4.02.2004

escuta o olhar da sonhadora
ela vê para além do visível
ela ouve para além do audível
e sente para além do sensível
está tudo escrito no brilho apaixonado dos seus olhos
todas as noites a sonhadora vai à janela
e olha para as estrelas
ela sabe que há uma que um dia brilhará mais
nesse mesmo dia, as suas asas estarão prontas para voar
para a levarem a essa estrela...
... a TAL

não deixes que a chama se apague

Philipa B. Antunes
No lusco-fusco
a quietude eu busco
Encerra-se o dia
com as gentes e sua rotina
de soldada cortina
Saúdo a noite que se aproxima
Tão clara
E olho para cima:
o meu ser se anima
a minha ferida se sara
Porquanto é Dia!

Philipa B. Antunes
ROMANCE CLANDESTINO


O menino, com sua mão frágil
No papel desenhou a floresta,
Desenhou a cabana,
E num repente ágil
Colocou dentro desta
A mais linda cigana.

Depois pintou um príncipe
Chamado de João,
Que lhe bateu à porta
Pedindo com brandura
Um pouco de água e pão,
E que ao ver a formosura
Se lhe prostra em oração.

« Levanta-te e entra »,
Lhe disse a cigana linda
« Pois te esperava e certa
Estava de ainda chegares
Antes de a tarde finda. »


Brilharam doces seus olhares
Para logo seus brilhos se apagarem.
« Mas senhora!, como poderei
Depois sair sem morrer
De saudade? »


E após se beijarem,
Cigana e filho de rei,
Nela entraram sem querer
Saber da dura verdade.


João ao palácio não quis
Jamais voltar até que seu pai
A todos ordenou encontrá-lo.
A seus exércitos diz:
« Tragam-no vivo e dai
A morte a quem tentou raptá-lo. »

Os soldados cumpridores
Batem montes,
Batem vales e rios,
Perguntam aos pastores,
Perscrutam horizontes
E inquirem doutores.
Sofrem os tempos de calores,
Calores e frios.

E é quando um dia
À volta da floresta se juntam
Como soubessem só poderem estar além
Que um velho guia
Informa os generais do rei
Haver nela dois amantes que andam
Felizes a brincar ao “ pai-e-mãe “
Sem se importarem com a lei.

Então, o menino pára.
“ Desenhar, para quê?... “
Se aqueles que ele tanto amara
Por sabê-los como seu pai e sua mãe,
Tão iguais para quem os vê,
Têm que vir a sofrer também
A imposição da corte e seus porquês
“ Como se foram Pedro e Inês... “

Se... Mas não! Não!!
Ninguém lhe iria levar a melhor!
E num gesto rápido e exigente
Pega na tesoura do papel.
Com ela vai ao desenho saído de sua mão
Com tanto carinho e calor,
E num corte lacrimoso e tremente
Retira à floresta a cabana
Em que estão o príncipe e a cigana
E corre a escondê-la no sótão.


O rei e seus generais
Percorrem a floresta de lés a lés;
Atiçam os cães, erguem os punhais,
Cansam os cavalos, ferem os pés.
Mas de nenhum têm sinal!
Nasce-lhes aos poucos a desilusão.
Corre-lhes a vida mais que mal,
E abrem as bocas de espanto: “ Onde estão!!...
Onde estão?!... “


Depois o menino, suspirou e sorriu.
Feliz, contente com seu feito
Segredou a si, em inocente jeito:
« Pschiu!... Ninguém viu. Ninguém viu!... »


ODISSEIA III


EUFALO...
( Eu falo do lado de lá do lá )
Partiu um dia
À procura de sua mãe.

E no calo
Da linguagem – EUCALO,
O calo da alegria –
Levava uma mulher de ninguém.

Percorreu montes e rios.
Fez viver flores onde
Se torrava a erva pelos frios
Havia a veste do pária e do conde.

Fez o riso e a dor
No seio pequeno novo
Correu como se fosse amor
De penetrar EULOUVO.

Eu louvo tudo quanto é belo!
( A mãe assim... Os seios livres e tomados...
A boca sugando... ) A língua?... O selo?...
A conquista de sermos conquistados.

E Eulouvo casou com Eufalo.
Fez um lindo par!
Inda hoje, Eucalo
Diz que a cerimónia foi amar.


CÂNTICO CLARO
( Dedicado a Portalegre)

O teu olhar parecia dizer:
“ Aquele que me amar está perdido. “
Mas mesmo assim
Do interior de mim
Ecoava um cântico muito antigo:
“ Enquanto viver
Estou contigo. “

A minha certeza é única:
Sou ponte entre aqui e além.
Que minha fala é a túnica
Do romeiro que se chama Ninguém.

Enquanto viver estou
Contigo nos morros, nas praias;
E dançarei até que o voo
Das gaivotas se liberte das saias,
Dos batuques, dos sambas
Dos corais, dos cantares de amigo.
Que isto de cruzar cordas bambas
Só foi verdade por um crer:
“ Enquanto viver
Estou contigo. “


E se sou zambo ou mestiço
Foi porque Deus quis partilhar
Comigo seus poderes de criador
Ao trocar a guerra pelo amor.


Por isso, quando ouço cantar
O gaio, o canário, o carriço
Faço-me ao Porto e dou-me ao mar
Que combate o amarelo outoniço.
E então sou tão eu de mim – eu,
Com todas as minhas correntes
As minhas veias, o meu céu
O multicolor das minhas gentes
Livres e capazes e ousadas e objectivas e transparentes,
Que cresço nos milhões de bocas
Mostrando suas línguas loucas.


Quem me invoca é Sagres e Vera Cruz; o resto é pó.
Minhas testemunhas são duas numa só.
Que Santa Cruz continue a ser onda e clamor
Ventos de liberdade a soprar por Timor.


Mas que ninguém me pergunte porquê,
Nem me peça segredos que não sei,
Ou me ofereça outro castigo.
Que meu ser é o mar que se navegou.
É o corpo indígena que se amou.
Que me curtiu e salvou
Educou e fez crescer
E o querer com que digo:
“ Enquanto viver
Estou contigo. “


Lisboa, 23 de Maio de l999


A CAUSA DAS COISAS

1.

Vê como o sol, embora o não queiramos
Nasce todos os dias!... – quem lho teria ordenado?
Talvez o sonho daquela criança que todos amamos,
Que escreve e desenha, e esconde romances no sobrado!

Talvez o silêncio morninho do olhar
Ou a mão que afaga descontraída
Para em cada letra de brincar
Inventar a palavra vida...


Talvez a necessidade
Que o mundo tem de ter cor...
Talvez a verdade...

Ou, porque não!?... O amor.



2.

Quem diz da voz o lugar imprevisto?
Quem diz da boca a fonte?
Dos olhos a mágoa de partir
Num amo, logo insisto,
Numa vida em que o ser não desconte
Anos como paga de existir?!


Quem se debruça da janela
Recolhe a pétala, afasta a madeixa...
Quem doma o sonho fraterno
Lhe monta o dorso, lhe põe a sela,
E quer correr na brisa que desleixa
De ser livre e não eterno?


Quem pelos jardins corre ligeiro
Anda de bicicleta, atira flechas
Faz castelos e nos acorda pela manhã,
Ou se quer no lugar primeiro
Duma vida a que acendemos mechas
De ternura, para que se não torne vã?


Quem é capaz de ainda chorar
Por nós, nos pede pão, dá lições
De abrir as mãos sem fazer batota,
E à montra dum comércio quer parar
Para com quaisquer dez tostões
Comprar gelados, bater à porta?


Quem?! Quem nos diz da simplicidade
Ser tão bela como a confiança?
Ou se surpreende com a verdade...
Quem?
Quem?
Quem?

A criança.


PASSEIO EXISTENCIAL

( Av. da Liberdade )

No fundo do amor está o amor.
À volta, no cimo, estão diversas coisas
Que às vezes nos entretêm: os nomes,
Principalmente, os nomes!
Somos todos iniciados na técnica de compreender
Que Outono é quando as folhas caem!


Podíamos passar por entre elas...
Ser-lhes a invocação imediata...
Enfim! Sermos díspares parcelas
Desse jogo infinito, a concordata...
...Um tratado! Caminhamos..., elas caem,
O sol vem recortante, capilar,
E os olhos descem e cerram, descem
Para dentro em busca do seu começar!

As pombas rodam, rodam as árvores,
Codificam-se os gestos e as cores
E faz imenso vento ruissussurrante
Mexendo as vestes, os cabelos
Os endereços, os remetentes, os selos
A imagética do corpo tonificante
E o chiar dos pneus, o tilintar eléctrico
A voz anunciante, o nome métrico.
Se nos liquidamos as pombas saem
Do quadro – é melhor deixá-las ficar
Como se fossem paz à volta do amor
Coisas, nomes principalmente, a rodar
A voar!...


Estamos num jardim: um qualquer!
Faz menção de sermos homem e mulher
( É que podíamos!... Deveras! ) Ou avenida!
Porque não sonhos?... O sonho também!
Um saco deles! Bagagem de mistério...
Um livro... Um quarto de aluguer...
Pessoas amorfas que vão e que vêm
E que arrastam consigo toda a vida,
E um odor a incesto e adultério...


E os olhos cerram, descem, descem...

E os olhos cerram, descem, descem...


Deixámos os lábios que sabem a amizade:
Deixámos as roupas que usam o desejo:
Deixámos o sangue que cozinha prazer:
Deixámos as mãos que esculpem carinho:
Deixámos a palavra que recita a verdade:
Deixámos a despedida que encontra o beijo:
Deixámos o sol que encanta o crescer:
Deixámos o vento que murmura caminho:
Mas os olhos cerram, descem, descem...

Mas os olhos cerram, descem, descem...

Mas os olhos cerram, descem, descem...


Há, então, um pestanejar: o sonho agita-se.
E os olhos cerrados, descidos, perguntam:
« Para onde vais? » - somos feitos assim!
E cada um pensa e contrai-se.
Fecha-se. Circula. E as respostas ecoam:
« À procura de mim » « À procura de mim »
« À procura de mim » « À procura de mim »
« À procura de mim » « À procura de mim »


ENCONTRO FINAL

Quem sabe do amor
A palavra certa?


Exacta.


Secreta.


O nome.


O dia.


A hora?




Quem se busca?
Descobre a luz exígua.
Multidão

Cruzam-se olhares
melhor dizendo, pensares
de almas fugidias
de um hábito de dias.
É a multidão!
E lá em cima, tranquilo
o Homem do Leme observa
um oceano de cores
sentimentos inequívocos
vários sentidos perdidos...
aromas, cheiros, perfumes
O que será?
Deliciosa sensação
preenche-me o espírito
bebo tal utopia
embriago-me nela
perco-me, encontro-me,
volto a perder-me
Procuro uma brisa,
uma direcção, que me leve
ao cume daquela montanha
de sentidos flutuantes,
de melodias penetrantes
que trespassam almas e corpos...
Descubro-me num sonho
(ser realista!)
com tons musicais, transcendentes
Caleidoscópio de emoções,
universo de visões,
miragens, viagens,
já não sei para onde vou
já não sei quem sou
tantas vidas a passar
são ondas de um outro mar
são vagas de uma maré
ou destino, ou fé
ou aquilo em que se possa
num segundo
acreditar!!

Helder Faria

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

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