10.15.2009

OUTRO MILAGRE EM FÁTIMA


Dizer que foi um passeio maravilhoso, não posso fazê-lo. Mas foi a minha (única) excursão casalense – até hoje. Daquelas com bastos idosos a arrastar os calços e exibir dentaduras, com alguns netos maiorzinhos, barulhentos, cá para os bancos de trás, onde as cigarradas e cervejolas rodam e giram, volteiam e regozijam numa fona, que nos põem tantarantantam. E os lugares da frente ocupados pelas meninas de setenta anos, entre outras melindrosas, que quando saem de casa, o que raramente acontece, gostam de ver por onde pisam, ind’assim o acidente mortífero as apanhe desacauteladas, ou sem tempo de fazerem o registo, para mais tarde poderem contar. «Já que pagámos, não queremos perder pitada», dizem elas.
A Fátima. Agora usa-se muito. Com passagem pelas grutas de Mira d’Aire e almoço num restaurante “típico”, ranchos folclóricos e bailarico, com parque privativo de estacionamento para camionetas bus-de-passageiros (sic), uma ampla sala prò corridinho e malhão, enorme, que dava para aboletar um regimento, até que fosse da GNR!, localizado num descampado à beira da estrada.
Partíramos de madrugada, com a geada embranquecendo os canaviais e ervados das valetas, e chegámos a Fátima pelas dez horas, mais coisa menos coisa, depois de termos unicamente parado para pequeno-almoçar num outro café-restaurante, também de beira de estrada e com quem os organizadores tinham familiaridades compensatórias, de comer e beber à borla, graças aos inúmeros clientes que lá lhe levavam. Lembro inclusive, que aí comprara os jornais do dia! De sábado. O Expresso, O Público e o DN. E que levei o resto do caminho a lê-los. Sem ligar a ninguém, cumprindo o meu papel de forasteiro entre forasteiros, nem permitir envolver-me nas conversas e anedotas da meia-camioneta adulta em que tivera lugar e me sentara. Ou sentaram, mais precisamente.
Pessoalmente, considerara a peregrinação como um importante passo dado no sentido da consolidação dum hipotético enraizamento à vida social do meio em que na hora habitava, Casal Parado – nome por que atende a quem entende. Mas em que nunca depositei grandes créditos e empenhos. Um que “ sim senhora, mas não me comprometam “, a que se costuma anuir com o afectado sentimento de superioridade de todos os urbanos cosmopolitas sobre os rústicos provincianos, acolhedores mas pacóvios, prazenteiros embora que intimidados. Um passar por entre eles sem lhes roçar nas vidas, corpos (e consciências). Um manter ser querer, de distâncias, céptico e asséptico, de vender Melhorais, aliás bem característico do estilo “se bem não fizer, mal também não pode trazer” da praxe em casos que tais.
Todos conheciam todos. Desde o berço e, provavelmente, até à cova. Salvo a excepção que eu era, que não conhecia ninguém, não obstante todos me conhecessem pelo que para eles ainda hoje sou: o vizinho novo – o alentejano. Em casa ficara-me uma cadela em trabalho de parto, e que por mim foi tida como única companheira certa durante esse ano. E, mais os seus quatro cachorros, com os quais me prendara no retorno ao lar. Família grande e de relações complicadas!... – dirão. Mas não. Aparte a ironia, ripostarei, de simplesmente suficiente. Cínica. E canina. Como todas.
Logo que chegados a Fátima, estacionando num dos parques mais próximos do santuário, fomos em bando até à capelinha e ouvir missa, num banho de homília para o resto do dia, depois, na igreja que encima (ou enfunda) o sacro recinto. Mas feito isso, tirando uma ronda de reconhecimento pelos locais de predilecção da plebe, desde o museu de figuras de cera até aos quiosques de bijutaria religiosa e “recordações”, pouco mais havia que ver e fazer, no que, por conseguinte, aproveitei aquele tempo para dispersar e desopilar um pouco, aliviando-os da minha inocentemente confrangedora companhia, e girei para onde calhou e as pernas me levaram, sem contudo me afastar sobremaneira da serventia de acesso à camioneta, ind’assim me não esquecessem na abalada.
Era uma data sem significado litúrgico relevante, bastante longe dos trezes de Maio ou de Outubro das aparições, e dado o cedo da hora, sem grande movimento ou afluência peregrina. Uns raríssimos visitantes que se faziam transportar em carros particulares, além dos autóctones que andavam a tratar de vida por essas bandas. Beatificamente. Por sinal, esparsos transeuntes empenhados e compenetrados nos afazeres que os esperavam, ou nos trabalhos e caprichos do lar, doce manancial de arrelias e desencontros, que recentemente haviam abandonado.
Portanto, com medo que se me antecipassem no retorno e os fizesse esperar (aos meus companheiros excursionistas, claro está), fiquei-me por ali, sentado próximo do estacionamento, no muro que ladeia o recinto do santuário, ao lado esquerdo, logo no início dele, aguardando a ordem de envio para a rapadela do tacho. O nevoeiro levantava-se pouco a pouco. E as baforadas das minhas (cismáticas) cigarradas de espera, deixavam no ar um fumo espesso e baixo e baço, a pairar expectrante (de expectante espectro), nos tediosos minutos, desenhando figuras diluentes no meu fantasmagórico imaginário. Na minha irrealidade sonambúlica, pois não estava habituado a levantar-me tão cedinho!...
Ao certo – que provavelmente a impaciência, reforçada pelo frio, esticou-os –, decorreram uns bons trinta minutos, antes que alguém da minha excursão desse sinal de vida. Só que, entretanto, nasceu o milagre!...
Eu explico.
A determinada altura da espera, maré de boa venturança, e como principiava perto dali a pista dos supliciados rastejantes, dos pagadores de promessas que se arrastam de joelhos até ao núcleo do sacrossanto recinto, que os mais radicais suplantam ainda com a subida da escadaria, foi-me propiciado o espectáculo, deveras exótico e invulgar, de assistir à troca de calças por uma jovem de vinte e piques anos, a fim de melhor e mais confortavelmente cumprir os votos prometidos à Nossa Senhora do lugar. Chamemos-lhe Mariana. Ou Lurdes da Conceição. E era de compleição atlética, entre o metro e setenta e o metro e oitenta de altura, morena, rosto angular, sobrancelhas espessas, olhos negros, lábios de desenho acentuado, carnudos e salientes a emoldurarem a boca larga de dentes regularmente brancos e favudos, com cabelos castanho-escuros, lisos, descaídos até meio das costas, penteados singelamente de risco ao meio. E encontrava-se acompanhada de uma senhora cinquentona, de óculos com aros quadrados, reboluda e anafada, meã de altura, e outra rapariga mais nova, a rondar pelos dezoito anos, de jeans, louraça nos encaracolados da permanente, ténis Nike, que nunca tirou as mãos dos bolsos do kispo verde que trazia vestido e abotoado, e que me deu a impressão de ser alguma prima da primeira e sobrinha da segunda, não só porque não levava a situação muito a peito, como também por apresentar aquele ar de quem está ali por acaso, a ver as modas, e não tem grande coisa a ver com aquilo.
Pois, à morena, assim que lhe apercebi os propósitos de trocar de calças, ali, justamente à minha frente, nos piques do trombil, quase na ponta do nariz, nunca mais lhe tirei os olhos de cima... Havia de o fazer, sim senhora, mas não sem que me consolasse e brindasse o olhar (e a solidão) com a visão céltico-venusiana de um bom naco das suas coxas e, glória das glórias!, até das suas afrodisíacas cuequinhas, possível sendo, coisa deveras importante para um filho único de pais idosos – qual maduros, qual quê! – nado e (amargurado) crescido em lar pouco frequentado por primas novas ou vizinhas gentis, como podeis calcular.
Neste somenos, quando havia passado para aí um bom quarto de hora, do restante tempo para o retorno à camioneta dos meus piedosos companheiros, levei-os eu atenteando a coisa, concentrado, embebido, embevecido e atento, deslocando-me ora para a direita, ora para a esquerda, conforme e contrário à posição da prima, e desde que esta se interpusesse entre ambos ou não. Creio inclusive, que a louraça se apercebeu suficientemente bem dos meus legítimos propósitos, visto que, no auge da refrega, piscando-me um olho cúmplice, parou de saltitar de um lado para o outro, quedando-se estática e apreensiva, um nadinha arredada, para assim me não diminuir o campo de visão, e mais tranquilamente poder desfrutar o gozo às poses da pagadora de promessas. Atitude, aliás, que considerei bastante acertada e realista!... Já que é assim que se dão grandes passos no sentido do futuro... Ou até na criação de uma sólida, promissora e fértil amizade. Quem sabe!
De mãos nos bolsos do Kispo, com a gola levantada até às orelhas, e o cu bem firmado na granítica pedra do muro, a que as calças de ganga reforçadas por felpudas ceroulas não autorizavam repassar e transmitir o frio dos estofos do canapé, em sumapedra de orar a Deus, inclinando ligeiramente, ora para a frente, ora para os lados, franzindo as pálpebras para melhor fixar a imagem, dizia para comigo mesmo que a moça era, além de uma estampa em desenvolvido e aperfeiçoado acabamento, também uma autêntica brasa a que nada faltava para me pôr a ferver o caldeirão das estrofes à temperatura das esterilizações. Altota, tronco possante, abobadado, ombros ondulados sem enchumacices, braços roliços mas compridos, e seios volumosos, empinadotes prà frentex, sob a blusa de lã de gola alta, azul com losangos vermelhos, verdes e brancos, que deixava adivinhar os mamilos empertigados, quais fontes santas de jorrar tentação no Agosto ressequido da minha abstinência. E comedimento. Assim mesmo: rechonchudos e suculentos, determinados e firmes, recheosos, polpudos e macios, em fartura e grande quantidade, que é como se quer tudo o que é bom! Porque unicamente aquilo que não presta se quer pequeno e de curta duração.
À “tia” ou “mãe”, como me quis parecer ser a graduação hierárquica familiar da mais velha da tríade, tanto se lhe dava como se lhe deu, de compenetrada e imbuída que estava pelas exigências e apelos da fé, que muitas vezes nos isola do mundo e nos faz ver somente aquilo que queremos e cremos ver. Demais a mais, pelo que se entretinha segurando, entre mãos dedilhado, um terço de contas escuras, enquanto fervorosa mexia os lábios, embora que (demasiado) silenciosamente para mim, que tendo para a rapacidade sonora, numa velocidade e movimento, que acima de tudo o mais demonstrava ser alguém entusiástica e devota, duma fé aplicada e diligente.
Primeiro, a donzela em causa, procurou e retirou de um saco de plástico amarelo as calças de ganga, flectindo o dorso e realçando as ancas, avolumadas pela posição, e cobertas por outras de flanela, estimulando-me a fantasia, fazendo-me antecipar em imaginação o seu espectacular e maravilhoso recheio. Foi então aí que comecei a respirar com intermitências e picotado, engolindo em seco e amiúde, de expectativa e delírio!...
Depois, retirou do mesmo saco umas joelheiras de guarda-redes, esponjosas e brancas, com bordo e emblema vermelhos; sacudiu as calças de ganga e esticou os braços para a frente, com elas seguras, balouçando, inspeccionando-as assim, estendidas, pela dianteira e por detrás – nada na mão, nada na manga!... –, para, em seguida, suspendendo-as apenas com a mão esquerda, principiar a desabotoar e correr o fecho éclair das que tinha vestidas, com a outra mão livre.
Sustive a respiração. Fixei o olhar e retesei o corpo, qual felino antes de executar o salto mortífero sobre a presa descuidada. Vi-a descalçar os sapatos sem se dobrar, com a ajuda do bico do pé pressionando sobre o calcanhar e tacão contrários, e, de repente, SENTI (repare-se que não vi simplesmente, mas senti autenticamente, pois continuava segurando, pela cintura, com a mão canhota apoiada no quadril, as calças que ia vestir, e porque de perfil, não me facilitando ver bem para além delas) as calças usadas deslizarem-lhe, descerem-lhe pernas abaixo, caindo amarfalhadas à volta dos tornozelos. Contudo, exactamente nesse instante, vi-a empertigar-se, metendo a barriga para dentro, enquanto com ambas as mãos tentava, esforçadamente, abotoar as calças de ganga!! De seguida, dobrou-se pelos joelhos, calçou e atacou os sapatos, dando início ao pagamento da promessa, arrastando-se numa velocidade pouco acelerada, mas bem ritmada e segura.
Como foi que ela conseguiu vestir as calças? Deu um salto? Estavam descosidas pelo lado contrário ao meu, àquele em que me encontrava? Enfiou primeiro a perna esquerda, tapando-me a visão da nudez da outra?... Não sei! Sinceramente, não sei. Não vi. Mas juro-lhes: a meus olhos não foi dado enxergar o mais ínfimo pedaço de pele ou de roupa interior. Nada. Rien. Nadica. Nadinha. Absolutissimamente. Foi a elipse mais linda, mais bem conseguida, a que já alguma vez assisti. Se é que assisti... – Ou se é possível existir uma assim, de tão perfeitinha!
Dirão: “Tu é que deixaste de ver, passou-te uma coisa pela vista, apagaste-te, entraste em coma de pouca dura, parou-se-te momentaneamente a vida “, ou qualquer outra baboseira do género. Todavia eu tenho a certeza de que nem pestanejei. De tão atento e compenetrado que estava.
Daí que, ainda que venham com os argumentos que vierem, dos mais fantásticos aos mais realistas, pensem aquilo que pensarem, provem-me aquilo que me provarem, nunca conseguirão – e eu conheço-me bem... Que quando se me dá a ver umas boas pernas, não brinco em serviço! – destruir-me esta fé que se me meteu: O TERCEIRO MILAGRE DE FÁTIMA ACONTECEU.
E todos os que duvidarem, é porque não fazem a mínima ideia do esforço e concentração que despendi, nem o calibre da minha acuidade visual, que nunca careceu de lentes, para detectar uma agulha a metros de distância, e por mais emporcalhado que o palheiro estivesse. Ou porque são incrédulos, e deles nunca será o reino. Dos. Céus... (Aleluia, senhor!!)
Quando o pessoal voltou, não obstante a minha prosternação, nada notaram de estranho. Para eles era naturalíssimo que eu estivesse a ver afastar-se, de joelhos, uma jovem peregrina em cumprimento de promessa. Mas eu, pecador confesso, durante o almoço, e para o resto da viagem, jamais abri o bico...
É desde então que me ficou, este jeito calado de ser!...

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