6.01.2013

HÁ LIVROS QUE FAZEM FITA

«Bastantes foram as ficções que nos escreveram sem que tenhamos dado conta disso…», pensei para comigo enquanto folheava ao acaso, petiscando aqui e ali, o De Que Falamos Quando Falamos de Amor.

E então, de repente, apeteceu-me ver um filme que tivesse sido baseado num livro que já lera e tenho a certeza me marcara, embora dele muito pouco ou quase nada me lembrasse: A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. O romance, logo nos primeiros frames, saltou-me à consciência, não como um dejá vu que era, mas como um desanoitecer da memória onde se entrecruzavam inúmeros flashbacks derivados da consequente e exagerada utilização do discurso e título em paragonas ou citações, quer por políticos na berra ou pelos Mass Media que queriam fazer figura de letrados.

Todavia, o filme homónimo, realizado por Philip Kaufmann (1988), com Juliete Binoche, Lena Olin e Daniel Day-Lewis, é mais do que uma grande história ancorada na Checoslováquia dos finais de 60. É a materialização da transitoriedade, aquela fluida sensação de que nada é eterno, estável e assente; enfim, que tudo muda e só a incerteza e a dúvida alternam e retornam no tempo, exatamente nesse tempo onde o eterno não passa de mais uma abstração da poesis, do sonho ou evasão.

Porque A Insustentável Leveza do Ser é um filme que está dentro de outro filme onde nada é seguro e definitivo. Onde mesmo as personagens principais, protagonistas, se não dão a conhecer com clareza, permanecem indistintas para além dessa vontade de viver e atravessar o espaço-quando com que subtilmente – ou será melhor afirmar “levemente”? – se manifestam. O que, é evidente, não obsta, nem impede, que sintamos que cada um dos seus gestos é essencial para o desenrolar da narrativa nesse registo histórico e sentimental que a escrita polifónica de Kundera tão exemplarmente descreve, propõe, serve, num palimpsesto ativo em que tampouco a excelente fotografia de Nykvist consegue apagar, para nos devolver pouco a pouco da ilusão e entrever o outro lado do rio tingido com o naturalismo realista que a objetiva impõe. Isto é, não obstante a diferença de suporte e veículo, o romance de Kundera finta, rasteira, o realizador, a ponto de parecer presente mesmo quando foi intenção deste último em que não estivesse… O que é uma grande fita!

FILMES GENERICAMENTE ESQUECIDOS

Serenidade, de Rosa Coutinho Cabral, Anne Trister, de Léa Pool, Jane B., de Agnès Varda, As Noites Bárbaras, de Marion Hansel, Robinsinada ou O Meu Avô Inglês, de Nana Ozhardzhade, A Rua das Casas Negras, de Euzhan Paley, A Hora da Estrela, de Susana Amaral, só para citar alguns de entre os muitos títulos que apareceram e de imediato desapareceram do panorama cultural português, são filmes de realizadoras cinematográficas que viram no discurso feminino o leitmotiv mais que suficiente para fazerem no cinema uma destrinça de género, quer nos modos de contar as histórias (incluindo a terminologia e linguagem), quer nos elencos e conteúdos escolhidos e/ou enfatizados, ou aquilo que essas realizadoras entenderam ser relevante para ilustrar a sua narrativa, que consideraram importante ou interessante nós observarmos enquanto espetadores e descodificantes.

Neles, a condição feminina, enquanto elemento de uma sensibilidade particular, bem como a forma como ela foi traduzida à velocidade de duas ou três dezenas de imagens por segundo, parece ser-lhes o denominador comum que fez com que nunca tivessem sido muito vistos, fato que sobejamente ajudou para que também fossem lestamente atirados para o esquecimento, mesmo dessa parte da humanidade a quem as questões de género acarretam identidade e empatia. As situações sociais que espelham, as teorias de vida que refletem, os objetivos e anseios que perseguem, as narrativas sentimentais e emocionais que equacionam e entretecem, não deixaram de ser atuais, pese embora a escala de prioridades e preocupações existenciais tenha mudado, remetendo-as para patamares subalternos. Porquê?

Será que alguém pensa terem sido dissolvidas (e removidas) todas as inquietações que desassossegavam o género feminino só pelo fato de ninguém falar delas com a mesma acutilância e veemência das cineastas do século passado? De 80 para cá muita água correu debaixo da ponte, mas também penso que não… O tempo tudo cura, sobretudo na idade avançada, que culmina com a morte, que é um tempo sem tempo onde todas as fortunas e infortúnios se equiparam em valor, num tanto-faz que anestesia, todavia há feridas que nunca cicatrizam sob a crosta ou carapela que as omite do inventário das chagas pessoais e sociais visíveis. Porque elas remanescem à mínima beliscadura… Salvo seja!

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

Arquivo do blogue

Acerca de mim

A minha foto
Escribalistas é órgão de comunicação oficial de Joaquim Maria Castanho, mentor do escribalismo português