora do contexto. Avançou-se bastante em diversas áreas do saber, mas esquecemo-nos de evoluir com elas. O homem que gere o conhecimento é o mesmo homem que há muito pouco tempo ainda vivia em cavernas e tinha escassos recursos em matéria de suportes ou criações imaginativas... O efeito moderador religioso era o único veículo acessível na partilha dos conhecimentos profundos do ser humano: a Bíblia executou essa missão durante dois milénios e a maior parte das pessoas do globo ainda se rege pelos seus príncipios...
Estamos em maré de sorte: há muita gente interessada em ler este livro. Poderemos fazer uma sessão da Comunidade de Leitores sobre ele e o autor. Portanto, haja sugestões

9.24.2003

Vamos lá a contar histórias importantes sobre as histórias que lemos... Ninguém precise de cingir-se ao enredo de um romance só porque foi outro a escrevê-lo e a inventar as personagens... Cada pessoa que lê um livro é já de si outra personagem que lhe entra para dentro. E que leva consigo a bagagem da sua experiência, o seu dia a dia e as impressões que os demais nele "inseriram"...
Estamos a atravessar um ligeiro impasse na leitura... Muito pouco tempo, e raras páginas por dia. É difícil gerir solicitações do dia a dia com apetências que podem esperar por melhores dias. A urgência de leitura de um texto que se tem ou a que podemos recorrer sempre que nos der na gana, faz com que descuremos essa nossa prioridade anterior, e lhe atribuamos menor estatuto. Mas não pode ser... É preciso ler todos os dias, sobretudo se é uma obra deste quilate. Robert A. Heinlein é um autor que nos exige dedicação pois também escreveu com entrega total. A quantidade de textos, títulos a que poderíamos chamar segundários, inverte os conceitos e contraria o ditado "que muito e bem não o faz ninguém". Ele escreveu muito, e, embora haja quem considere a ficção científica (FC) um género menor, fê-lo com preocupações literárias e estilísticas. Transformou e recuperou a FC, dignificou-a, deu-lhe uma função que mais nenhum outro género ocupou até aí: tornou-nos objecto científico, nós, os seres humanos, aqueles que ainda mal eram estudos em sociologia e psicologia. Disse-nos que podíamos trabalhar cientificamente o ser e o estar, bem como o sonhar colectivo, para além da medicina e da psicanálise, mas em confronto com outros e estranhos modos de estar e ser na realidade.

9.20.2003

Nada há de mais simples e arrebatador do que a ficção científica, que, afinal, não passa de um (mais um!) laboratório de filosofias de vida sustentadas em teorias cientificamente testadas, embora que noutros campos e áreas de conhecimento. Este "Estranho" contempla as Humanidades. Reinventa a modernidade através de um projecto de sociedade tão plausível quanto a americana, fortemente eivada pelo judaísmo bíblico, mas inverte o ângulo e faz também notória incursão naquilo que apenas neste século se veio a instituir: a globosfera - ou sociedade global. Se pensarmos que naquele tempo os computadores, televisão, telefones andavam ainda de gatinhas, maior é a nossa surpresa pelo poder de antecipação do autor. Haverá alguns reparos de maior quanto a esta afirmação?

9.19.2003

Vamos a ver: quem é o marciano que à em nós? Porque é cada um se sente diferente do outro? Que planeta é esse de que viemos e ao qual nos seguramos sempre que o entendimento da realidade se torna mais difícil? Porque queremos grokar a alma e com ela ela grokar o mundo? Será possível estabelecer vários canais de entendimento para diferentes objectivos e estádios de realidade?

9.18.2003

Para já um livro sobre o qual gostaria de chamar a atenção: "Um estranho numa terra estranha", de Robert A. Heinlein. É uma obra de ficção científica que esteve na base da geração das flores. Os pacifistas anti-vientnam fizeram dele a sua bíblia, e nele se geraram novas formas de fazer o jornalismo. A concentração dos mass media sobre a vida e o dia a dia de personagens da realidade política e social, acompanhando-as diariamente, minuto sobre minuto, sem despegarem, ficou moda a partir da data da sua publicação. A morte em directo, os Big Brothers e seus derivados, também aí beberam a inspiração. Além de que foi a partir dele que a água recuperou o seu sentido de culto: ser irmão de água, partilhar a vida e transparência afectiva, tornou-se uma essencialidade do mundo ocidental com repercussões globais. Mas há muito mais para ser dito...
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La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

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