8.24.2004

CIRCUNAVEGAÇÕES PERIFÉRICAS

Às vezes, quando a gente fala do sol e do mar, do smog de Gaia e do nevoeiro baço da Foz, do verde e do odor do moliço, do vento norte e dos vestidos garridos das raparigas, somos levados a percorrer um imenso espaço de solidão e maravilha, como se fôssemos os únicos habitantes de uma geografia desfalcada, dum mundo exótico com os úberes repletos de imaginário e languidez, de mitos clássicos e Ulisses distantes a fundarem cidades ribeirinhas, onde fervilham os pregões, as pontes do progresso e os acasos. Aventuramo-nos no irremediável e consentimos que a urbe seja uma afinidade entre nós, que o poder seja uma simples circunstância que nos agrupa, que o cimo do céu seja uma boca livre, que o desespero continue a ser a arma dos fracos opcionais, que a coragem mais não seja que uma curva apertada, que a indiferença não passe da agressividade vingativa do intelecto ostracizado, que o amor se confunda com um buscar contínuo de ser buscado, e que, enfim, aqueles que não conseguem amar pereçam sobre a podridão que merecem. Alimentamo-nos de coisas pequenas e verticais como poetas, objectos e produtos de higiene, sabões e pastas dentríficas, servindo-nos das palavras insubmissas e insurrectas, simbólicas e peregrinas, para desmuralharmos os quotidianos. Ficamos a habitar a maldição dos tempos insuspeitos, porquanto Ulyan também nos seduziu, corrompeu e traiu, circunscrevendo-nos ao ibérico destino. Somos a véspera de nós. E, claro, esquecemos, ou nem sequer ousamos constatar que, ali ao fundo, na última esquina que dobrámos, naquele “boa tarde” mal pronunciado e dado em favor à vizinha, no jornal semanário onde os cronistas escamoteiam e apresentam, sem qualquer rebuço, catástrofes e diarreias, no frigorífico com sua luz tímida de iluminar tomates, na embalagem com bico decepado do leite homogeneizado, na sopa de três dias com gordura coalhada a boiar no cimo, no passe dos transportes públicos ou no grafismo do cartão de crédito, nos cereais empacotados da miserável frugalidade, há muito mais esforço poético e valia artística, esgrimida nos símbolos que nos representam e vivificam, do que em todo aquele escarmento romântico de plástico & cartão com que queremos imortalizar e hipalgisar os hieróglifos alfabetos de todas as resenhas pátrias, conformando-as em hinos de instantes tão supremos quanto derradeiros, de ferrar a faca nas costas dos que amam.
Até quando?... Por enquanto os velhos ainda continuam a repetir que noutros tempos (os deles) é que se trabalhava a valer, é que a vida era dura e o amor era amor.
No meu quarto de aluguer, entre as peúgas e as cuecas sujas, que é o sítio ideal para guardar dicionários e gramáticas, tenho uma cadela embalsamada – ah, mentira grande e descarada esta!... –, que em viva acudia pelo nome de Carriça, e que hoje só resta como ideia infantil, embora em vida tenha sido bastante dedicada ao dono, e fiel, e meiga, e amiga, e inspiradora, e terapêutica, que me transporta ao sossego preciso e necessário para acreditar que existo. E sabem porquê? Porque vejo nela tudo quanto a literatura (a arte) pode ser. Tem o pêlo lustroso mas não larga pulgas! Os olhos falsos e brilhantes que nada reflectem nem imploram, e a pose majestática duma esfinge secular! Não come, não ladra, não carece de ser passeada, não morde, nem larga gases, mas impõe respeito em qualquer sala!
Óbvio se torna, por conseguinte, que a minha comparticipação nesta nunca venha a ser bem sucedida e aceite, tanto por futricas como por talassas, e legítimo é que assim seja (Amém! Aleluia Senhor! Graçazadeus! Aleluia!!!...), visto serem várias as razões que para tal concorrem: primeiro, porque ela assenta em postulados e numa imagética em que acredito inequivocamente, porque a vivi em ruminantes quezílias com a instituição “ensino e educação”; segundo, porque não quis dar-me à comodidade de preencher um espaço em branco da contra-literatura, epitetada a falsos modos de clandestina, marginal e populista; terceiro, porque as temáticas e motivos não servem para ensarilhar lamechices, agradar às tias e seduzir as sobrinhas do sistema, ou tampouco para converter níqueis discípulos em apaniguados Mercedes e BMW´s, ou fitar a originalidade naif de assentar na moda da diferença; e quarto, ó reino dos amaldiçoados da sorte, porque me estou literalmente cagando para quem não pensa como eu, quem pensa que o faz, quem o faz mas não pensa, ou de quem julga que é moderno só porque a sua ignorância não o deixa ver que essa modernidade já foi rejeitada por obsoleta há que séculos!
Contudo, a ajuizar pelo que fica dito, não se pense que me empenhei em desenfrear a lasciva fúria de quem por artes ciprianas detém a esgarçarçada molécula da comunicação e os desígnios do grão-falar. Que o propósito não é tão didáctico e sublime, senhores!... E embora saiba, quem não sabe?, que “os monstros existem mesmo fora da nossa imaginação”, não profanarei a sua auréola de eleitos...


A FORÇA DO TEM QUE SER

Não estamos aqui para competir,
Nem tu, nem eu, temos nada com isso.
Crias o que podes
E eu criarei igualmente o que puder.
Faço o que quero só por o fazer
E tu farás o que queres só por o querer.
Eu sei que hei-de lá chegar
E tu também tens uma meta realizável.
Por isso, se fores para o mesmo lado que eu,
Ou se eu for para o mesmo lado que tu,
Encontrar-nos-emos certamente, o que será baril;
Mas se tal não acontecer, deixa lá,
É porque assim não tinha que ser
E não valerá a pena reinventar Abril!

ZÉ MARMELO

Zé Marmelo era brigão e berrava lá no Sítio de Casal
Parado na minha terra do Zé Marmelo, porque ele, sabem
Nunca cagou sentenças na televisão e podia berrar
E o Sítio era dum brigão, que era ele a sitiar.

Às vezes, à tarde, em verões escaldantes, sentava-me
Na parede à beira do alcatrão apenas para o ouvir
E ele gritava e dizia que havia de a matar, que ela era
Uma puta, uma puta!!!, e ela era só a mulher e mãe
Dos filhos dele, mas ele não queria saber disso,
Queria era o dinheiro dela para beber mais uns copos
De branco (jamais conseguiriam que mudasse para tinto)
E poder jogar uma bisca de soldado, e ter motivos
Para discutir com outro qualquer
E esquecer-se da mulher.
À noite, madrugada fora, iria roubar que comer de dia
E os donos das hortas sabiam que ele os roubava
Mas não queriam saber, nem se importavam,
Pelo que Zé Marmelo morreu sem nunca ter pedido
Nunca ter implorado nada a ninguém.

Ah, carago! Se ele vivo fosse hoje e militasse no partido
Muito havia de ensinar a estes políticos que a gente tem!

QUANDO A DIFERENÇA É DIFERENTE

Os olhos são os olhos, e os rostos os rostos,
Mas aquilo que os faz sorrir é uma coisa muito diferente;
E, se, por acaso ou virtude, eles o não fazem
É porque para isso foram plantados e dispostos
Como semeados em desgostos podem ser de repente
Os meus e os teus, na presença de qualquer imagem.

Que tenhamos à nascença um rótulo
Que nem sequer queremos usar, pouco importa!
Que se fazem os corpos iguais sem (des)vantagem
É pura utopia gemebunda de virgo imáculo,
Pois onde a natureza talha e corta
Acaba-se a feira e o espectáculo
E nasce a diferença, como desta nasce a coragem.

Agora, se da diferença fizermos o selo da derrota
É bem verdade que a culpa guia o leme de nossa rota!


FUS(T)ÃO POSSÍVEL

1.
O desejo é antecipação.
Um olhar é uma oportunidade de contornos. Uma oportunidade é uma circunstância. O poder cresce-nos como cornos. Circunstantes e oportunos.
Vejo-te; logo, possuo-te. Aqui começa a minha teoria da masturbação. Uma teoria é uma prática idealizada. A ausência uma tabuada incompleta e incontida. E se estás ausente, és uma impressão, um retalho na objectividade.
Cada um dispõe de si teoricamente, e de todos se (não) ausentes. Eu serei aquilo que tu quiseres que eu seja numa idealização oportuna. Tu és aquilo que eu penso numa prática circunstancial. Num gesto de punho em sobe e desce, vejo-te; logo, possuo-te. Imagino-te, teorizo-te. A circunstância transcendental é uma posse imaginada. Sou uma figura de passe entre os demais e tu. Sou a consciência do eu entre mãos, e a sua viabilidade na condução.
Eu é uma consciência. Uma consciência é um caminho. Um caminho é uma via. E esta uma habilidade. Enquanto os outros, as coisas e tu, forem viáveis, eu serei o que tenho de ti: mas tu és a circunstância; logo, possuo-te. És a oportunidade do meu eu olhado. Sem ti eu não podia ser via. Não era caminho. Não existia.
Tu és a existência. Existir é imaginar. Imaginar é possuir. Tenho-te. Tenho-me. Existimos!
Se o acaso acontece, aconteces. Se anoitece, anoiteces. E se és dia, levanto-me. Os meus olhos são o que contornam. Eles olham-te e eu vivo. Aconteço. Anoiteço. Levanto-me. E salivo.
Gulosa, é a circunstância do eu, face à oportunidade da posse. Sou eu quem salivo. Tu me salivas em eu salivando-me. Desejo: oportunidade. Desejo: posse. Desejo-te possuindo-me. Possuo-me desejando-te. Imagino-me tendo-te.
Paradoxo? Afinidade? Luz. Luz. Luz. Quase dia. Luminosidade. Atracção contraditória: o pólo busca o pólo se houver energia. Fluxo paradoxal. Languidez gulosa do eu. Eu lânguido, possuído. Pressionado na posse. Pressão opaca do querer: paixão. Eu e tu; tu e eu; eu outro; outro tu. Outro eu-não.
Mexo os lábios. Profiro. Proferir é preferir. Pré-ferir. Prefiro os lábios. E os lábios proferem os olhos. As mamas. A púbis. O sexo. Mas os olhos preferem a palavra. E esta profere-se. Digo: constato. Cons acto. Acto constante de pr(o/e)ferir. Pré-ferir. Pró-ferir. Os lábios são ameixas doces!...
Comes. Lambuzas-te. Devoras. Mas o caroço dos dentes embate na palavra. A palavra é o gesto da língua, e o dialecto é (a)mar(-)te. Comemo-nos. Lábios quase tudo no gesto impreciso de um clitóris periclitante.
Na líquida solicitude... é aí que morro e tu renasces. O dia desponta sempre assim! Lês. Proferes-te. Comes. Beijas. Solícitas embatem constantes as palavras gulosas na imagem viável da oportunidade tu. Igualmente prefiro-te.
Cedo-me. Medo-se-me. Teme-se o medo de ceder. Teme-se o cedo. É tarde. O mundo fica mesmo ali...
Ali...
Ali...
... ao lado. Sempre ao lado. Eréctil.
Toca-lhe... Vá, toca-lhe!!!

2.
Se vires chegar a gaivota com o bico aloirado de sol, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires o pôr do sol raiado de violetas e uma brisa que vem do sul, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires uma criança descalça e desnuda correndo pela relva do Jardim do Palácio, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires algum velho sem-abrigo lambiscando a beata nos dedos amarelados, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o louco profeta de barbas despenteadas e sujas discursando contra o consumismo e energia nuclear, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o cão esquelético e faminto como pool de todos os abandonados do mundo, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires um papiro esvoaçando sobre a multidão mecanizada, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires cair da janela anónima uma fotografia rasgada, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires os teus olhos brilharem numa noite de luar, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires um sorriso urgente num rosto desconhecido, não estranhes; é a minha forma de estar contigo.
E depois de eu ter chegado
Muito depois do ainda não
E muito antes do já de volta
Finge que não me conheces
Faz gestos de negativa revolta
Faz negaças de comiseração
Faz traquinices de benesses
E dá o sonho por acabado.

Mas depois de eu implorar
De pedir um pouco de atenção
Inventa nomes que me trocam
Inventa partidas que te preguei
Inventa razões de negação
Inventam ditos que te adulam
Inventa actos que não pensei
E belisca-me para acordar.

E então depois de eu rogando
A teus pés pedir um sorriso
Diz-me, seca, fria, reclamando:
«Por favor... Tem juízo!»

E se então vires voltar ao nada uma fotografia, um papiro, um louco, um velho, uma criança, um pôr do sol, uma gaivota, um sem-abrigo, um cão, um sorriso, não entristeças, nem estranhes; é o Porto que me denuncia!

INSÓNIA DE VÉNUS

Aqui, não há humanidade nem moral...
Aqui, não há lei, não há fé, não há nada!
Aqui, tem-se somente a urgência total
De vencer o breu da noite desmaiada.
Aqui, a mecha niquelada manieta vil
Quem se atreva pela fresta deserta
Que nos deixaram Sebastião e Abril...
Aqui, apenas o sonho louco desperta!
Aqui, já se foi tudo quanto se pode ser.
Aqui, já se foi espada e coração de Jesus.
Aqui, já se fez guerra pelo amor de Mulher.

Aqui! Aqui... Onde as bocas se tocam em cruz
Houve uma borboleta que me veio dizer
O quanto é doce poisar em teus seios nus.

HISTÓRIA VERDADEIRA

Uma história verdadeira é um rei, uma mulher fértil
E um poeta pinga-amores.

Já me não apetece acabar as coisas
(Estou a ficar farto das latas de conserva!)
E quando meto por um caminho em que não encontro
Encruzilhadas, sinto fome e sede de alternativas.

Perco a lucidez se me depara tua boca sem hipótese de meu
Beijo (estou a ficar farto de consumos acabados!)
E quando meto por um corpo em que não encontro
Surpresas, sinto fome e sede de diferenças.

E desisto de mim se se profere o poema mais-que-perfeito
(Estou a ficar farto dos perfeccionismos castrativos!)
E quando meto por uma página sem cagadelas de mosca
Sinto dandys, dadás e dalis a corroer-me a consci

PASCI
ência-ência-ência-ência-ência.

É por isso que digo que numa história
Verdadeiro é um rei
Verdadeira é uma mulher fértil
Na mentira de um poeta pinga-amores.

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

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Escribalistas é órgão de comunicação oficial de Joaquim Maria Castanho, mentor do escribalismo português