5.11.2005

Na berlinda dos tempos

O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está estendida no espaço, mas quase
ao rés do solo. Parece destinada a fazer tropeçar e não a ser percorrida
.”
Franz Kafka
Uma gaiola partiu à procura de um pássaro.
Idem

Não tenho a certeza se o grande problema da humanidade é a solidão ou se o grande problema da solidão é a humanidade... Mas como também não tenho a certeza de nada, esta é outra dúvida que junto às demais que me acompanham vida fora. Podia exagerar, radicalizar, e afiançar que esse é que é o bom caminho para qualquer samaritano, talvez garantindo que as mais nobres peregrinações têm a estrada por única companhia, numa estirada de reflexão interior, contudo abstenho-me da prédica e monto-me com Barnabiças, Ludomila e Ruffino no carro eléctrico da linha azul, que acode por Rápido como qualquer cavalo de raça ou índio de bom nascimento. Do seu recheio podemos nomear Etecetra, Dame-Deixas, Anónimo e Florinando, que acompanham o maquinista desde a partida do caracol da luz, por recearem a lotação esgotada que os deixasse em terra, além da Cheira-a-Cravos, Flor-da-Murta, Bode Louro, Rente, Tótó, Mano Augusto, Zangarilho, Toca a Boneca, Pai-da-Vida, Zézinho e Lourenço, tudo boa gente (e de alqueires bem medidos!...) que a memória do Oco ressuscitou especialmente para o evento. É cedo, o céu está limpo, há pouco trânsito e só é sexta-feira, mas já Cheira-a-Cravos tresanda a S. Domingos, que se porventura se pudesse fumar no barimbelho eléctrico e alguém acendesse isqueiro, a coisa explodiria que nem cocktail de arruada!
O cancelão do Barnabiças traz farnel (soquemboque, fatias paridas, papa-ratos, azeitonas e outras sustâncias), numa cesta de vime ajaezada com toalha de xadrez vermelho e branco, que é uma forma politicamente correcta de torcer pelo jogo maior da próxima jornada e satisfazer a suciadade, no que é recebido com lavarinto pelos diabalmas da excursão. Acomoda-o entrepernas, rosna um «atão vá!» de fraca estereofonia, como que a responder às expectativas dos restantes comensais da viatura, e instala-se como centro do pé-de-trempe imperial, que é formato galheteiro para todas as saladas. Ruffino está aparvalhado com o piriri da situação, constrangido e ressacado, mas mesmo assim ainda interroga o motorista à laia de comediante em apuros com um «então, e isto anda?», que de pronto lhe retruca «se anda!... Liga-se à listra azul e é um pirilampo a obrar faíscas!!»
Todavia Cheira-a-Cravos, que é uma espécie de mulher suicida, míssil de curto alcance em formato repolho tronchudo, que ameaça estoirar desde a eternidade das muralhas e amei-as, intromete-se e destila de imediato as notícias do dia mal o alazão arranca: «Parece que os socialistas vão instituir uma peregrinação anual a Felgueiras, em devoção à sua Nossa Senhora Fátima!...»
Porém Dame-Deixas não está pelos ajustes e responde-lhe à má fila com o «cagari-cagaró» de tão nobre e diplomática estirpe quanto o «ora, vamos indo com o tempo!» do Oco, a sublinhar o momento político inaugural da nova estratégia da oposição, a que os mais argutos apelidaram já de toca-e-foge. O reboliço instala-se e o estrefenefe nas consciências. Mano Augusto solta um «Viva a República!» que vem atiçado por artilharia de feijão com couve que, a avaliar pelo cheiro, estaria em fila de espera pelo menos há oito dias. Pai-da-Vida perfila-se e canta o hino, entusiasmando-se sobretudo no estribilho de «contra os tonhões marchar, marchar e pela pátria lutar», demonstrando que ainda está ali para as curvas, hirto e erecto conforme o transplante da vitória exige. Toca a Boneca arrefinfa-lhe com as duas mãos. Mas é Florinando quem assume o ponto de cabo de guerra e intimida a assembleia com tripartido «xarape!!! Xarape!!! Xarape!!!» fazendo-a silenciar-se, enquanto de punho erguido ameaça Cheira-a-Cravos de sopa de corno, em alvíssaras da boutade. E o bus em tropel aproveita-se da contenda e navega na 1º de Maio a todo o pano... Rápido.
À sorrelfa Ludomila mete a mão entrepernas de Barnabiças e saca da cesta um naco de soquemboque a fim de provar a receita. Enfia-o toda na boca e lambe os dedos para limpar a gordura. Ruffino nem repara, que nestas coisas é sempre o último a saber, mas acha estranho o ar de gato da cara dela, de quem papou o periquito!... Na curva de Semeador a nave dá de estibordo mas o ventas de panico do maquinista garante «não há crise. Não há crise. Que isto auguentava até o dobro da inclinação», o que acalma a tripulação em curso, pelo canudo da esperança e fé num seguro de vida. A subida é árdua e o empedrado não ajuda. No entanto, a causa tem princípios assentes na sustentabilidade, o que lhe dá ânimo nos rodados e a investe de futuro e progresso. E genica. Tanta ou tampouca, que aí por maré do Alentejano, os excursionistas nem chegam a discernir o que em verdade os clientes da esplanada fronteira mastigam aplicadamente. Ruffino diz que «são tremoços» mas Bode Louro desconfia que «olhe que não, doutor! Olhe que não», e Flor-da-Murta afiança serem «batatas fritas, sim sinhora, é que éi» embora ninguém lhe veja o pacote. Discute-se novamente. O empenho é geral e a tomada comum. Nenhum dos presentes abdica de dar o seu contributo para a energia que faz andar o barimbelho, e se houvera bateria para acumular quanta na discussão é produzida, até ao próximo milénio ninguém havia de ter falhas. O veículo emana forte áurea na passagem, principalmente se considerar-mos os acenos e adeuses emitidos pelos transeuntes à selecta comitiva.
Até que finalmente, num rasgo de lucidez que o ver à distância e em movimento os muitos anos de profissão lhe ensinaram, o astronavegador se vira para os passageiros e afirma «são caracóis. Não tenham dúvidas, que nisto dos temperos é o cheiro que os denuncia, e eram orégãos de certeza» no odor da cruzada, pondo a marca da erva na descoberta prà razão. E é aí que o caso se dá, exacerbando sobremaneira os brios ecológicos de Ludomila, que se ergue e põe a cabeça de fora, gritando-lhes: «Cobardes! A comer os bichinhos, só porque eles não se podem defender!... Cobardes!!»Então, um passarinho que passava ouvindo tal, comoveu-se e entrou no autocarro, chilreando o seu contentamento ao pousar-se no ombro de Sua Alteza que, embevecida, soltou a única lágrima que na travessia teve lugar, celebrando assim o engenho progressista com a virtude do pranto! E se era de luto, não se sabe, que a berlinda ia cheia e no regabofe...
DE NOITE NEM TODAS AS CAPAS SÃO PRETAS

“As oportunidades do homem são limitadas apenas pela sua imaginação.
Se pensarmos que há milhares de músicos e só meia dúzia de maestros,
concluímos que são bem poucos os que têm alguma criatividade.”
Charles Kettering

Aqui, nada se esquece; tudo se transforma. O concerto aconteceu mesmo e «eu sou testemunha. Jeová acompanha-me» à viola, disse o careca da cabeça de chupeta, alentejano de gema e Santa Clara, tenho Florinando, Dame-Deixas na bateria, as vozes estão a cargo de Ludomila e Barnabiças, que igualmente assiste às teclas, nos ferrinhos Etecetra, a composição e letra são do Anónimo Plagiato e Ruffino comanda na batuta. Juntaram-se exclusivamente para o evento, sob o objectivo de abrilhantar outro ainda mais brilhante acontecimento, visto que a ideia havia sido trazida de Espanha, assim como a estratégia montada, por um gajo qualquer meio desaustinado, daqueles experts de import-export que até para vender os anciãos da família preferem a modalidade de contrabando, ou, como neste caso, em formato de contrabanda (musical), talvez dando forma ao figurino que aprenderam numa noite em que foram jogar bingo no lado de lá da fronteira.
A tarde passou-se bem, mas para a noite as coisas complicaram-se, pois esfriou e os caloiros não aguentaram mais tempo dentro do lago do Tarro, onde escutavam a actuação com o ‘sim senhor’ de molho. Ruffino, inspirado pela noite de bosta em grande que passara, na semana anterior, deu o litro a batutar a contrabanda, que atacou sem dó nem piedade vários temas de sua autoria, embora inéditos mas contudo bastante conhecidos e traulitrados nas lides e praxes do reino ou das freguesias circunscritas. D. João III viu-se de cuecas ao léu mal uma praxada lhe subiu o bronze, todavia como anda de bula paga ninguém notou, ou se o fez calou-se, quem sabe se na expectativa de também vir a convocar num futuro próximo o tamanho do pecado prò seu prazer.
O palco mais coiso menos coisa tinha o repuxo no meio. O diabalma voltou a pôr o lagarto à janela logo que soou o segundo golo no ...ense, que uns afiançam ser terminação de Campo Maior mas outros de Moreira, que sendo no entanto uma história muito comprida, ainda lhe falta grande compleição pra igualar a do burro malhado do funileiro de Santana.
Pela assomada de Outubro as cheganças nos caloiros e loiras são o prato forte para os farta-velhacos da plateia, que se delambem a ver aqueles filhos e netos agradecidos por não lhe terem vendido (em vão) os avozinhos, que dão urros sábios e arrotos republicanos, logo que os acordes do ‘hino do bota abaixo’ se fazem ouvir em direitura ao canudo. Ruffino tem garra prò sólio comando e batuta prà esquerda, batuta prà direita, ordena com solfejo as notas de cada um, demonstrando que sabe do negócio de apontador, empunhando o pau de quem tem direito à oração. Os jocosos enfeites dos ‘loiros humedecem-se na emoção do espelho d’água e os pindéricos dos veteranos embuçam-se nas sotainas e surrobecas de hereges em operações de treino. Mais além e mais alto o som da viola ecoa em solo para os tímpanos da Serra «cercada de oliveiras e sobreiros» que, soberana e altaneira, olha a cidade compadecida com as macacadas das suas gentes.
Ludomila, qual starlette a contas com o afinador divino, ergue o seu esgalamido e estridente grito de «olhem pra mim, que bem canto» até que alguém, menos versado nos engenhosos sortilégios da lírica operetista, lhe atira portentosa tarraçada de ágar-ágar prà calar. A substância gelatinosa falha o alvo e enche a boca de cultura a Barnabiças, que então se preparava para fazer coro com a patroa. O efeito laxativo da poção não se fez esperar e o lacaio das funções, alimentador encartado, é a primeira vítima do enredo. Condoído e revulsionado desenvolve as cólicas com os dedos sobre as teclas, pondo no ar o semblante da trovoada que se adivinha, se não se dirigir num relâmpago à casa de banho mais próxima.
A contrabanda fica desfalcada. Contudo o pior está pra vir e vem. Pseudónimo disfarçado de Anónimo Plagiato traja uma capa castanha que, pelo atardado da hora, no espectáculo todos pensam ser preta. Está ali para fazer o lançamento da sua obra! Da sua letra, à sorrelfa matreira, engrominando Anónimo, trocando as pautas, traduzindo ao calhas os acordes que foram feitos com esmero. Ruffino constata a tramóia ao aperceber-se que ninguém lhe obedece no ponteiro. A desinfonia é total. O caos instala-se e a desconfiança no talento da orquestra cresce na assistência. O conjunto aturdido entreolha-se. Adivinham que o fim da noite pode coincidir com o fim da sua carreira.
O intruso rejubila. «Consegui, consegui, consegui», grita alvoraçado, tal e qual como fazia prà mãe, após esta lhe implorar que obrasse, mal o fazia na esperança duma festa. É o seu fim, porém. A impaciência denunciara-o, pois lá do fundo, um Barnabiças aliviado e competente ouvira-o e não quis pôr a pedra no assunto. Pelo contrário, levantara-a suja e jogara-a ao resto da audiência, ipirangando: «A capa dele não é preta!!!»
Os demais quiseram confirmar. Invadiram o palco, massacraram os intérpretes. De instrumentos na mão mediram as afrontas. Puxaram o valdevinos e atentearam no capote. «É falso!!», declararam. O judas então tentou escapulir-se, mas a turba apercebera-lhe as intenções e lançou-se pra cima dele. Capa sobre capa e o recheio a sobrecarregar o palco... Que afinal, não resistiu e se desmoronou, afundando-se na água do lago. Enfim, um triste remate, cuja moral sem dúvida nos elucida do valor da luz, até no jogo do basquetebol, onde igualmente ninguém estranha que a imaginação, se a há e é criativa, pode transformar qualquer lançamento em afundanço e pontuar na mesma! Ou seja, que não é pelo facto de transformarmos o contrabando em contrabanda, que o povo engole qualquer explicação com que lhe queiramos dourar a pílula!...

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