5.25.2005

A SINISTRA


Entre o arvoredo da alameda do solar dos Tocados, uma sombra esgueirou-se. Lesta, furtiva. De silhueta feminil, coberta por gabardina creme. Sabia-se abrigada das vistas indiscretas dos comensais. Mas ao dispor de quem a observasse de fora do gradeamento. E tal incomodava-a sobremaneira.
Viera ao entardecer, por julgar assim mais fácil de despistar qualquer semelhança com Vitória, que lhe desmascarasse o parentesco. Preferia ficar incógnita. Pelo menos até poder encontrar-se com ela a sós e explicar-lhe, dum modo credível, primeiro a sua presença, e depois as razões por que a abandonara tão pequenina, no santuário, aos braços dum desconhecido. Mas a tarefa avizinhava-se-lhe de incalculável dificuldade.
Chegara na camioneta da tarde, por volta das cinco, quase sem bagagem, só com um saco de plástico onde trazia o pijama, duas mudas de roupa interior, escova e pasta de dentes. E uma mala de cabedal a tiracolo, em castanho desbotado que nunca largava. O telemóvel, algum dinheiro em nota e moeda trocada, cartão de crédito e agenda electrónica. Para não levantar curiosidades, nem suspeitas. Demais a mais, que chovia e fazia frio, o que lhe possibilitou recorrer de um lenço de cabeça de seda castanha, a condizer com a sacola de cabedal.
Não dera nas vistas, e assim queria manter-se – em anonimato. E se em verdade Vitória a não conhecia, ela tinha-a acompanhado mais ou menos discretamente nos momentos importantes, como passagens de ano e classe, visitas de estudo e férias, viagem de finalista, recebimento de diploma e exame para a carta de condução. Ao princípio receosa, numa timidez e sentimento de culpa que a atabalhoavam, mas evoluindo lentamente em à-vontade, ousadia e maquiavelismo. Até que ganhara coragem e decidira abrir o jogo. Primeiro por iniciativa própria, todavia no presente por temor. Medo por ela, ou do que lhe pudesse via a acontecer se o seu pai biológico descobrisse o paradeiro, agora que já tinha conhecimento da existência duma filha que nunca quisera e jurara matar. O que sem dúvida faria, e para tanto puseram diversos dos seus caninos pisteiros na peugada.
Tinha que avisá-la do perigo que corria. Tal como igualmente carecia de justificar-se e receber o seu perdão pelo abandono. Porque dum momento para o outro podia tornar-se tarde demais. E a cada hora, cada minuto, mais perigoso se tornava aproximar-se dela. Alguém lhe montaria guarda para a eventualidade, embora remota, de ela lhe desvendar o seu paradeiro. Uma ponta solta, que poderia transformar-se no fim daquela por quem tanto sofrera para salvar.
Se como ela Vitória era ruiva e de olhos verdes, rosto oval pintalgado de sardas minúsculas, que atribuíam um ponteado de trama gráfica ao aveludado da pele rosada, quem a não tivesse conhecido anteriormente, dificilmente lhe atribuiria semelhança por essa via, pois que pintara o cabelo de preto azeviche e pusera umas lentes de contacto que lhe alteravam a cor da íris para castanho-escuro, quase negros, e que aliás complementara com intensivo bronzeado artificial. Contudo, há traços que dificilmente se apagam, sem plásticas radicais ou deformações acidentais. E esses, como a testa abaloada e alta, as arcadas supraciliares de fundo e marcado relevo, o pescoço esguio, o queixo levemente arrebitado e o nariz cleópatro, o jeito de andar e os trejeitos de ave assustada que lhes eram comuns, mantinham-se visíveis e detectáveis a qualquer observador avisado. Mas o pior era que, se algum dos farejadores que o pai pusera em sua perseguição, aportasse a Casal Parado com uma fotografia dela da época em que engravidara, cuja idade seria idêntica à que a filha teria actualmente, por volta dos 23 anos, e a mostrasse aos habitantes, inclusive aqueles que jamais haviam privado no solar, todos seriam unânimes em afirmar que a da foto outra não seria senão Vitória. O que representava uma enorme derrota para o seu esforço.
Então decidiu-se. Contornou a ala direita do palacete dos Tocados, sempre ao abrigo da vegetação, e experimentou a porta das traseiras, a da cozinha, que a debalde tentou abrir. Fez o mesmo à janela, dando-lhe breves mas convictos safanões, e esta cedeu. Cedeu e ruidou, num guincho de dobradiças com falta de óleo. Esperou que algum barulho ou presença afectassem tê-la denunciado, em imobilidade de estátua de feira, e só depois de certa que não tinha sido notada, é que ousou escalar ao parapeito com o auxílio duma caixa de cerveja vazia. Saltou para o interior e aquietou-se, não apenas para se habituar à escuridão da dependência, mas também para melhor escutar de onde e em que qualidade eram os ruídos de presença, que se faziam ouvir ora em surdina, ora com desenvoltura e fundo musical.
Afoitou-se à porta de ligação com o bar, entreabrindo-a, e espreitou, tentando ver ao máximo sem ser vista. Descortinou dois homens de perfil posterior, sentados a uma mesa comprida, que emborcavam cerveja enquanto olhavam a televisão, e de cuja eram os sons que escutara ao saltar para o interior. E uma mulher, de porte senhoril, xaile traçado e semblante sereno e altivo, que os imitava, embora que mais visível porque de lado. Retraiu-se, atentando para não fazer barulho, e cuidadosamente descalçou os sapatos, que meteu nos bolsos da gabardina, enquanto ginasticava os dedos dos pés, ao aperceber-se do frio das lajes do chão. Um arrepio percorre-lhe o corpo, mas que não adicionou importância maior.
Ao seu lado direito, entre a escadaria para o piso superior e o balcão, uma pilha de caixas de refrigerantes, a que Tony Emanuel subtraía de tempos a tempos uma, que tudo indicava ir depositar na despensa, encobri-la-ia dos olhares, e o pilar central permitir-lhe-ia alcançar daí a escadaria sem ser detectada, se fosse ligeira e silenciosa no q. b. que a operação requeria. Assim, mal o troca bilhas se apoderou duma grade, correu na sua retaguarda, agachou-se ao abrigo das restantes, e em dois pulos alcançou as escada, que subiu a quatro membros, sob a protecção da murada de corrimão. Mas se não foi vista por ninguém, o facto não se deve tanto à sua ligeireza e instrução de guerrilha, quanto à hora e momento, que providenciara a transmissão televisiva da telenovela diária.
Finalmente a recato, ergueu-se bípede como no princípio, em verbo de busca da sua doce, inocente e ingénua filha. Sabia encontrá-la aí, sobretudo porque a observara da rua, a umas das janelas sacudindo um tapete felpudo. Percorreu a penumbra do corredor, até uma das altas portas, por cuja rasteira fresta se escoava ténue esguicho de luz. Encostou-se-lhe como quem se masturba na maçaneta, espalmando-se nela, tentando escutar o máximo através dela, dado ser-lhe impossível ver por ela com igual resultado. E em seguida rodou o fecho de uma vez, empurrou para cima, içando a porta para que não rojasse no chão, e entrou decidida. Se o pior ainda estivesse para vir, ali estava para o receber de frente e faces abertas. Ânimo leve e busto erguido.
Vitória estava de cu para o ar, vasculhando na última gaveta da cómoda por um par de cuecas lavadas. O tou-tou arregaçado, as nádegas vermelhuscas e húmidas da recente esfregadela, a púbis perlada de cristalinas gotas de água. Angelical e incauta, nem se apercebera da entrada da outra. Esta tossiu, para fazer-se notada.
«Deixa, não te preocupes: sou tua mãe.»
A surpreendida surpreendeu-se ao ouvir a voz duma estranha, mas não se sentiu com moral nem posição para gritar. À progenitora também as expectativas tinham saído goradas: é que não fora essa a situação que idealizara para lhe revelar o segredo da maternidade. Um momento sonhado anos a fio, sublimado e antevisto, quase sempre intensamente reforçado pelos finais dos filmes da TVI. Principalmente porque sabia que nunca seria possível uma aproximação mais populista, em formato Ponto de Encontro com souvenir, beijos e abraços, acompanhados à palmatoada e comovidos acordes. Mas a vida é o que é, e raramente são os protagonistas a escrever o guião.
«Quem é você?» Foi a única frase que lhe ocorreu dizer. Os braços suspensos, num movimento interrompido, o queixo quase a tocar o ombro esquerdo, os olhos num viés de esbugalhante irritação.
«Sou tua mãe, querida», repetiu a aparição. «Maria da Conceição do Imaculado, tua mãe.» Insistiu, apresentando-se.
“Provavelmente é piada”, teria a soberana pensado se ao momento estivesse em posição de o fazer. Contudo ergueu-se, baixou o tou-tou de tafetetá, que aliás nem era dela, pois fora Rebeca que lho emprestara para ela mais de acordo com a coreografia doméstica fazer a limpeza do quarto, alisou-lhe os folhos e experimentou enfrentar a intrusa dentro dos parâmetros duma igualdade possível.
«Muito prazer. Vitória Emanuel Tocado», retribuiu ela, apresentando-se também. «Como entrou aqui?»
«Pela porta, depois de ter subido as escadas» de gatas, apeteceu-lhe adiantar, a fim de se justificar, tal como de noticiar como à breves minutos atrás também se vira em indecorosa pose. Mas não o fez e preferiu explicar-lhe o móbil da incursão. «Estou aqui porque sou tua mãe, e o teu pai já sabe que existes.»
«Pois sabe. Foi ele quem me criou», sublinhou com desdém a sublimada, referindo-se a Tony do achamento.
«Não, esse não é teu pai», afivelou Maria o raciocínio, para melhor apresentar a exposição dos factos. «Esse apenas te recolheu com um dia de vida.»
«Mas não morreu. Como sabia que ele estava doente? Que os médicos lhe tinham dado nem mais um dia?» Cepticou a jovem.
«Não sabia. Tu é que tinhas um dia», esclareceu a da concepção. «Nasceste nos arredores, na Quinta de Santa Clara onde passei seis meses refugiada, em turismo rural de habitação. Temia que teu pai me fizesse abortar. Ou pior ainda: me limpasse o sarampo.»
«Ah, então é por isso que fiquei toda pintalgada e sardenta... Ainda por cima estavas doente!» Lamentou-se a desafortunada. «E como temias que eu te morresse no colo, meteste-me nos braços do primeiro que apareceu!...»
«Não, filha; não», implorou Maria aflita pelo rumo que a conversa estava a tomar. «Senta-te, querida. Deixa-me explicar. Eu conto-te tudo.»
E sentaram-se ambas sobre a cama. Maria, segurando umas das mãos de Vitória entre as suas, e a emoção embargando-lhe o desembaraço da voz.


CAPÍTULO UM
(...) Não perca! Já está pronto a servir; basta você encomendar, para cair bem quentinho!...

5.18.2005

À MESA COM A TV
1. FÉNIX



Quando desceu da bicicleta, Isadora do Carmo reparou no vulto escuro e peludo do animal entre as ervas, junto ao muro de pedra solta. Aproximou-se, descontraída, sentindo nos músculos das pernas o descongestionar de alívio ao esforço despendido, e notou que era um canino, enroscado sobre si mesmo. Soube que estava vivo pelos arrepios e tremuras que lhe estremeciam o dorso encurvado. Acautelou o andar, para o não sobressaltar, mas continuou a dirigir-se-lhe determinada e afoita. À distância de uma passada soube que o acordara, porquanto este a olhara mortiço e pesaroso, quase desanimado, como quem já não teme nem espera nada da vida. O negro da íris, baço e sem brilho, ofuscado por uma cortina de felpa lacrimosa, toco-a conforme um SOS de muda aflição. Então agachou-se em bicos de pés, apoiando as nádegas sobre os calcanhares, a fim de o atentar melhor. Pareceu-lhe inofensivo e fez-lhe uma festa com a mão direita, acariciando-o na testa, entre as vistas, com apenas dois dedos: o indicador e anelar grande.
Como a posição e irregularidade do piso lhe dificultavam a aproximação, desceu os joelhos à terra, debruçando o tronco para lhe ficar perto. E o animal cerrou as pálpebras em assentimento e suspendeu o tremor. Sob o pêlo preto, eivado de branco sujo, notavam-se-lhe os contornos da espinha dorsal e costelas, em resultado da evidente magreza. Considerou-o faminto mas não doente, não por ter qualquer prova disso, antes devido à sua intuição protectora. Franziu o sobrolho, ponderando na atitude a tomar, alargou a carícia sobre a cabeça com a palma a mão, e decidiu que o bicho apenas carecia de cuidados e alimentação. Ergueu-se, serena e segura, num gesto comedido iniciando o impulso com o auxílio do braço esquerdo, a mão em mola cónica apoiada no solo, e encaminhou-se para casa, percorrendo a pé o resto da subida até ao Monte, onde habitava. Podia tê-lo feito de bicicleta, mas receou que o cão se assustasse com a geringonça, ao pô-la em movimento.
A meio do trajecto, Isadora torceu o pescoço em viés canhoto, fixando intencionalmente a figura que deixara momentos antes, em soslaio contemporizador, num derradeiro mas simultaneamente esperançoso «volto já», qual promessa subentendida de quem superiormente prefere cumprir do que prometer. O cão, que mais tarde veio a confirmar-se ser uma cadela, olhava igualmente fixa a silhueta que o visitara na manhã arrufada e, embora afastadas por dezenas de metros largos, o que viram uma da outra foram os clarões empáticos que as pupilas de ambas emitiram, quais flashs minúsculos mas de intensa luminosidade e significado, curtos e breves, e todavia febris que nem gritos de vida.
E foi aí, nesse circunstancial e rigoroso segundo, décimo cagagésimo de segundo, que a comunhão afectiva, sentimental, passional, entre os corações destes dois seres se configurou em amor autêntico de primeira vista que, para não fugir à regra, acontece sempre na vez seguinte ao encontro ou registo inaugural. Ao olhar de confirmação e quando ambas as partes se abalançam na entrega, se põem entre si a usual questão «se entrei num sonho, será que estou dormindo ou acordado?» e justamente se declaram rendidos perante a coincidência de terem pensado ou visto o mesmo: o seu ser íntimo e essencial a mergulhar de cabeça nas profundidades anímicas do Outro.
Quem confortara quem? Que esperança eclodira naquele instante? Todos os seres são iguais desde que capazes de prazer e de dor, e se vejam assim interessados em partilhar a felicidade e harmonia globais, numa razão justificável por contribuírem para o equilíbrio ambiental, na salvaguarda pelo respeito e direito à inovação e liberdade existenciais. Portanto, Isadora do Carmo, transpondo a porta de casa para refazer a caminhada anterior, trazendo consigo uma lata de carne picada (em conserva) e o tosco prato de barro, com falhas no bordo estampado com motivos campestres alentejanos, ocres, amarelos rendilhados com formas florais azuis e ceifeiras roliças reluzentes, pressentia estar a executar o inequívoco gesto de uma ordem natural que assiste à simbiose do universo: ajudar a eternizar a vida, seja qual for a maneira com que se manifeste e a diferença que a caracterize, espécie ou género, aparência ou designação, que esta encontre para se revelar.
Não tinha além de treze anos mas parecia uma mulher acabada, tanto nas particularidades feminis que lhe arredondavam o esqueleto, como na postura erecta e desenvolta, compenetrada, confiante, ou na expressividade humana com que reagia à solicitações do quotidiano. O cabelo longo, anelado, escorrido e candente sobre o dorso, castanho com laivos dourados, balouçava na passada acompanhando-lhe o ritmo e sublinhando-lhe a decisão. Estava de férias escolares, em veraneio desocupado, e com o dia por conta própria, livre de adultos até ao entardecer, que era quando estes se soltariam dos afazeres profissionais, fechavam a porta do trabalho para abrir a de pessoas de família. Os do activo, que outros, como o avô Alberto e os vizinhos António Crespo e Alice Rovisco, aposentados todos, raramente saíam do Monte, acrescentando-o com suas discretas presenças como se lhe pertencessem, fossem elementos figurativos de sua natureza e composição, integrando no quadro as linhas mestras duma permanência original e humanizada, tal como no princípio provavelmente fora, enquanto núcleo social de resistência à solidão e isolamento campesinos.
O saibro esboroava-se e rilhava em sussurro sob as solas das botas de saltos rasos, cano curto e atacadores garridos, enquanto antegozava o momento de ver o canino saciar-se. Abocanharia tudo de uma vez ou morderia temerosa e timidamente o repasto? Demonstraria gratidão ou partiria depois de alimentado? Atenderia ele as suas expectativas e interrogações? A camiseta azul marinho com flores estampadas com que protegia o tronco e busto pareceu-lhe subitamente quente e apertada, talvez consequência directa da inquietação que se lhe avolumava no peito. Todavia não apressou o andamento, o que seria uma resposta compreensível perante a ansiedade suscitada. Antes o retardou, estimando que a surpresa lhe não defraudasse o prazer, por antecipação intelectiva. Ou adiantamento. E as saias compridas, de corte e desenho afro-asiático, semelhantes à indumentária cigana, colaram-se-lhe às coxas firmes e suadas, pelo exercício do pedal, permitindo adivinhar a sensualidade latente à sua adolescência não reprimida, mas sacudiu-as maquinalmente, distraída e sem esmero de coquete, somente num descarrego de preocupações irrelevantes.
Mal lhe chegou junto, o faminto saudou-a com subtil bater de rabo na erva rala da valeta. Outrora secos e turvos, os seus olhos exibiam outrossim a húmida luz da familiaridade. Abriu a lata, metendo o dedo e puxando o aro metálico tipo espoleta, e verteu no prato o conteúdo, usando a tampa laminada como instrumento cortante para desfazer o rolo compacto e avermelhado da carne. Agachou-se novamente, em posição igual à que inicialmente adoptara, depôs-lhe o prato à beira das ventas, com o fito de que a intensidade do odor encorajasse o recalcitrante esfomeado a tomar a iniciativa desejada de lutar pela sobrevivência, no que não foi prontamente satisfeita. Mas após escassos minutos, que lhe pareceram bem maiores que os costumeiros da retouça, a reacção esperada adveio numa lambidela desempenhada, pouco convicta, ainda que prometedora.
Então, Isadora regozijou-se e suspirou de alívio. Comprazida assistia ao esforço do canino a esticar o pescoço para o prato, a insistir na tentativa de abocanhar e lamber o acepipe. De princípio bastante contrafeito, sacrificado, acelerou contudo à medida que a salivação o reanimava, para concluir finalmente no abocanhar de um naco mais solto, que engoliu a custo. E isso despertou-lhe a velha sabedoria da espécie: a energia recupera-se consumindo-a, que é a única maneira viável de recapturar o seu teor e impulso.
«Não seria exagerada a quantidade, para quem de há muito não provava sustento? Se fosse uma pessoa, era-o sem dúvida», pensou. «Mas é um cão, e estes estão preparados para comer quando há, até que tenham nova oportunidade de o fazer...», confiou ela.
Contente com o que via, desviou a atenção brevemente, e reparou na bicicleta. Mirou-a sorrateira e imaginou-se a montá-la, a pedalar nela pelas veredas e caminhos da herdade, acompanhada pelo cão, a par de si, em corrida pinoteada e feliz. E a vontade, ou o desejo que tal se tornasse realidade, trouxe-lhe renascida uma imensa ternura que lhe alastrou pelo corpo, lhe preencheu de alento cada átomo dele e se fez líquida por altura dos olhos castanhos de veludo avelã, de onde brotou em forma de lágrimas proféticas, a rebolarem-se cristalinas e reluzentes nas faces redondas de seu oval rosto, estremecidas pelo chorar ridente do catártico bem-querer, enquanto contemplava a comensal, que enfim evoluía a pratos limpos!...
Finda a refeição recompenso-o com festas de mão cheia sobre a nuca até constatar que adormecera. Levantou-se em seguida, recolhendo prato e lata vazia, que o campo não é lixeira nenhuma como o interpretam alguns citadinos, mas o jardim natural, único por sinal, que a biosfera nos dispensou (e em boa hora!), para que dele cuidássemos e usufruíssemos. E retomou o velocípede, embora sem nele se montar, preferindo conduzi-lo a seu lado, estrada a cima.
O muro separava-a das pocilgas, de onde soavam alguns grunhidos dos suínos a registar o seu triunfo, na azáfama de forrar os interiores ao couro. Ao topo dele, estacando o ângulo dos chiqueiros com a parede que circunda o Monte e protege o pátio no sítio onde as casas não servem igualmente de muralha, o eucalipto altaneiro platinava de tremeluzente e oleoso verde os princípios do céu. Mais adiante, marcando a entrada do recinto em volta do qual as casas se dispõem, no lado oposto ao forno, uma figueira abebreira pingando abêberas, vasculhava o ar circulante atenuando a brisa com suas largas folhas. E aí chegada, ponto a partir do qual deixaria de ver a estrada de macadame por onde viera, não resistiu a deitar a última mirada pela valeta, a confirmar se a sua protegida se mantinha no mesmo lugar. Mantinha. Portanto, depois de estacionar o veículo sobre a árvore, dirigiu-se à fonte, cuja carranca de sol bochechudo esguichava água da nascente no ocidente do pátio, chapinhar o rosto e lavar o recipiente em que dera comer ao animal sem-abrigo.
Se ao que naquele momento acontecia, por exemplo pudéssemos dar um rótulo, atribuir um nome, um logotipo, pelo que ali eclodia, explodia, da magia da manhã num monte quase silencioso, onde apenas o rumorejar da água caindo da bica para a tina do fontanário, o arrulhar dos pombos nos beirais dos telhados e o ciciar das folhas sob o efeito da aragem compunha a sinfonia do quadro, lembraria por certo a presença animada de outra forças que não as da alma humana, o grito interior a cocegar-nos os tutanos, formigando esperança e contentamento em cada célula, escolheríamos certamente uma imagem de brasa rejuvenescida a crepitar das cinzas do quotidiano, alguma centelha incandescente no emaranhado dos dias, como feitiçaria de célticas e misteriosas fadas.
Por isso, Isa planava que nem uma águia dentro do universo de si mesma, confortada pela constelação de promessas que lhe estrelavam o íntimo, o que se reflectia no rosto, dando vida às que das faces soletravam os pigmentos duma ancestralidade africana. Desconhecia o que lhe acontecera, mas tinha a certeza de um porém: que se tornara outra. Pôs o prato a secar, no poial do forno, e correu à esquina dele, para se certificar se a mancha escura na relva se mantinha “acesa”. As pernas agiam-lhe sozinhas e a tranquilidade matinal conspirava no enleio apenas identificável para os que sabem que o amor, na sua excelência e plenitude, vai muito para além das espécies e dos géneros, pois é como uma seiva a borbulhar de vida no interior de cada ser animado, pertença ele à flora, à fauna ou à humanidade. Que há um dia em que transborda em lava quente e sai pelas pupilas a buscar conforto e ternura nas borbulhas alheias, que estouram de repleta felicidade como balões de espuma, para retornar multiplicado, ampliado, fecundo e sequioso de novas viagens e escapadelas. Daí que lhe fosse difícil parar quieta um momento, a fim de obrigar-se a pensar na forma de convencer os pais a permitirem-se mais um elemento na família! Porque, enfim…, ela não conseguia deixar de pensar que encontrara o outro lado inseparável do sonho, que é quando as fantasias e aspirações, de miríades que são, confluem para uma realidade só: uma companhia essencial, testemunha e cúmplice própria para cada um dos seus instantes.
Então decidiu que não estava em condições condignas de receber um visitante ilustre com tamanha envergadura e patente, considerando que se achava suada e suja demais para anfitriã, e entrou em preparos de alindamento, duche e mudança de roupa, a abonecar-se como se enamorada, cuidando-se com esmero, no intuito de receber honrada e condignamente o ministerial hóspede: um cão esquelético e abandonado. Exactamente.
Escolher a indumentária começou por ser um divertimento que depressa se transformou em tortura. Qual é o traje oficial para uma pessoa se apresentar perante o animal de nossa eleição? Deve ir a rigor, com a usual austeridade das fardas pardas de ver a Deus? Ou, por outro lado, roto e esfarrapado como quem anda na apanha da azeitona? E o banho... Deve tomar-se com sabonete, loção perfumada ou sabão macaco? O cabelo pode ir molhado e enleado, em propositado desleixe, ou seco, solto, brilhante e penteado? O problema avolumara-se tanto, fizera picardias tamanhas no armazém das conjecturas e saberes, que ela teve - teve, não: viu-se obrigada a tomar a atitude radicalérrima - de seguir o tradicional costume (aliás sobejamente prático) de sacudir os ombros à aflição com a resposta do bom senso: porque logo que algum momento especial nos intimida devemos equipar-nos com o à-vontade diário, utilizando a vestimenta do hábito, aquela que nos fornece o conforto e galhardia de todos os dias. O que nela, óbvio está, passava obrigatoriamente por saias compridas, folgadas, rodadas, largas, e camiseta colorida de tecido fresco e modelo de corte flexível, fácil nas manobras e aconchegante no recato, porquanto naquela época do ano, em que sobretudo se aproveitava da liberdade para crescer auxiliada pela acção e movimento, ora da marcha como do pedalar, na escalada aos penedos e serranias como na subida às árvores de frutos, em cujo cume se encontram sempre os mais desenxovalhados e suculentos, como na ajuda aos idosos nos carregos da lide, não era de descurar o apego à desenvoltura. Principalmente porque amadurecer é um petisco confeccionado, apresentado, servido e ingerido sem cerimónias! E os salamaleques inoportunos apenas amaneiram e atrapalham a presteza a quantos se querem activos, operantes, participativos, assumidos e compenetrados nas tarefas do tornar-se uma pessoa também gente...
Mas resolvida a diferença não era atreita a apreciar os louros do negócio, quer no admirar-se narcísica dos espelhos, como no alisar-se em demoras de vincar os perfeccionismos, e de ápice em ápice cruzou o pátio depois de o ter feito à ombreira da porta de casa, e deste ao acesso saibroso do caminho até ao vulto peludo, como quem tem asas nos pés, ou na alma diz-se, se é esta quem afinal caminha, embora que para mim, que sou fora do tempo e das modas, antes me queiram parecer que elas iam sim no coração, pois que era este suponho quem a impulsionava que nem um balão de ar quente, a fazia voar, ir por cima das coisas térreas e superficiais, a planar, a deslizar lesta, ou a contrariar a importância da gravidade e soturno tic-tac do tempo. Sabe-se!... Ou por outra: desconfia-se.
O bicharouco acordara assim que a ouvira e ensaiara levantar-se, num gesto de gratidão e gentileza, demonstrando que ainda não perdera as boas maneiras, não obstante a degradante miséria em que se encontrava, o civilizado saber fazer sala cavalheiresco de içar o respectivo traseiro quando alguém se nos dirige, a atenção ou a palavra, se caso dela é, mas desistiu por insuficiência energética e falta de ligeireza na operação, visto que Isa quando voa é rápida, e lá que ela voava isso voava, se considerarmos que semelhante andar outra coisa não pode sugerir..., para acocorara-se de imediato a olhos sôfregos, sôfregos e grandes, enormes e sequiosos, perante ele a beber-lhe os seus, com os dedos minuciosos de ternura a nervurarem-lhe o crânio.
De uma oliveira perto, esvoaçou um melro, em piu-piu metálico, rasante, de quem refila contra os incómodos vizinhos, dirigindo-se para a figueira, onde pousou a banquetear-se de abêboras a seu bel-prazer. A nuvem caprichosa, persistente, deu o solavanco que faltava e o sol veio por ali abaixo, jorrando próspero e altaneiro e quente e fagueiro impondo a estação a que pertence. Avaliou os estragos da subnutrição e contabilizou, por expectativa e mentalmente, o número de parasitas que teria por cada centímetro quadrado de pêlo e pele. O interior das orelhas pejado de carraças, o pescoço pulguento e encardido, o dorso seco e áspero da sujidade. «Podia ter tomado banho depois disto...», considerou prática e pragmática. «Mas a água não gasta o corpo e posso muito bem tomar outro banho a seguir a isto!...», concluiu de imediato, afastando o núcleo pesaroso que iniciava a formar-se no cerne das suas cogitações. Então, num «se há trabalho por que espero!» ergueu-se pronta, arrebitada, tentando lembrar-se onde o avô guardava os produtos de higiene e desparasitação dos seus cães e caça... E o canino imitou-a, cuidando que lhe lia a vontade, para segui-la. Adoptara-a como dona, embora lhe fizesse espécie aquela coisa do semblante meditabundo num enquadramento de trajes tão vivos e flanantes.
«Ah, és uma cadela?!», exclamou rindo, o júbilo a periquitar-lhe nos tutanos, reconhecendo quanto lhe agradava constatar a evidência. Não que a defraudasse o facto ou hipótese de ser um macho, considerando que para ela ser não é uma questão de género, mas... bem, dos mistérios sexistas agradava-lhe sobretudo a faculdade de poder acondicionar o mundo segundo a visão pacata que dele tinha, e os cães andavam sempre a urinar em todo o lado, a guerrear, a competir por tudo e por nada. A resmungar, rosnar, a guardar e comandar sem que ninguém lhe encomendasse o serviço. Ao que ela estava muito sensível ultimamente, e que lhe causara diversas e acrescidas inquietações nesse âmbito. Por exemplo, não percebia porque é que os rapazes mais velhos a olhavam daquele jeito, de olho arregalado e sem pestanejar, em perscrutares intimidatórios, quando se compenetrava em alguma tarefa, ou absorta não reparava que o decote lhe mostrava parte das maminhas, as saias no balanço do movimento lhe realçavam o desenho das coxas e quadris, o que lhe provocava fúteis arrelias, irreverências hormonais e sentires contraditórios, gostares e não-gostares simultâneos, no corpo e no espírito.
«Melhor assim», aquiesceu, confirmando-lhe e configurando-lhe a suspeita de que o código de entendimento mútuo só podia sair beneficiado pela circunstância de funcionarem sob as mesmas coordenadas da identidade e discurso biológico. «Já tenho chatices que cheguem lá na escola, com as parvoíces daqueles patetas!...», e encetou a marcha, fisgando a comparsa pelo canto da olhadura, garantindo-se de que esta a seguia, ainda que cambaleante, trôpega, a escarranchar-se nos primeiros passos, vacilantes que nem de vitelo acabado de nascer, dolorosos mas impositivos da vontade, claudicantes mas determinados, periclitantes mas direccionados, indecisos mas com motivo e sentidos definidos, as ventas a arfar alçadas, arquejantes, abertas, a respirar sôfrega os odores de Isa e da manhã, perseguindo-a e tentando manter a distância entre ambas o mais curta possível.
Por seu turno, Isadora, talvez em propositada consequência do apercebimento das dificuldades, retardava o andamento, cozinhando conjecturas e alinhavando projectos, onde as duas coubessem por igual medida. E se a família embicasse em querê-la sim, mas junto aos demais cães, no canil? Não via justo meter a fragilidade carente no mesmo habitat da matilha... «Vão brigar, castigá-la pela sua debilidade, roubar-lhe a ração, fazê-la padecer e rastejar ainda mais», concluiu. Mas «calma», contemporizou, «uma coisa de cada vez. Lá chegaremos!...»
O forno é um casarão enorme com duas divisões apenas. Dum lado, o depósito das alfaias, suplementos adicionais e adubos, sementes e restantes materiais agrícolas; do outro, a cozinha de fora, com o respectivo forno para assados, tulha de cinzas e lareira. Aí funcionara em tempos, efectivamente, o forno a lenha para fazer pão, mas haviam feito obras recentemente, derrubando-o e aproveitando a chaminé para edificar em seu lugar um lareira ampla, de lar em laje granítica, e um forno menor, que permitisse além de cozinhar, também seroar ao seu redor. (Modernices!...) E o restante espaço apetrechado com equipamento condizente à sua utilização: mesa de pedra central, ladeada com bancos altos de madeira e fundo de entrançado bunho, lava-loiças e bancada de confecções, armários de parede, fogão a gás, frigorífico, arca congeladora, enfim, o usual para a serventia que lhe dedicaram as pessoas e os tempos impuseram na satisfação dos gostos, bem como na das necessidades e bem-estar. No inverno faziam ali lume, que estava 24 horas por dia aceso, para curar as carnes dependuradas na chaminé, pois todos os anos matavam dois porcos, em Janeiro, de que faziam enchidos e presuntos, conforme os temperos e moldes tradicionais.
O avô, lembrara-se então, costumava guardar os produtos perigosos da pecuária num armário embutido do depósito, arrecadação de mil coisecas e artefactos, espólios e labuta e cultivo. A ideia de procurar lá com que lavar a lazarenta surgiu-lhe, numa dedução lógica, enquanto se deslocava meditativa e apreensiva, roendo as unhas, arreando biqueiradas nesta ou naquela pedrita menos discreta que sobressaía do saibro, sem qualquer propósito além do descarregar maquinal, espontâneo, das preocupações momentâneas. Pensado e feito confluíram para o mesmo espaço-quando e, depois de ter arengado com a perseguidora num «fica aqui. Nada de modas nem saídas à pedro-palmeiro, ou de fugas à barrela, òvistzsches?!...», de afectuosa familiaridade, em meio por meio de pedido e ordem, com abundância de gestos para reforço à compreensão da cadela, quase maternal, e de quem sabe serem escusadas as recomendações, mas fazendo-as não obstante, unicamente por sentir prazer em dirigir-lhe a palavra, dizer-lhe qualquer frase elaborada para elevar a figurante ao estatuto de protagonista num cenário de gente. Igual. Considerada. E digna de atentadas justificações.
A outra, que se não compreendeu pelo menos obedeceu, sentou-se à porta, sobre os quartos traseiros, o rabo a vasculhar e sacudir a areia do pátio, com o olhar pregado na oradora da retórica doméstica, quase risonho, ou simplesmente enigmático, tipo Gioconda expectante como similarmente sedutora, a cabeça levemente descambada para a esquerda, de quem pensa para consigo «mas o que é que esta quer agora!?...»
No interior, a vista contundida catrapiscando a penumbra, sentindo as agruras do repentino salto da luminosidade diurna para o crepúsculo dos cómodos, deparou contudo com o armário trancado, aferrolhado a cadeado, e angustiou-se sob o baque do coração pressagiador, qual órgão que jamais se abstém de meter o bedelho onde não é chamado e governar os pensamentos com as características palpitações, sobretudo se defrontamos a realidade adversa. «Um'assim!!... Mas onde é que aquele salsichão fora de prazo escondeu a chave?!...», refilou ela contrafeita, dando a mirada geral, a avaliar as perspectivas de resolução. «Ora, o pinante!»
Ajeitou a madeixa. O punho canhoto aperrado de quem se apresta a desferir um soco no destino acrescentava indignação contrastante ao pesar facial. Bateu com o pé direito no chão e inquiriu o espaço circundante; principalmente os frisos, nichos e cantos. Depois flectiu o dorso e gritou mentalmente para dentro de si: «Pensa Isadora!!! Estás parva ou quê?!?» - incitando-se, admoestando-se a continuar as buscas. «O que é que dizem na televisão acerca de proteger os pequenos dos venenos?... Acondicionados e fechados à chave. Pois bem: onde pôr esta de maneira a ficar disponível para todos excepto para as crianças? Num lugar alto, onde elas não cheguem, é claro. E como é que os adultos sabem onde procurá-la mesmo que ninguém lhes diga onde a puseram? Num local óbvio, seguro e prático. Qual é esse sítio dentro duma arrecadação? Pensa Isadora!... Pensa» e, congeminando hipóteses, deitando à cadela aquele fixar mudo de quem implora o milagre de uma solução para os seus males aos únicos que a não podem ter, nem nunca terão, à semelhança do que os demais mortais fazem com os seus deuses, deparou-se de relance com a entrada e deu uma palmada na testa. «Na porta! É isso... Só pode ser!» E dirigiu-se-lhe cabritando euforia.
Descerrou-a meiamente, desencostando-se da parede, ficando-lhe de esquina, tal e qual como veleiro na dobragem do Cabo das Tormentas: de um lado o motivo (a rafeira); do outro, a solução técnica – a chave. Porque é sempre entre a dor e a esperança que se navega… Vai-se de uma à outra num dobrar de lágrimas! Mesmo quando a chave não passa de mera hipótese dela, visão de desejo a que não é alheia o sonho. Portanto, atentou melhor e com demora. Ao cimo, à altura de dois metros e qualquer coisa, dependurada de um prego por retorcido arame de zinco, em jeito de asa curva, a lata cilíndrica avermelhada que em tempo de validade própria embalara tomate pelado de conserva, balançou quando tentou tocar-lhe com a ponta dos dedos, chocalhando metal e substanciando as suspeitas com consolidado alento. Então empertigou-se mais, em bicos de pés, e ferrou-lhe forte piparote que a atirou ao chão. Em resposta pelo trato, dela saiu de imediato uma argola de ferro, que à volta de si tinha diversas chaves de díspares tamanhos e feitios. «Eh, tantas!... Nem sei pra quê… Só preciso de uma!», gargalhou ela, deitando a língua de fora ao mamífero que, ainda que não percebendo patavina da novela que por ora ali se desenrolava, achou por bem dar meia dúzia de sacudidelas com a cauda, à laia de palmatoadas no chão, a fim de aplaudir a actuação da senhorita dos desaustinados pinotes.
O êxito inspirou-a a ponto de ousar escalar na tarimba artística, conquanto tentou subir nela, e de puladora sem trapézio alvitrou-se vedeta canora, pelo que se pôs a trautear as modinhas brejeiras dos estala bombas e romarias das redondezas. A cadelita arrebitou as orelhas para melhor apreciar os dotes da actriz cantadeira, que se manteve na ribalta do folguedo até escancarar as portadas ao embutido. E nas quatro prateleiras deste observou uma infinidade de frascos e frasquinhos, latas, latinhas, caixas e caixinhas, que assentavam praça alinhada nas fileiras compostas, sem qualquer preocupação de design, cor ou tamanho, excepto nas filas duplas, onde os mais pequenos e os maiores por trás, revelavam aprumos de indicação retratista, ou de quem tivesse alinhavado a coreografia para retrato de família ou recordação de equipa para efeméride do torneio. «Outro bico-de-obra!...», reconheceu, franzindo a tez na tentativa de se concentrar, melhorando a acuidade visual com o semblante de quem medita, ou acrescentando ao esforço a expressão esforçada, num reparado momento ascético de melhorar o conceito se lhe representarmos a sinalética adequada: «Calma… Que quanto maior é pressa, mais devagar se lá chega!» Seria?
Pesticidas, herbicidas, unguentos, alquimices diversas e sempre misteriosas; umas reconhecíveis, outras nem tanto, na variedade topo de gama costumeiro que a publicidade nos vai sublinhando para que o inconsciente se não alvitre delas… Enfim, feitiçarias próprias de entorpecer o ambiente com a ajuda do cérebro descuidado!
Mas após leitura sumária de títulos e rótulos, cujas parangonas pouco lhe diziam, tentando aliciar a vontade com a necessidade objectiva, quase desistiu, embora a sua famosa teimosia, que sempre a par andou da natureza dos entraves, lhe aconselhasse a persistência, a instigasse para a obstinada tempera, viu-se e desejou-se remoendo o peculiar «por mal, pior ainda» com que habitualmente brindava os circunstantes que por pirraça a contrariavam. «Seja: se querem “luta”, vão tê-la», e arregaçou as mangas da intenção, disposta a ler de cada um a informação disponível até encontrar algum que servisse. Há pessoas assim. E depois? São feitios!...
Por bem, tudo; por mal, nem a camisa… E daí? Há alguém disposto a fazer correr banhos para mudança futura?... Até que finalmente, três dos frascos obtiveram «satisfaz» na observância dos bonecos e literatura inclusa. Deslocou-se mais para a luz e, sobre o jorro desta, oriundo da entrada, leu-lhes o manifesto de intenções (ou posologia) como quem avalia um programa governamental, para o qual a validade é discutível conforme o que dele se espera, mas não lhe empresta credibilidade superior à funcionalidade momentânea. Um, porém, da aturada pesquisa, por sinal o menos legível, bastante deteriorado no rótulo enodado, onde a supor-se pelas letras que restavam do título (Pec...nol) lhe gerou tremedeira nas vísceras, levando-a a reclamar em prece «é este. Só pode ser este, meu deus» assim meio deslumbrada com tantos animais no bojo das resenhas, ovelhas, cães, gatos, pássaros, galinhas, que a modos de uma arca da Noé em marketing doutras bíblias se tratasse. E, afoita e decidida, ligeira e alvoraçada, não tem peneiras nem hesitações que a retenham, arrumando seguidamente os dois de sobra onde os encontrara, deixando tudo na mesma ordem, a fim de se não notar o arrombamento e invasão de cómodos, aos que ciosos ou prevenidos deles tivessem receada memória, consciência dos perigos e atitude preventiva. Principalmente o avô, que era quem na matéria lhe impunha ais respeito!...
Portanto, confirmada a utilidade e modo de usar do unguento viscoso e espesso, pardalitou entre selhas e tinas de onde tirou um alguidar de plástico, meio resinoso e desbotado no magenta sumido e surrado, que recordava ter visto nas mãos do velhote preferido quando em preparos de barrela para os caçadores da coutada se atinha, ou investia sobre o bardo, pocilgas e arribanas para pulverizar o pulguedo, formigas e similares devastadores da quietude bucólica que sonhava para o seu torrão, no bombear e aspergir cantos e recantos, fisgas e tufos onde lhe palpitassem as parasitárias presenças. Coscuvilhou por trapos um que lhe permitisse a esfrega, considerou o tamanho da cadela e de como enfiá-la quieta no alguidar, perscrutou a sombra da figueira para palco das operações e, ao transpor a ombreira deu uma piscadela de olho ao bicho, sorrindo cumplicidade matreira, num convite velado para que a seguisse, o que incentivado com determinado «anda daí» resultou às mil maravilhas, visto que a canina figura lhe foi no encalço, perseguindo-lhe e pisando-lhe a sombra dançarina. O que nem sequer estranhou, tal era o seu entusiasmo e azáfama, nem acrescentou qualquer mistério ao facto estarem sintonizadas na mesma frequência quando há tão pouco tempo se conheciam.
Depôs o recipiente sob a copa da figueira, alinhavou o plano de sedução, caprichou nos pormenores, questionou a educanda com um irónico «como prefere, alteza: morna, quentinha ou fria?» acerca da água, mas o convincente reparo de retorquir-se saiu-lhe sem demoras de «fria-friinha, que o clima também manda», uma vez que o calor canicular já se fazia sentir àquela matinal hora. A confirmar, assim a trouxe-mouxe que há deveras perguntas que nos fazemos a nós próprios, não para descortinar respostas, mas para nos aliviarmos da tensão ou garantirmos que as decisões tomadas por uma só das partes envolvidas está de acordo com ambas, a ganhar segurança no eco de nos escutarmos a consciência, dissolvendo dúvidas e inquietações entorpecentes da acção, fragilizantes dos motivos comummente acompanham o gesto. Como era o caso!
Debaixo da árvore, apetrechada de trapo e vara, uma cana seca de aproximadamente meio metro, para mexer a água, onde verteu duas tampas do líquido enfrascado, aprestou-se para repetir o que anteriormente vira fazer a seu pai e avô. A solução tornou-se de um colorido leitoso, a feder a creolina, espécie de anti-séptico extraído do alcatrão de hulha que tem um cheiro assaz intenso e activo, incomodante quase, e encaminhou a cadela para a improvisada banheira. Esta ainda regateou, fez questão de não entrar às primeiras, resistiu, sobretudo porque nestas coisas se deve sempre apresentar uma digna submissão, a registar o nosso veemente desacordo com a medida, e para que fique bem claro que acatamos a directiva mas contrariados. Exactamente. Sem tirar nem pôr.
Só que a crueldade de quem nos quer bem não conhece limites... E Isadora, não satisfeita e contente com a conquista da sua entrada no alguidar, foi ainda mais além, submetendo-a outras duras provas, obrigando-a a sentar-se dentro, ensopando-lhe o pêlo sob o qual a pele ardia aqui e ali, expulsando inflamações e picadas de carraças e pulgas, escoriações de matos ou escamas do coçar-se. Aquiesceu. Acima de tudo porque a pressão exercida pela lavadeira sobre o seu lombo, não lhe deixava alternativa, e ela se considerava demasiado fraca para andar a perder tempo contrariando disparates, caprichos de fedelhos impertinentes, de quem mal a conhecia, e nem por sombras sonhava quanto era responsável e audaz, mãe orgulhosa e esforçada, que três anos atrás parira e criara quatro filhotes sem ajuda de ninguém, que aleitara a poder de muita caçada, educara com esmero e autenticidade, até que alguém pouco escrupuloso lhos raptara, surripiara, subtraíra, durante uma ausência da toca, a fim de alimentar-se. Até chegou a esboçar um ladrar de dizer-lhe, ali na refrega o que lhe ia germinando nos tutanos, mas calou-se assim que se apercebeu que a desalmada escaroladora, indiferente ao seu tremelicar, insistia em ensopar-lhe a vestimenta com aquele caldo asséptico, provocando-lhe sérias contrariedades na compreensão do mundo, da vida e essencialmente desses seres estranhos e obtusos bípedes a que estava ligada irremediavelmente desde a sua cachorrice, indivíduos desconcertantes e imprevistos, que tanto a alimentaram e acarinharam, como lhe bateram, abandonaram ou aviltaram, sobre os quais testemunhava amiúde uma consciência controversa e de suspeitas intenções, que a levavam a urdir sobrelevados e filosóficos considerandos onde «não se pode gostar de ninguém… Olha para esta: confiei nela assim que a vi, e eis no que deu! É triste saber que aqueles de quem mais gostamos são sempre os que menos nos merecem!»
Por seu turno Isa, tomando cautelas para que o líquido não entrasse na boca e olhos do animal, ao mesmo tempo que redobrava as atenções sobre orelhas e cachaço, onde os parasitas quadruplicavam em número e actividade, por saberem ser-lhe difícil a remoção com o coçar de patas ou mordedura, não se impedia contudo de magicar numa maneira airosa de convencer a família a adoptar a sua nova amiga. Podia argumentar que os cães do avô não se prestavam a grandes correrias com ela e precisava de alguém que intimidasse os estranhos, evitando que se aproximassem demasiado, pois nunca se sabe ao que vêm… «podia! Mas ganhava o mesmo!... Todos sabem que no Monte há sempre alguém conhecido por perto ou ao alcance da vista» ainda que ocupados, considere-se, uma vez que domesticar a terra, dar-lhe formato de coisa produtiva e útil, se não apresta a divagações ociosas. Podia até aliciar o avô, fazer com que ele dissesse que precisava dela para a caça ou guardar o gado, mas com certeza estaria a entrar em terrenos movediços visto que «os meus cães são os melhores das redondezas. Num raio de 50 quilómetros não há outros como os meus, quer para coelhos, lebres, perdizes ou bicharada. E a maior parte dos vizinhos que caçam, vieram abastecer-se de cachorros aqui», como ele costumava afirmar, seria um pontapé muito baixo e puxado para o seu orgulho de criador, treinador e conservador de raça apurada, o que, como é óbvio, embora gostasse muito da neta não lhe daria convicta margem para manobra. Podia recorrer à mentira, que tinha sido «uma colega que me pediu para a guardar durante as férias, porque não tem onde a deixar. E como nós temos campo, e eu estou desocupada, até me dá jeito» mas adulto ainda não é sinónimo de tanso, e bastava olhar para ela para reconhecer que não era assim tão esbelta e amanhada para uma família que se preocupava em deixá-la segura e cuidada sempre que saía de casa. O certo, se certo havia numa questão destas, era que lhe dessem ordem para a entregar no canil municipal, onde seria abatida caso ninguém a reclamasse, do que não duvidava minimamente, pois se alguém houvesse no mundo com intenção de dela cuidar não a tinha abandonado antes. Podia comprometer-se a tirar as melhores notas da turma, tornar-se a marrona da classe se a deixassem ficar com a cadela. «Sim; é o que lhes vou dizer. E depois, se chumbar algum ano não me venham cá com coisas, porque eu avisei-os…» Mas em seguida lembrou-se das afrontas por que teria que passar a fim de cumprir o prometido e do que o pai costumava dizer acerca deste tipo de compromissos, citando invariavelmente um humorista português qualquer, que teve o desplante de escrever isso para a posteridade, resumindo-o numa tirada de «nunca te comprometas demasiado. O próprio Deus já não chega para as encomendas», como que a alertá-la para os inconvenientes das promessas que dificilmente cumpriremos, a não ser que Deus no ajude!
Por conseguinte, nada mais havendo a tratar, deu o acto por encerrado com o peculiar «a ver vamos, como diz o cego» das tarefas aziagas, empresas de futuro incerto e prognósticos impossíveis, escarolou a rafeira, teceu projectos de passeio pelos campos na tarde próxima, na intenção de gozar a companhia da outra enquanto pudesse, sem expectativas nem ilusões. Fez das tripas coração, arrancou raízes profundas, cerziu a malha das felicidades possíveis com as linhas da elasticidade e do que for soará, onde as antecipações, ainda que generosas, serão sempre de menor resolução e menos prazenteiras que o momento presente.
Findo o banho prendeu-a a secar, presa à porta do forno, onde não pudesse espojar-se na terra, e foi arrumar o quarto dela. Precisava daquele tempo de solidão ocupada para se desabituar da ideia de ficar com ela para sempre. O silêncio do Monte, algo que apenas constatava quando se sentia abocanhada pela necessidade de tomar decisões fundamentais, prescritas numa responsabilidade que (ainda) lhe não competiam, notava-se essencialmente se as galinhas cacarejavam, ou os pássaros sobre a nespereira junto à fonte trinavam a sua sede, sobrepondo o seu piar ocasional ao rumorejar constante da água a cair da bica. E foi quando ao sacudir dos lençóis à janela, reparando como o sol se espelhava no pêlo da cadela, que serena a fitava com a meiguice peculiar dos olhos de castanho melado que a caracterizavam, que se apercebeu do seu renascimento, como se daquela coisa enrolada, suja e amarfanhada que vira na beira do caminho, outro ser faiscasse renovado e repleto de singular encanto... Então, uma das muitas histórias malucas que o avô lhe contava, que impreterivelmente começavam por "Naquele tempo, quando os deuses ainda habitavam na Terra e conviviam com os homens no seu dia a dia..." veio-lhe de repente à memória, e tão clara e viva era, que parecia voltar a ouvi-la segundo cada palavra que ele lhe dissera. Falava de uma ave mitológica, denominada Fénix, que vivia infinitamente porque, segundo a lenda, ao queimarem-na tinha o condão de ressuscitar das próprias cinzas.
Sorriu perante o efeito duma tonteria assim, magicares que só mesmo duma cabeça complicada como a daquele avô desnorteado podiam surgir, e, com os cotovelos apoiados no parapeito, o gesto de sacudir a roupa da cama em suspensão de quem esqueceu o que estava fazendo, gritou-lhe: «Hei, Fénix! Fénix!...» Ao que a rafeira latiu como resposta, saracoteando a cauda, empinando-se nas patas traseiras, emprestando ao momento a afectuosa retribuição que o chamamento carecia. Retornou para dentro, a acabar de fazer a cama, mas os pensamentos esvoaçavam-lhe na ideia, como morcegos numa sala iluminada à procura de um recanto escuro onde pudessem esconder-se. Dirigiu-se novamente à janela e repetiu: «Fénix! Fénix!»
E obteve o latir igual, os mesmos pinotes, o reconhecido contentamento que anteriormente identificara. «Só pode ser... É este o teu nome», concluiu, deitando-lhe a língua de fora em retouçado descaramento. Pelo que se apressou, pois a caraiva da tarde já lhe formigava no corpo, na ansiedade de cumprir-se facto consumado de cada minuto.

***********

Noitinha já, regressara enfim, afogueada e faminta. A mãe punha a mesa para o jantar, o avô peganhou com ela com aqueles «'tão periquitita!... É até à noite na boa-vai-ela, não?», e o pai mandou-a lavar as mãos para comer. Da televisão sobre o frigorífico, onde todos a podiam observar enquanto comiam, escorriam sobre os cómodos da dependência do forno, utilizada como cozinha de fora, os arregougos musicais do indicativo para o telejornal. O avô recomendou ao pai um «não te esqueças de amanhã, lá no Grémio, comprar sementes de couve sete-semanas que está na altura de fazer os canteiros», ao que ele anuiu com «esteja descansado, que não esqueço», e a mãe mandou-os calar porque queria ouvir as notícias. Isa, ao aperceber-se disso, descansou dos receios, respirando solto e pensando para consigo aquele típico «nem lhes deu o cheiro!...» que acompanha as preocupações infundadas. Tinha prendido Fénix nas arribanas, por detrás de alguns fardos de palha, depois de lhe ter ajeitado como cama duas braçadas de troços de feno que sobravam da manjedoura da mula, onde a fidalga se enroscou lambendo-lhe a mão, em despedida. Comer a sopa, actividade sem mastiga que fazia com despacho, por mor das arrelias com que se deparava, demorou mais que o costume e valeu-lhe reparo materno de «vá depressa, lingrinhas, que quero servir o segundo», alertando-a do descuido, de que temeu consequências pelo olhar circunspecto e de estranheza que o pai e avô lhe deitaram, a sublinhar o propósito da mãe.
«Procura mas assobia, Isadora» recomendou-se mentalmente, «senão estes pelintras ainda te notam a tramóia!...», jogando soslaios em redor, buscando motivos que lhe encorajassem a confissão, porque essa coisa da mentira custava-lhe a praticar, tentando encontrar no acaso algo útil para resolver o problema. Cruzava e descruzava as pernas, balançava amiúde a cabeça, ginasticando o pescoço, na intenção de dissolver a tensão que a agitava. Sentia que devia agir, mas não lhe estava nada fácil fazê-lo. E os bichos carpinteiros não ajudavam nem um bocadinho!...
Mas foi então, que o pivot do noticiário lhe serviu a sobremesa: do Quénia, que nem sopa sobre mel, lhe relatava que uma cadela parida de fresco, enquanto caçava na floresta o sustento para poder amamentar os filhotes, tinha encontrado um recém-nascido humano abandonado, que transportara para junto da ninhada, onde o depusera como se de um filho seu se tratasse. A família, que parara de mastigar perante o ocorrido, em que o «um'assim?!...» do avô evidenciava o espanto geral, ganhou vida e entabulou consentânea conversa acerca do facto. À mãe impressionou sobretudo o sentimento maternal do bicho. O pai indignou-se com a circunstância de o animal também ser um daqueles aviltados a quem o dono fizera igualmente o que os progenitores da criança lhe haviam feito. E o avô reconhecia o impropério que era chamar animal a um ser que dera tamanha lição de humana maternidade aos homens.
Estava lançado o mote que tanto precisara! Daí que, comentando «chiça! Os cães são mesmo amigos das pessoas, não são? Isto é uma história de alto lá!», provavelmente querendo dizer na sua que o respeito por quem nos respeita a vida e ajuda deve ser mantido por ambas as partes, para encaminhar as águas prò se moinho, obrigou cada um a pronunciar-se acerca do caso, a ver se diziam o que esperava usar na demanda pessoal. O pai entusiasmou-se com «pois é! Esta gente que só vê os fins em desfavor dos meios, devia ter um pouco mais de atenção à maneira com se safa e sobrevive... Até porque uns sem os outros, conforme a natureza nos equilibrou, o futuro fica subtraído nas possibilidades de se concretizar: se todos fazendo falta na sua construção, plantas, animais e homens, também todos temos direito a fazer-lhe parte», numa tirada sentenciosa que certamente se coadunava com o feitio e sentido didáctico de educador que nunca descurava. A mãe sublinhou quanto «a fome da cadela, mesmo sob o imperativo de amamentar as suas crias, não foi o suficiente para esta esquecer o apelo de socorro maternal do bebé. Pelo contrário: adoptou-o como filho e levou-o para ao junto da sua ninhada, disposta a repartir com ele o seu leite. A dar-lhe o berço e idênticas condições de sobrevivência que não sonegava aos seus cachorros», como que a sustentar que a responsabilidade de qualquer adulto é cuidar da eternidade da vida, seja em que forma esta se manifeste, e de como a simbiose entre espécies diferentes se subjuga ao intento comum de a não deixar perecer. E o avô aproveitou para pôr as contas em dia pelos reparos e admoestações que lhe dirigiam por apaparicar tanto os seus animais, esclarecendo oportuno que «agora vamos a ver se param de se meter comigo por eu gastar um dinheirão com os meus cães! E de deixar de ir de férias com vocês para os não abandonar! Até porque não é só por eles que cá fico, é também pelas vossas coisas e criação...», lançando semente a fim de evitar acompanhá-los para o litoral durante a última quinzena de Agosto. Os pais olharam para ela, a pedir apoio, visto que se avizinhava o velhote estar prestes a levar a dele avante, mas ela fez que não viu, e antes aproveitou a deixa para abreviar a confissão partindo do pressuposto condicional como garantia de viabilidade: «Então, se não vai de férias connosco pode também tratar da Fénix, a minha cadela. Quem trata de seis trata de sete... Que a mim tanto me dá ir como ficar cá consigo, se for preciso!»
«Da tua cadela??!!!!....», exclamaram os três em uníssono, arregalando os olhos, perante a surpresa e forma como foi comunicada. «Mas...», ainda tentaram contrapor, só que ela não lhes deu tempo e acrescentou: «Pois. Vou buscá-la agora mesmo para verem como é bonita.» E saiu a correr, no dito-e-feito que a circunstância impunha e de que não abdicava. Ao regressar...
Bem: o que disseram na sua ausência e como reagiram, isso não sabemos. O que não há dúvida, é que quando viram o animal ficaram tão aparvalhados, que da canção preparada não trautearam mais que o refrão, posto que cada um o concebia diferente, embora almejasse significar o mesmo.
«Bonita?!?...», indignava-se o Albertinho das caçadas, fitando a neta e exemplar canino, com cara de quem acabasse de ouvir dizer que Deus é de pau.
«Mas!...», continuava a mãe, que embaçara na adversativa, que nem pinto em estopa e de mãos nos quadris tentava apanhar o fio à meada dos acontecimentos.
«Vamos lá a ver: tua como? Tua como? Tua como?», ripostava o pai, apresentando a sua melhor versão de vinil riscado, a rodar sob agulha romba. «Tua como? Tua como?»
Todavia, Isadora e Fénix, escorreitas no seu desplante, apenas serenas e divertidas, mantinham a postura descarada e airosa que infringe todas as desrazões que a razão conhece. O chefe de família, note-se, ainda tentou reverter a situação, adiantando um passo de oratório braço em riste... E só falhou na retórica, porque cometeu o erro de perscrutar a mulher, que perante o SOS dele, em vez de o incentivar ao argumento, enfim descolou a direita do quadril para pousar o dedo indicador sobre os lábios, de onde jorrava sibilino «pssschiu!» acompanhado na intenção de notório encolher de ombros.
Ao que Isa sem delongas, fez questão de legendar a coreografia: «Visto que são essa as únicas palavras e boas-vindas que têm para lhe dar, vou levá-la prà sua cama, que amanhã, bem cedinho, queremos bicicletar umas voltas pelo monte. E pela fresca, que não fizemos mal ninguém!»
Só que o avô, também quis botar discurso, para se refazer de umas conjecturas que andava a congeminar há muito, acerca desse hábito generalizado de se comer em frente ao aparelho: «Afinal, a televisão, ainda serve para qualquer coisa... Cá me parecia!» Outra guerra que vencera. Não há nada como a paciência para confirmar a hipótese da experiência cuja tese é tida por indesmentível. E ele sabia-o, que em política era mestre sem nunca ter lido Maquiavel!

5.11.2005

Na berlinda dos tempos

O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está estendida no espaço, mas quase
ao rés do solo. Parece destinada a fazer tropeçar e não a ser percorrida
.”
Franz Kafka
Uma gaiola partiu à procura de um pássaro.
Idem

Não tenho a certeza se o grande problema da humanidade é a solidão ou se o grande problema da solidão é a humanidade... Mas como também não tenho a certeza de nada, esta é outra dúvida que junto às demais que me acompanham vida fora. Podia exagerar, radicalizar, e afiançar que esse é que é o bom caminho para qualquer samaritano, talvez garantindo que as mais nobres peregrinações têm a estrada por única companhia, numa estirada de reflexão interior, contudo abstenho-me da prédica e monto-me com Barnabiças, Ludomila e Ruffino no carro eléctrico da linha azul, que acode por Rápido como qualquer cavalo de raça ou índio de bom nascimento. Do seu recheio podemos nomear Etecetra, Dame-Deixas, Anónimo e Florinando, que acompanham o maquinista desde a partida do caracol da luz, por recearem a lotação esgotada que os deixasse em terra, além da Cheira-a-Cravos, Flor-da-Murta, Bode Louro, Rente, Tótó, Mano Augusto, Zangarilho, Toca a Boneca, Pai-da-Vida, Zézinho e Lourenço, tudo boa gente (e de alqueires bem medidos!...) que a memória do Oco ressuscitou especialmente para o evento. É cedo, o céu está limpo, há pouco trânsito e só é sexta-feira, mas já Cheira-a-Cravos tresanda a S. Domingos, que se porventura se pudesse fumar no barimbelho eléctrico e alguém acendesse isqueiro, a coisa explodiria que nem cocktail de arruada!
O cancelão do Barnabiças traz farnel (soquemboque, fatias paridas, papa-ratos, azeitonas e outras sustâncias), numa cesta de vime ajaezada com toalha de xadrez vermelho e branco, que é uma forma politicamente correcta de torcer pelo jogo maior da próxima jornada e satisfazer a suciadade, no que é recebido com lavarinto pelos diabalmas da excursão. Acomoda-o entrepernas, rosna um «atão vá!» de fraca estereofonia, como que a responder às expectativas dos restantes comensais da viatura, e instala-se como centro do pé-de-trempe imperial, que é formato galheteiro para todas as saladas. Ruffino está aparvalhado com o piriri da situação, constrangido e ressacado, mas mesmo assim ainda interroga o motorista à laia de comediante em apuros com um «então, e isto anda?», que de pronto lhe retruca «se anda!... Liga-se à listra azul e é um pirilampo a obrar faíscas!!»
Todavia Cheira-a-Cravos, que é uma espécie de mulher suicida, míssil de curto alcance em formato repolho tronchudo, que ameaça estoirar desde a eternidade das muralhas e amei-as, intromete-se e destila de imediato as notícias do dia mal o alazão arranca: «Parece que os socialistas vão instituir uma peregrinação anual a Felgueiras, em devoção à sua Nossa Senhora Fátima!...»
Porém Dame-Deixas não está pelos ajustes e responde-lhe à má fila com o «cagari-cagaró» de tão nobre e diplomática estirpe quanto o «ora, vamos indo com o tempo!» do Oco, a sublinhar o momento político inaugural da nova estratégia da oposição, a que os mais argutos apelidaram já de toca-e-foge. O reboliço instala-se e o estrefenefe nas consciências. Mano Augusto solta um «Viva a República!» que vem atiçado por artilharia de feijão com couve que, a avaliar pelo cheiro, estaria em fila de espera pelo menos há oito dias. Pai-da-Vida perfila-se e canta o hino, entusiasmando-se sobretudo no estribilho de «contra os tonhões marchar, marchar e pela pátria lutar», demonstrando que ainda está ali para as curvas, hirto e erecto conforme o transplante da vitória exige. Toca a Boneca arrefinfa-lhe com as duas mãos. Mas é Florinando quem assume o ponto de cabo de guerra e intimida a assembleia com tripartido «xarape!!! Xarape!!! Xarape!!!» fazendo-a silenciar-se, enquanto de punho erguido ameaça Cheira-a-Cravos de sopa de corno, em alvíssaras da boutade. E o bus em tropel aproveita-se da contenda e navega na 1º de Maio a todo o pano... Rápido.
À sorrelfa Ludomila mete a mão entrepernas de Barnabiças e saca da cesta um naco de soquemboque a fim de provar a receita. Enfia-o toda na boca e lambe os dedos para limpar a gordura. Ruffino nem repara, que nestas coisas é sempre o último a saber, mas acha estranho o ar de gato da cara dela, de quem papou o periquito!... Na curva de Semeador a nave dá de estibordo mas o ventas de panico do maquinista garante «não há crise. Não há crise. Que isto auguentava até o dobro da inclinação», o que acalma a tripulação em curso, pelo canudo da esperança e fé num seguro de vida. A subida é árdua e o empedrado não ajuda. No entanto, a causa tem princípios assentes na sustentabilidade, o que lhe dá ânimo nos rodados e a investe de futuro e progresso. E genica. Tanta ou tampouca, que aí por maré do Alentejano, os excursionistas nem chegam a discernir o que em verdade os clientes da esplanada fronteira mastigam aplicadamente. Ruffino diz que «são tremoços» mas Bode Louro desconfia que «olhe que não, doutor! Olhe que não», e Flor-da-Murta afiança serem «batatas fritas, sim sinhora, é que éi» embora ninguém lhe veja o pacote. Discute-se novamente. O empenho é geral e a tomada comum. Nenhum dos presentes abdica de dar o seu contributo para a energia que faz andar o barimbelho, e se houvera bateria para acumular quanta na discussão é produzida, até ao próximo milénio ninguém havia de ter falhas. O veículo emana forte áurea na passagem, principalmente se considerar-mos os acenos e adeuses emitidos pelos transeuntes à selecta comitiva.
Até que finalmente, num rasgo de lucidez que o ver à distância e em movimento os muitos anos de profissão lhe ensinaram, o astronavegador se vira para os passageiros e afirma «são caracóis. Não tenham dúvidas, que nisto dos temperos é o cheiro que os denuncia, e eram orégãos de certeza» no odor da cruzada, pondo a marca da erva na descoberta prà razão. E é aí que o caso se dá, exacerbando sobremaneira os brios ecológicos de Ludomila, que se ergue e põe a cabeça de fora, gritando-lhes: «Cobardes! A comer os bichinhos, só porque eles não se podem defender!... Cobardes!!»Então, um passarinho que passava ouvindo tal, comoveu-se e entrou no autocarro, chilreando o seu contentamento ao pousar-se no ombro de Sua Alteza que, embevecida, soltou a única lágrima que na travessia teve lugar, celebrando assim o engenho progressista com a virtude do pranto! E se era de luto, não se sabe, que a berlinda ia cheia e no regabofe...
DE NOITE NEM TODAS AS CAPAS SÃO PRETAS

“As oportunidades do homem são limitadas apenas pela sua imaginação.
Se pensarmos que há milhares de músicos e só meia dúzia de maestros,
concluímos que são bem poucos os que têm alguma criatividade.”
Charles Kettering

Aqui, nada se esquece; tudo se transforma. O concerto aconteceu mesmo e «eu sou testemunha. Jeová acompanha-me» à viola, disse o careca da cabeça de chupeta, alentejano de gema e Santa Clara, tenho Florinando, Dame-Deixas na bateria, as vozes estão a cargo de Ludomila e Barnabiças, que igualmente assiste às teclas, nos ferrinhos Etecetra, a composição e letra são do Anónimo Plagiato e Ruffino comanda na batuta. Juntaram-se exclusivamente para o evento, sob o objectivo de abrilhantar outro ainda mais brilhante acontecimento, visto que a ideia havia sido trazida de Espanha, assim como a estratégia montada, por um gajo qualquer meio desaustinado, daqueles experts de import-export que até para vender os anciãos da família preferem a modalidade de contrabando, ou, como neste caso, em formato de contrabanda (musical), talvez dando forma ao figurino que aprenderam numa noite em que foram jogar bingo no lado de lá da fronteira.
A tarde passou-se bem, mas para a noite as coisas complicaram-se, pois esfriou e os caloiros não aguentaram mais tempo dentro do lago do Tarro, onde escutavam a actuação com o ‘sim senhor’ de molho. Ruffino, inspirado pela noite de bosta em grande que passara, na semana anterior, deu o litro a batutar a contrabanda, que atacou sem dó nem piedade vários temas de sua autoria, embora inéditos mas contudo bastante conhecidos e traulitrados nas lides e praxes do reino ou das freguesias circunscritas. D. João III viu-se de cuecas ao léu mal uma praxada lhe subiu o bronze, todavia como anda de bula paga ninguém notou, ou se o fez calou-se, quem sabe se na expectativa de também vir a convocar num futuro próximo o tamanho do pecado prò seu prazer.
O palco mais coiso menos coisa tinha o repuxo no meio. O diabalma voltou a pôr o lagarto à janela logo que soou o segundo golo no ...ense, que uns afiançam ser terminação de Campo Maior mas outros de Moreira, que sendo no entanto uma história muito comprida, ainda lhe falta grande compleição pra igualar a do burro malhado do funileiro de Santana.
Pela assomada de Outubro as cheganças nos caloiros e loiras são o prato forte para os farta-velhacos da plateia, que se delambem a ver aqueles filhos e netos agradecidos por não lhe terem vendido (em vão) os avozinhos, que dão urros sábios e arrotos republicanos, logo que os acordes do ‘hino do bota abaixo’ se fazem ouvir em direitura ao canudo. Ruffino tem garra prò sólio comando e batuta prà esquerda, batuta prà direita, ordena com solfejo as notas de cada um, demonstrando que sabe do negócio de apontador, empunhando o pau de quem tem direito à oração. Os jocosos enfeites dos ‘loiros humedecem-se na emoção do espelho d’água e os pindéricos dos veteranos embuçam-se nas sotainas e surrobecas de hereges em operações de treino. Mais além e mais alto o som da viola ecoa em solo para os tímpanos da Serra «cercada de oliveiras e sobreiros» que, soberana e altaneira, olha a cidade compadecida com as macacadas das suas gentes.
Ludomila, qual starlette a contas com o afinador divino, ergue o seu esgalamido e estridente grito de «olhem pra mim, que bem canto» até que alguém, menos versado nos engenhosos sortilégios da lírica operetista, lhe atira portentosa tarraçada de ágar-ágar prà calar. A substância gelatinosa falha o alvo e enche a boca de cultura a Barnabiças, que então se preparava para fazer coro com a patroa. O efeito laxativo da poção não se fez esperar e o lacaio das funções, alimentador encartado, é a primeira vítima do enredo. Condoído e revulsionado desenvolve as cólicas com os dedos sobre as teclas, pondo no ar o semblante da trovoada que se adivinha, se não se dirigir num relâmpago à casa de banho mais próxima.
A contrabanda fica desfalcada. Contudo o pior está pra vir e vem. Pseudónimo disfarçado de Anónimo Plagiato traja uma capa castanha que, pelo atardado da hora, no espectáculo todos pensam ser preta. Está ali para fazer o lançamento da sua obra! Da sua letra, à sorrelfa matreira, engrominando Anónimo, trocando as pautas, traduzindo ao calhas os acordes que foram feitos com esmero. Ruffino constata a tramóia ao aperceber-se que ninguém lhe obedece no ponteiro. A desinfonia é total. O caos instala-se e a desconfiança no talento da orquestra cresce na assistência. O conjunto aturdido entreolha-se. Adivinham que o fim da noite pode coincidir com o fim da sua carreira.
O intruso rejubila. «Consegui, consegui, consegui», grita alvoraçado, tal e qual como fazia prà mãe, após esta lhe implorar que obrasse, mal o fazia na esperança duma festa. É o seu fim, porém. A impaciência denunciara-o, pois lá do fundo, um Barnabiças aliviado e competente ouvira-o e não quis pôr a pedra no assunto. Pelo contrário, levantara-a suja e jogara-a ao resto da audiência, ipirangando: «A capa dele não é preta!!!»
Os demais quiseram confirmar. Invadiram o palco, massacraram os intérpretes. De instrumentos na mão mediram as afrontas. Puxaram o valdevinos e atentearam no capote. «É falso!!», declararam. O judas então tentou escapulir-se, mas a turba apercebera-lhe as intenções e lançou-se pra cima dele. Capa sobre capa e o recheio a sobrecarregar o palco... Que afinal, não resistiu e se desmoronou, afundando-se na água do lago. Enfim, um triste remate, cuja moral sem dúvida nos elucida do valor da luz, até no jogo do basquetebol, onde igualmente ninguém estranha que a imaginação, se a há e é criativa, pode transformar qualquer lançamento em afundanço e pontuar na mesma! Ou seja, que não é pelo facto de transformarmos o contrabando em contrabanda, que o povo engole qualquer explicação com que lhe queiramos dourar a pílula!...

5.06.2005

(outro conto)
O DIABO DE BURRO


Quando cheguei a Casal Parado, vindo de uma capital de distrito, não conhecia cá ninguém. Nem sequer aquela que viria a ser a minha hospedeira.
Mas a tropa manda, e aconselha no desenrasque!... E, mais ou menos porque à força de nos encontrarmos em idênticos locais pelo igual da hora, criamos parceiros para o jogo dos grupos no parcelamento estrutural da sociedade – o que é um contra-senso, devemos admitir – , ou nos damos como cúmplices uns dos outros em pecados imaginários e futilidades menores (havendo até quem por tal forme família), para que possamos preencher a solidão pelo custo da sua hipoteca – a esperança. O certo é que, sem sentirmos, nos vamos enraizando juntando-nos a outros desenraizados que normalmente nos acolhem, mais por necessidade de sangue novo no seu antro, do que por solidariedade. Que foi o caso.
Profanado por uma trindade que nada prometia em troca de coisa nenhuma, e sujeito a esse abrigo que é o ( imaginário ) chapéu de chuva como único recurso de defesa contra a tempestade do “dum lado chove, do outro faz vento e o chão é um rio pegado”, que é a nossa capacidade de adaptação a novas situações e meios, enquanto genuínos portugueses, e querendo romper a indiferença pelo menos numa dessas três frentes (e a saber: os casalenses, os não-casalenses e o grupo tertúlico do café), vi-me metido numa confusão que foi obra!... E de que saí ileso ou sem beliscadura de maior na moral e amor próprio, porque o acaso e inconsciente, que são os únicos sábios que conheço (para além do tempo) e reverencio, desde que Atenas foi romanizada, vieram em meu auxílio e ditaram as sortes que nem por encomenda e duma só assentada. Canja!, foi o que foi – ó larilas!...
Éramos, ao todo, naquela tarde chuvosa de Outono a brincar ao Carnaval e disfarçada de Inverno, seis ou sete em volta da comum mesa, no Tonel Bar, frente a insinuantes garrafas de sinuosas bebidas (pelo cerealífero efeito). E inspirados em carpir a derrota de qualquer dos clubes desportivos que tivesse perdido na jornada do fim-de-semana passado, independentemente de ser ou não o das nossas preferências e simpatia. Que isso de uma desgraça nunca vem sozinha, e já que o nosso perdeu, há também sempre outro que lhe igualou o feito, que se bem lamentado e com ênfase, pode até parecer que a derrota do nosso clube foi uma coisa de somenos se comparada com a cabazada desse, além de inesperada, numa superstição pedagógica, e como que a dizer-lhes (aos jogadores e técnicos) que se a intenção deles, em perderem tão ostensivamente, era ferirem-nos e humilharem-nos, não o conseguiram de maneira nenhuma, pois que se querem alcançar algum êxito nessa direcção e sentido, em surpreenderem-nos!, o melhor que têm a fazer é inverter a táctica: ganhando!...
O Vicente, motorista de autocarros de passageiros; a Adélia, messalina do nosso contentamento, e professora do ensino secundário; a Ana Teresa, funcionária pública e namoradeira em rotatividade; o Augusto, agricultor e vinicultor, novo empresário, e, por sinal, de entre os demais, o único residente recenseado e autóctone; o Dinis, enfermeiro; a Almerinda, empregada de escritório num gabinete de contabilidade; a Francisca, professora primária; e eu, este vosso e fiel servidor, aio e escudeiro nesta e noutras cavalgadas. Eis os quantos, por rotina ou falta de família na localidade, fizemos do café a salinha de estar que os nossos frios e bolorentos quartos não conseguiam ser! E mais ainda: os que em desespero de causa se forjaram numa companhia onde muito superiormente se toleram do que se aceitam.
Pois, sendo eu a aquisição mais recente, e recenseador do INE (Instituto Nacional de Estatísticas) por excelência, com uma modernidade de dois meses e piques, e sobrecarregado por uma volumosa bagagem de timidez acumulada, envergonhada e bloqueadora, embatucava frequentemente e deixava que a conversa corresse a expensas dos mais velhos e expeditos. Em resumo, a minha participação no grupo pouco ia além duma futebolada aqui, algumas observações sobre o tempo acolá e umas quantas respostas empacotadas em tara perdida, concisas e económicas, ao perguntarem-me o quer que fosse. Se solicitado era lesto na réplica, não por boa vontade ou espírito prestativo, mas sim porque quanto mais rápido respondesse, mais depressa me deixariam em paz ou as atenções deixariam de recair sobre mim, numa espécie de fuga para a frente.
Aliás, ao grupo, essa minha evidenciada tendência para bicho-do-mato, parecia não incomodar; antes pelo contrário, agradava imenso. É que o comedimento, modéstia e discrição, facilitavam sobremaneira que quem queria e gostava de brilhar, o pudesse fazer, e brilhasse. O que é normal e naturalmente lógico, ou de plena compreensibilidade: ocupar os espaços deixados vagos é uma forma tão biologicamente saudável como qualquer outra para crescer e evoluir, conquistar e vencer, conhecida até dos mais elementares seres do reino vegetal, quanto mais dos do animal... E eles, ou a maioria deles, faziam-no, com prazer e oportunidade, conforme lhes competia!
Simplesmente, como é pela operação que melhor se conhece a natureza do operador, e pelo acto a do agente, graças à minha inactividade e silêncio, pressentia causar-lhes grandes dificuldades em definirem-me e rotularem-me, e que se o ousavam raramente chegavam a consenso ou unanimidade. Para cada qual havia uma característica da minha personalidade e conduta predominante, mas diferente. Uns que assim, outros assado, aqueloutros cozido; no entanto, com muito pouca convicção, embora que fervido sempre no caldo grosso da indiferença e tanto faz, do que resultava nenhum resolver-se por veredicto certo e seguro. (O que a título de vantagem competitiva tem pouquíssima importância, como está bom de ver!...)
Até que o inolvidável aconteceu. Um dia, estando eles em amena cavaqueira, ao regressar dos meus afazeres estatísticos, desemboquei na mesa razoavelmente eufórico, quando não comunicativo. Olharam, todos e à vez, para mim, com ar de caso e espessa interrogação a pender-lhes dos narigões, que nem ranheta outonal de constipação mal curada, pelo que, sem mais nem aquelas, lhes disparei à queima-tímpanos:
«Já não morro estúpido» disse, dando à voz uma inaudita tonalidade e firmeza, como nunca antes fora capaz de dar-lhe.
«Hãn?! O quê?!» Admiraram-se uns e outros, sem que se saiba ao certo quais fizeram “hãn” ou quais fizeram “o quê”, para manifestarem a sua surpresa.
Então, para melhor gozar o prato, insisti, com a autoconfiança reforçada pelo êxito da primeira investida:
«Isso mesmo. Como eu exactamente disse: estúpido é que já não vou morrer», e sentei-me entre o Vicente e a Almerinda, que, como é óbvio, abriram a respectiva ala.
«E porquê?», inquiriu a última.
«Ora! Porque hoje vi, na estrada de A-dos-Tansos, uma coisa que nunca pensei possível, e muito pouca gente há-de ver ou já viu!...»
«Mas o que foi?», quis saber o Augusto, reafirmando a questão posta pela curiosidade da Almerinda.
«Vi o diabo montado num burro a galope», afirmei eu, sublinhando bem cada uma das letrinhas em causa.
E o dito caiu que nem aguaceiro primaveril. Primeiramente, e pela globalidade, se calaram e recolheram em suas conchas de abrigo à mudança; mas logo que passou, e se refizeram das nuvens da estupefacção, saíram a terreiro em chilreio tal de querem falar todos à uma, que as vozes, não fosse o meu longo treino de silêncio tímido e à escuta, se confundiriam e se tornariam indistintas, nos seus falares de mim como se eu ali não estivesse, ou nunca ali houvesse estado, qual desconhecido a que usualmente prenomeamos de ele.
«Estou em crer», tentava imperar a Ana Teresa, à minha frente, «que estamos na exemplar presença da esquizofrenia típica. Hoje viu o Diabo, amanhã vê Deus; se não o dois ao mesmo tempo, e à bulha. Li em qualquer lado que é precisamente isso que caracteriza tal moléstia da psique: o assistir à luta mortal entre seres supremos e contrários, personificando-os e acreditando que lutam pelo espólio que significa aquele que assiste. Que é por causa dele que se debatem. Da sua alma. É uma distorção autista e fantasmagórica da realidade. E bastante evidente se relacionarmos a sua tendência para ficar calado entre nós, num mundo só dele, bloqueado e a funcionar por caprichos, dum modo artificial e amaneirado.»
Mas o Augusto, com aquele sentido prático e de desconfiança, que lhe deu a vida da terra, considerava que não.
«Isso não pode ser», vociferava. «Não me venham cá com lérias. É mas é uma grandecíssima mentira. E ele está mas é a gozar connosco», adiantava retumbante e rotundo, a olhar-me de esguelha, e exibindo gestos com as mãos, bastante indicativos do que tinha vontade de me fazer, caso não fosse atender aos presentes e local onde nos encontrávamos.
«Cá pra mim, ou é droga, ou vinho a mais», retrucava o Vicente. «Tive um vizinho que lhe aconteceu o mesmo. E eram as duas coisas em simultâneo!... Tanto se encharcou e pedrou, que começou a variar da moca e passou a ver coisas escaganifobéticas de alto lá com elas!... Às vezes estava a conversar muito bem co’a gente, e sem que ninguém esperasse ou percebesse porquê, punha-se a dizer baixinho: Está quieto. Não te mexas... Nem digas nada. Que está o incrível Hulk por detrás de ti. Deixa-o passar... Que nunca se sabe o que é que ele pode fazer!... E depois voltava, num repente, à conversa que estávamos a ter.»
«Ná!... Essa não me convence», argumentava a Almerinda, marcando o ênfase pela sua peculiar hipocondria, desculpabilizando-o. «O que aqui está claramente visto é uma manifestação de recalcamento inconsciente, uma realização simbólica e mascarada, a conversão somática de desejos inaceitáveis pelo fulaninho, e de natureza edipiana. É histeria pura. É neurose de elevado grau. Então não vêem o comportamento dele? Característico de uma crise de identidade em estado avançado e evidente, de confusão verbal e mental, o desdobramento da personalidade, o histrionismo, a sugestabilidade, a pobreza de afectos, o medo de se expor, de falar e de confiar em nós, a introversão rígida e caracterialmente deformada?... Como podem dizer barbaridades de uma pessoa que apenas está doente!?...»
Eu queria atalhar e defender-me. Dizer de minha justiça. Mas eles não mo consentiam. De tão preocupados que estavam em resolver o busílis, nem queriam saber da minha existência, quanto mais das minhas razões ou os pormenores da sucedância. Estavam na elaboração de hipóteses, fabricação em pleno contínuo, e, se algo eu pudesse vir a dizer, certamente lhes não seria útil àquele ponto da refrega. Talvez lá mais para o tarde isso fosse possível, ou quando passassem às fases da experimentação e verificação me quisessem ouvir!... O que para mim se apresentava como uma hipótese esperançosa, embora que remota, de vir ainda a salvar a dignidade, a integridade, a sanidade moral e psicológica, já então de rastos naquele vaivém de gestos e contra-argumentações, qual festival de artifício a que acossado assistia, com medo de mexer-me por mor de assim poder piorar as coisas, e em que me limitava a tentar ver e ouvir o mais atentamente que me fosse dado, o orador que ao momento fazia uso da tribuna, se afirmava, com redobrada convicção e empenho.
Por outro lado, Dinis opinava:
«Esse gajo sempre funcionou a ritmo delta, não foi?!... E daí que agora a falta no mexer-se se agravou: além de funcionar mentalmente às três mudanças tradicionalmente lentas (devagar, devagarinho e parado), tudo indica que também se deixou apanhar pelo síndroma de Korsakoff. Tiro e queda. Se não, como definir o estádio de confusão mental, a confabulação e os falsos reconhecimentos? É que nem ginjas!...»
Contudo, Francisca, não radicalizava tão descaradamente. Ou porque o maternalismo latente se tornava saliente; ou porque da profissão nos fica aquilo que à vida mais simplifica. Adiantando que «Estou em crer», achava ela, «e com bastas e fortes razões para essa crença, pois sei do que falo!, que aquilo com que nos deparamos, mais não é que outro manifesto exemplo da muito premente necessidade de atenção e afirmação, talvez com regressão infantil, acompanhada e desmultiplicada por uma imaginação extraordinariamente fértil. Provavelmente até delirosa, mas que ainda se não tinha revelado porque a nossa acuidade tem andado dispersa e solicitada por outras atitudes e comportamentos, ou por outras personagens extraordinariamente fantásticas e igualmente absorventes, esquecendo-nos nós, e descurando, aquelas que nos estavam mais próximas. E isso fez com que não notássemos a sua crónica tendência de alucinado para o delírio, para um delírio porventura palingnóstico, que compreende elementos de fabulação com falsos reconhecimentos e uma hiperexpansividade imaginativa, por um lado; e para um delírio de imaginação, por outro. E que – não sei se se lembram da maneira sobrevalorizadora com que há uma semana atrás nos falou da grandiosidade e riqueza da sua família!... – é fundamentalmente caracterizado pela predominância da imaginação na sua origem, permanentemente enriquecido e com temas preferenciais que orlam a mitomania, a filiação, erotomania e a megalomania. Além de outras taras, sem dúvida.»
Bem vistas as coisas a minha sentença estava lida: no mínimo dos mínimos, davam-me o estatuto de maluco. Sem retroactivos nem ajudas de custo. O que, diga-se em abono da verdade, não era nada que desse azo a profícuas gabações e orgulhos. Ou era?! A reputação que calculava ter, e quisera criar à força de muita ponderação, teimosia e discrição solícita e atenciosa, estava a ir por água abaixo, e, pior ainda, a arrastar-me com ela. Porque a vida tem destas andanças, onde e quando nunca se sabe no que elas poderão vir a dar!
Tentara interferir diversas vezes para esclarecer o que se tinha passado em A-dos-Tansos, terra em que avistara o inominável dito cujo em cima de um burro a galope. Mas vai lá, vai!... Compenetrados e empenhados que estavam na imposição de seus veredictos, assim que abria a boca, logo outra voz mais sonante e timbrada apagava a minha, fazendo-a passar, num golpe, de fala de gente a ruído de fundo. E, aquilo que a princípio não era mais do que uma situação cómica, começou a ser drama com sérias tendências de evoluir e transformar-se em tragédia, em catástrofe. Sobretudo para mim, que era quem estava a entrar em pânico, quase a raiar as fímbrias duma aflição sem apelo.
O que não era de menosprezar. E iniciava a levedar. Até porque a minha timidez e vergonha de falar em público persistia em tomar conta do meu comportamento, e a imperar sobre a necessidade de salvar o meu amor próprio duma derrocada derradeira, aí sim, com muitas e fortes probabilidades de lhes dar razão e cair numa crise de identidade deveras supérflua e indesejada. Porque essas fatalidades não são como o totoloto ou lotaria, que sempre e exclusivamente saem aos outros, mas pelo contrário, é infalivelmente em nós que com superior força carregam, ainda que sejamos quem menos as merece. Supõe-se.
Mas eis senão quando, em desespero já, e pensando convictamente que o melhor seria levantar-me e sair para nunca mais, enquanto vivo fosse, e deixar de frequentar tal bar e convívio, ou voltar sequer a Casal Parado, entra oportunamente um indivíduo, estudante num curso em regime nocturno, que sabia a residir em A-dos-Tansos. Não hesitei. Chamei-o alto e bom som, determinado e imperativo:
«Ó amigo: ouça cá!!»
E ele veio. Para ouvir. Cá. E que era ali, na mesa em que nos encontrávamos.
Os demais, em redor, calaram-se. Finalmente. E quedaram-se com aquela cara de cu à paisana que geralmente antecipa a pergunta: “O que sairá agora?!...”
«Não há, em A-dos-Tansos» perguntei-lhe eu, «um burro cinzento, altote e magricela, cujo dono ainda o utiliza para se transportar, amanho de terra e trazer de espécimes da fazenda »
«Há sim.» Respondeu o interpelado, confiante, feliz por encontrar alguém que lhe dirigia a palavra e o ajudasse a passar o tempo, no que a este faltava para o começar das aulas. «É o do ti’ António Diabo. Aind’agora o vi nele, quando regressava dos talhos.»
Eu, respirei fundo e fixei olhos nos olhos a cada um, e à vez, dos meus compinchas. Um olhar que era de superioridade mais do que desafio, com a respectiva legenda de “vejam, eu não vos tinha dito”. Estavam arrumados e abatidos, e quase me pareceu ouvir ranger engrenado de reajustamento dos seus processadores de justiça e moral, ao serviço da peculiar lógica de quem vai da caminho. E aos tombos. A actualizar o histórico duma consciência muito, mas mesmo muito, desalinhada!

5.05.2005

QUADRO DIGITAL


Eternizo cada segundo para encarnar mais a fundo no corpo.
Que possuo, agora? Queria acender uma fogueira
Assustar os bichos hediondos da floresta desta noite fria e escura
E eu tão nua de mãos dadas com a solidão... Apaixonei-me
Fervorosamente outra vez: É a paixão mais estabilizadora que conheci
A que menos promete, a que melhor cumpre.
Oferece-me a bóia do trabalho. Sou feliz aqui. A névoa de meus olhos
Entristece-me e sou feliz. Acendi a fogueira
Mas há sempre outra possibilidade
A dos animais ferozes se insurgirem contra mim na madrugada.
Os comprimidos são aliados e o chá torna-me leve e torneável.
O meu umbigo é fóssil; as minha unhas, os estragos das catástrofes
No globo, como grandes blocos de pedra, de basalto,
Originários do vulcão extinto: Beijo minha mão e não espero ninguém.
Ninguém me poderia consolar nesta noite fria e eu nua
Mas minha fogueira está acesa e meu anjo olha por mim.
Pego na manta aveludada, azul da minha solidão e aconchego-me.
Feliz e nua na noite fria ouço o barulho da floresta e choro
Porque o medo me faz viver. O medo é a agulha que pica meu rabo
Me faz saltar e reflectir. Fecho os olhos e desenho
Um rectângulo com o meu dedo indicador.
Depois, cada dedo meu é dono de uma cor
E adentro do rectângulo, desenho e rabisco, esborrato
Espelho-o com o que é meu mas não me pertence.
Porque tem vida própria e se projecta para além dela
Tal e qual como os movimentos de meus dedos pintantes
Cheios de vontades subjectivas de se erguerem ao sol
Ou quando a lua é pátina do céu. Chegou a hora!
Levanto a perna direita que se move para dentro do rectângulo.
Em seguida, a outra; e olho em redor, a tela onde vivia e recordo-lhe
Todos os traços, todos os cheiros, todo o seu pulsar (in)orgânico.
E saio de cena.

Caio no precipício e grito descontroladamente
Até se extinguir toda a minha voz, e o meu medo.
Continuarei em queda livre, completamente desamparada
Até moldar o meu corpo numa pena a saborear plena a doce queda.
Mas da pluma pode surgir um pássaro... E aí, consegui voar!
A pena mágica transformou-me em ave. Voei só.
Ao início, é difícil manter o equilíbrio e parece-se ave tonta
Tentando mecanizar o voo, a dirigi-lo através da cabeça (erradamente).
Só que voar, voar plenamente e com toda a substância da palavra
Faz-se com a alma, o coração.
Aprendi tanto nesta queda, reactivei tantos poderes escondidos
Soterrados debaixo da pele como sobre ela os sinais espalhados.
Abençoo a noite fria.
Abençoo meu dedo indicador e seu filho rectângulo.
Abençoo todas as cores que se revelaram e imortalizam o universo
O cosmos imagético escondido aqui dentro.
Abençoo minha estrada pela tela fora
E a queda
a queda
queda
que


Ave como ave que sou, e avista o planalto, junto ao mar
Qual plataforma de suporte ao farol,
E voo por cima do azul ondulante dos oceanos
Sobrevoo todos os planaltos para aterrar na minha luz.

Ouço o riso “em cascata” das crianças
O mar e os búzios a chocalhar nas pedras na areia.
É o momento de chegada. É tão real, que só pode ser um sonho.
Ali não há leis. Vive-se o hedonismo. Estou feliz e só. Novamente
O dia amanhecerá e estou segura porque o sol vai raiar.
Aquecerá meu coração...
É que sem ele, não se pode voar!
(conto)
Mas que história mais maluca, não acham?

Olá:
Chamo-me Luísa e tenho 12 anos. A história que vou contar já se passou há algum tempo.
- Luísa, anda; vamos até ao parque comer alguma coisa! - chamou uma amiga minha. Bem... que só amiga não é; é também uma vizinha. Ela tem 12 anos como eu, mas anda um ano mais avançada que eu na escola.
- O lanche está bom, mas apetece-me escrever um pouco mais da nossa história!
- Luísa, não, agora não vamos ficar a escrever. Se queres continuar com a história, encontramo-nos amanhã ás 14 h, na porta da escola para o fazer. Ah, já agora traz alguma coisa para nos sentarmos, que eu trago os rascunhos.
- Está bem. Então, até amanhã!
Fui para casa a pensar no que poderia escrever na história.
Pois é, já me tinha esquecido de vos contar, que eu e Amanda, a minha amiga, estamos a escrever uma história muito engraçada, em que entram todos os personagens de contos de infantis: a Cinderela, o Capuchinho Vermelho, a Alice no País das Maravilhas, etc.
Portanto, no dia seguinte, eu e a Amanda encontrámo-nos no portão da escola, tal como o combinado.
- E agora, para onde vamos? - perguntou Amanda.
- Acho que podemos ir para o parque, mas não para aquele onde fomos ontem. Ao outro, sabes, aquele que tem um riacho no meio?
- Sim, vamos para lá.
Sentámo-nos debaixo de um chorão e ao fim de uma hora de trabalho, decidimos descansar um pouco. Deitei-me de barriga para cima e olhei para o céu límpido, com nuvens muito branquinhas e fofas.
Mas de repente senti as pálpebras pesadas e adormeci.
- Acorda Luísa, acorda! - chamou uma voz desconhecida.
Quando dei por mim estava deitada na relva e em frente tinha um lago com patos. Olhei para o lado e vi uma linda menina, de cabelos de oiro e olhos azuis, que trazia vestida uma túnica azul e um avental de linho branco bordado a doirado como os raios de sol.
Ela logo que me viu abrir os olhos puxo-me para o lago. Achei que ela era maluca, mas não resisti. Afinal, levou-me para um bonito palácio de cristal, onde estava a ser celebrada uma festa.
- Onde estamos? -­ perguntei.
- Sou a Alice e estamos no casamento da Bela e do Monstro, mas não me perguntes mais nada, pois não sei porque estás aqui; provavelmente és a convidada de honra.
- Eu?!... Convidada de honra? – não estava a perceber patavina do que se estava a passar, pois no meu mundo, não existem palácios de cristal no fundo dos lagos...
- Sim. Pelo menos disseram-me para ir buscar uma menina lá fora, e só te vi a ti!
Ela deixou-me ali à sua espera enquanto foi perguntar se era mesmo a convidada de honra... Bem, até que nem me importei de estar ali sozinha, pois queria reflectir sobre o que estava a acontecer. Afinal quem era eu naquilo tudo?
Só havia uma explicação: se aquela rapariga era a Alice e estava no casamento da Bela e do Monstro, só podia estar na história que eu e a Amanda andamos a escrever!
- Luísa, ainda estás aí?
- Sim, porquê?
- É que tens de estar presente na entrega das alianças, visto sempre és a convidada de honra.
- Então vamos lá – disse eu ainda meio atordoada com tudo. E levou-me aos noivos.
- Olá Luísa, sou a Bela e este será o meu marido, o Alfredo.
- Muito prazer. Mas podes chamar-me Monstro – disse o Alfredo apertando-me a mão. – Deves ser uma das meninas que vai à frente com um cestinho de flores, não é?
- Bem, eu pensava que era a convidada de honra...
- Não, não. Porque ela, aliás, está ai a vir – disse a Bela.
De facto, uma amiga deles estava quase à nossa frente, interrogando-se sobre quem seria eu.
- Vês? Esta é que é a nossa convidada de honra. Mas de qualquer modo podes ficar a ver o casamento.
No meio do casamento estava a começar a preocupar-me com a minha saída, mas não me tive que preocupar com isso muito tempo, porque alguém chamou por mim, numa voz que parecia vinda de longe…quando acordei estava a suar sentada em frente da Amanda.
- Já é tarde, acho que devíamos de ir para casa.
- Luísa, não sei como conseguiste dormir a tarde toda.
- Nem eu!!! – disse rindo.
No caminho fui-lhe contando o “sonho” que tivera. Amanda ouviu a minha história, mas acho que ela não acreditou muito no que eu lhe contei.
Também eu achei que aquilo tudo não passava dum belo sonho, mas quando ao chegar em casa e vi um dos sapatos de cristal que a Bela usara na festa, em cima da secretária, em que agora estou a escrever, a história mudou completamente... É que há coisas em que é muito difícil não acreditar!

Fim

Linda Renner

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

Arquivo do blogue

Acerca de mim

A minha foto
Escribalistas é órgão de comunicação oficial de Joaquim Maria Castanho, mentor do escribalismo português