4.03.2004

PORTUGUÊS SUAVE


Perto da alvorada um barco parte.
Solitário. Altivo. Mastro desvirgindo
Desflora plúmbeos anjos fugindo
Dum luso quadro de engenho e arte.


Leva no bojo um nome escrito –
Que mal se vê, que mal se soletra –
E por vela enrolado manuscrito
Que vírgil mão em seus dedos aperta.


Foi homem e rei ao seu leme
Que mais que homem foi também nação;
E em cada vez que o cordame geme
Lhe estremece a voz, o fado e o coração


No peito uma madrugada sustenida
Que ao vaivém das ondas o ritmo bate
Levando-lhe também a própria vida...



OUTRO REINO PARA INÊS

É preciso amar as sombras que me falam de ti
Ou as nuvens quando estas ganham formas
Que em tudo se assemelham às tuas ausências;
É preciso. E ser lesto no referir dos olhos
Amoras silvestres de ouvir os gestos
Falar às fontes de teus lábios gomosos lineares
Ou descer pela seda ondeada castanho-escuro escorreita
De teus cabelos partidos ao meio dos sonhos iguais.



É preciso esconder as mãos nas ânsias de ser,
Meter os dedos nos refegos e costuras de existir
E saber que continuar é uma metafísica adiada,
Uma ontologia auspiciosamente pejorativa preterida
Como se de uma vergonhosa mania íntima se tratasse,
Sem recear as curvas derrapantes ou as agulhas marginais,
As culpas assumidas e as projecções perversas,
Os fundamentalismos intolerantes ou as crostas
Sempre demasiadamente rígidas das dores alheias.



Porque é preciso a cada hora minuto segundo reconverter
A ausência saudade em espaço quando imagem acabada
Suficiência compensatória do quanto é irremediável viver
Não sei onde, não sei porquê, mas saber é bastante
É bom ouvir o telefone de “ podes ser tu a tocar “
Retinir insistentemente insistes em esconder o nome
No alô impessoal, profano, thriller mal contado
À beira dos dedos com unhas roídas até à pele de veludo
Acariciante dos gomos sensuais e meigos em leque dispersos
Pelos gestos indomáveis da fala sublinhando iluminuras.



Sei isso e muito mais que tu também não esqueces
Nunca jamais seremos outros em nós ainda que importe
A conjuntura, o carro novo, a mobília a prestações.
E quando é preciso as coisas acontecerem, acontecem
Ninguém pode mudar a lei porque a lei é a Lei
Não uma decisão da assembleia que calhou votar assim
Tão-só assim, precisamente não doutra lei mas daquela.



É não estares aqui ou eu aí o único órgão que me pesa
Nunca os pés, as pálpebras, a língua também entaramelada.
A sonolência é outra coisa não parecida com languidez,
Mas pode ser um despertar para o reino do sonho
Navegar entre as tuas coxas naufragar e naufragar
Não importa esquecendo, esquecendo, esquecendo sempre,
Até ao fim do gesto morno de estender os ombros e gritar.



Gostava de pensar que me esperas os olhos postos na porta
A respiração suspensa a cada sombra que se aproxima
Um formigueiro na espinha e as espáduas que fremem
Embalam expectante fantasia no perfil convergente à ombreira
« Eu vou voltar!... » - A certeza cresce ainda cresce
Não repete, não pára, não fica aí como se fosse estádio
Mas paragem à tona fluente terna dos absolutos possíveis.



PÃO E VINHO

Fazer um poema não é como fazer um filho.
Não é partir uma vidraça. Nem é olhar uma cria
Enquanto brinca nas ruas do crescer
Nas escolas do crescer
Nas rampas do crescer
Nas pistas do crescer
Nas balizas do crescer
Nas passerelles do crescer
Nas discotecas do crescer
Nas tabernas do crescer
Nas avenidas do crescer
Nas câmaras do crescer
Nas camas do crescer
Nas bolsas do crescer
Nas reformas do crescer.


Não é. Mas comer uma azeitona de Elvas também não;
E todavia, ambas as coisas dão imenso gosto e prazer.
1.

Cor-de-laranja acentuadamente acordado de mansinho….
Sim, por ti, meu amor grego de unhas pintadas
Por acaso úrsulas caminhantes de areia pisada
Calcada por aqueles que te amam sem saber
Mendigo angélico, vem a meu canto burguês
Vem que eu te amo… A correr como quem descasca bananas
A olhar o céu – sim, é assim que quero amar o mundo
Usando plenamente todos os poros que abundam
A minha cheirosa pele, segundo diz o meu amor.


Quero beber todo o sangue humano do mundo!
Quero lamber as lágrimas dos anjos-que-não-sabem-que-são-anjos.
Quero quebrar o silêncio morto das fantasias impúdicas.
Oh, meu anjo bíblico, porque não sabem eles o que perdem?
Porque desconhecem o poder das contracções ritmicamente acentuadas
A atmosfera pressionando o corpo dos que não têm medo de mostrar quem são?
Sabeis? Sabeis que, mel-de-abelhas-casmurras, correr, correr
Correr de encontro ao mal é como comer biscoitos com manteiga?...
Ris?? Ri. Ri! Ri!!! Sente as cócegas cornucopiantes de amarelo-torrado
Correntes de ar com perfumes não usados por humana gente.
Ri; imortaliza-me! Faz-me vibrar de medo, medo morto
Morto muito morto, capaz de se desfazer ao toque
Ao suspiro da princesa cabelo-cor-de-mel, coitadinha que chora
Que chora… Não, ela não perdeu o sapatinho de falso cabedal
Porque nessa festa ela não foi, e nem sequer foi convidada!
Ah, e também não acordou pelo beijo do seu príncipe encantado:
Quando adormeceu no sofá, frente à TV, com a pantufa no colo
(Coitadita, faltou à festa…) só acordou quando o lobo-mais-que-mau
(Trrriiiimmm-Trrriiiiim) lhe tocou à porta a pedir a contagem da luz!...


Vá, chora... Chora. Chora! Chora!!!... Vejo o grande fio cor-de-marfim
Enrolado na menina que descobriu quem está dentro dela... Feliz!
Estendida na estrada negra alcatroadamente enfeitada de traços brancos
Ora contínuos, ora descontínuos, com ou sem relevo, como tudo na vida
E de todas as cores vividas por todas as pessoas que querem saber todas as coisas
Coisas que todas as canetas sabem rabiscar, rabiscos em todas as direcções
Todas as maneiras possíveis de preencher e ser-se preenchido
Tal como todos os seres, humanos a orgasmiar que nem lobos na floresta
Sábios do sadismo de amar para enlouquecer o seu eu e o mundo em que vivem.
Amo-me! Amo-me! Quero agora! Quero possuir-me aqui e agora, já
Neste autocarro em que mais trinta pessoas viajam comigo, púdicas
Efémeras, pujantes na frigidez do prazer que acorda todas as manhãs
Todas, para acariciar o mundo deslizando, caminhando nele... Silêncio!!!
Quero lacrimar meu sangue sofrido aqui e ali, sofrido além e acolá
Tal como todos os homens se fertilizam com a mente, vasta, vasta, vasta.
Sufoco de prazer sem ninguém saber, ninguém ver, ninguém sentir...
Porque não querem ver, não querem saber, não querem querer!
Repito: não querem sentir o mundo onde apoiam seus pés...
Senti-lo tal e qual ele é, sem ilusões... estúpidos carnívoros!
Amantes da quase apaixonante carnificina na ilusão do mundo
Ilusão sem limites que apenas os humanos vêem com portas
Portas bem fechadas para o ar respirável dos duendes (feios
Feios, feios – como eu vos amo, meu deus!... ) lindos de tão feios
Não entrarem pelas portas fechadas, bem fechadas, até ao trinco
Mel mundano que adocica nos cabelos cor-de-milho-ainda-verde
De Melinda, princesa extraditada, Rapunzel ibero-lusitana...


Mas nas portas lêem-se cartazes: “ABRIR SÓ NO MUNDO DOS SONHOS
Letreiros anunciadores dos estúpidos carnívoros
Abri, abri, abri as portadas, que a rainha louca quer entrar!
E o povo grita: “Loca! Loca! Sois uma putanita loquita!
Sois uma devassa com os parafusos a menos e desaparafusados!”

No entanto, lamenta-a: “coitadita, pobre doida tresloucada!...”
Mas eu transbordo na fluidez dos prazeres corporais e mentais
Desejo, desejo como nunca desejei nada na vida, entrar por aquela porta
Na liquefacção do meu corpo resultante das altas temperaturas
Com que chicoteio todas as minhas subalternas veias
Quais nuvens de ameixas lançadas do céu pelos magos celestes
Fumadores de orações incensadas, garota da minha pátria
God save the queen” dito em desejo, desejo, desejo carnal
De entrar no mundo da loucura extasiante ao descontrolo oblíquo
Amavelmente riscado e pintado com cores que ninguém entende!...


Eis a porta dos sete orgasmos! Sim, sete cornucopiantes flagélicos
Ablascentes e floridos absolutamente mortíferos imortalizantes orgasmos!
O primeiro... (continua)



2.

Não sei o que está dentro de mim... É algo que explode de vez em quando
E quando isto acontece, choram-me lágrimas, lágrimas que levam consigo
O cheiro a carne humana, a carne humana raivosa, carne sufocada
Inebriada por cheiros de aqui e acolá, coroada pelo amor dos deuses
Rasgada pelas unhas do cão suculento e amarelo-torrado
Que passeia na vida sem saber, sem saber porquê nem para quê...


Amo o Heitor, mas ele sufoca-me! Prometi ajudá-lo. Ele vai precisar
É de mim daqui a alguns anos... Daqui a alguns anos irei ajudá-lo!
Ele merece. Ele amou-me. Deu-se-me todo... Deu-se sem limites!
Quero cuidar dele; quero fazê-lo adormecer no meu colo,
Quero dar-lhe o banho salgado e duro e cruel de minhas lágrimas
E com meu sangue íntimo fosforescente hei-de pintar nele o arco-íris!
Quero tanto que ele seja feliz... Mas eu sei que não mereço a infelicidade,
E é tão difícil sermos ambos felizes, que só tentar, é de si demasiado insano!


Olho para trás... Tudo quanto ele me provocou
Tudo quanto ele em mim libertou ou despertou
Tanto amor, tanta raiva, tanta pena, tanta amizade
Tanta curiosidade pela vida, a enorme vontade e olhar o mundo
De tirar o melhor que há em mim, a grande força do sexo
O de querer amar para reproduzir e criar esses rebentos...
Eu quis ter filhos dele! Ser mãe dos filhos dele...
E quis morrer por e para ele, com ele... quis que nos fundíssemos num só ser!


Foi ele quem despertou os sentimentos mais puros e mais humanos
Em mim ele é especial, só por isto, terá de ser especial...
Ele vê para além dos traços do mundo, para além dos pêlos da pele
Portanto, mesmo que amanhã ele não venha como prometeu
A minha casa, mesmo que nunca mais me telefone
Nem com ele converse, mesmo que a morte nos procure antes e nos encontrarmos
Eu amo-o e sei, tenho a certeza, de que ele me ama também,
Que nos amamos de e para sempre, porque meu coração e alma não têm limites!


Por isso amo muitas pessoas, muitas... E entre elas, amo nem mais nem menos
Amo diferente! Se todas despertaram algo diferente em mim, para quê compará-las?
Amo homens, mulheres, gordos, magros, feios, bonitos, lindos, horríveis
Bem cheirosos, fedorentos, altos, baixos, cabeçudos, carecas, brilhantes
Sombrios, bem vestidos, maltrapilhos, velhos, novos, mansos, rebeldes
Com ou sem adjectivo – tudo nomes e renomes concebidos pelos outros...
Pois que para mim todos têm outros nomes, que os identificam no que em mim são!


Deixa ver as pessoas que amo... Amo o Heitor!
O Heitor para mim é água, água pura, cristalina, etérea
Impossível de aprisionar em qualquer recipiente, água que é vida,
Que tal como ele, que em si mesmo a transporta, com tudo o que ela tem
Amor, ódio, tristezas, alegrias, e vive-os! Ele é o homem
Literalmente vivo, não os homens ditos vivos mas que passeiam pela crusta
Terrestre, mortos, inteira e eroticamente mortos! Ele não; ele está vivo e passeia
Passeia e está louco... Porque quem vive é louco! É a própria loucura!


Sim... Acabei agora mesmo de o descobrir: quem vive é louco
À semelhança do que afirma o ditado massai acerca do Heitor
Que “primeiro a loucura, depois a sabedoria” assim dito verdade pura
Também o Heitor vive, no seu coração e de quem o rodeia, vive
E põe flores onde nunca ninguém admitiu a hipótese de haver vida
Ele põe flores, flores loucas, as magníficas flores das loucuras!...

3.


A vida pesa nos ombros de quem a leva pesada...
Naquilo que as pessoas vêem e não olham
Aquilo que quero perante ti e mim
Ás escuras, no trampolim dos tecidos fluorescentes
Que a vida murcha nas flores atiradas à sombra
Que sombra minha abrange os outros?
Que sombra minha abrange o mundo?
Iluminação dos dentes brancos, com carapinha emaranhada
De terra vermelha africana
Luz de mim e ti
Escolhas perante cruzamentos de olhos moldados em ti
Escolhas do Mundo vestido de castanho em pó
Amavelmente cai em Terra...
Tenta...
Trémula...
Vivida...
Fujo dos olhos que me traem por trás dos ombros...
Fujo do mundo que me quer derrotar...
Fujo de mim...dos limites que delineei...
Ou que me delinearam por ser humana
Por ser Mulher
Por amar os cornos da Vida Terrestre
A cinza cresce nos meus músculos
Não consigo respirar...
O mundo sufoca-me e não me deixa crescer
Poros da minha pele amuralhados pela realidade
Realidade?
Passas-me o pão todos os dias de manhã?
Poros da minha pele obstruídos pelas minha visões...humanas..
Sinto-me enlouquecer a cada segundo que passa
Sinto a descoordenação mental, a desarticulação de tudo
O que me compõe como ser
Sinto a quebra do lápis com que escrevo a vida
Poros obstruídos por tudo o que olho e não vejo.
Não vejo...
Limites que me impõem...
Impõem como me impuseram o leite materno á nascença...
Outras formas de comunicar?
Não sei!...pressinto-as?
Não sei!
Sinto a vida? Sinto a morte?
Sinto a morte como um encontro final e completo comigo mesma...
Só lá me encontrarei com a minha verdadeira alma..
Alma
Alma que me persegue e eu fujo...
Fujo do seu encontro...
Fujo da morte... mentalmente...
Fujo do que me persegue e que amo...
Amo a morte.
Amo a morte da vida...
Amo as palavras que me compõem
Amo o que me persegue e não controlo
Amo o descontrolo que compõe as linhas de minha mão.
Verdades escondidas no corpo?
Devaneios na pele que nos fronteiriza com o mundo?
Assim quero viver...
Tremo só de pensar que vivo aqui, comigo...
Tremo de ódio? Prazer?
Já não me interessa nomear sentimentos...
Já não me interessam nomear as coisas que vejo...
Não gosto de nomeações..
Vou inventar uma língua que não nomeia coisas


LI
DISTRACÇÕES

Esquecidas no tempo
num saco sem fundo
algures num espaço desequilibrado,
sentadas, as palavras
revelaram-se solidárias
libertaram-se
vaguearam de mãos dadas
e pensaram serenamente
ARMARAM-SE
SITIARAM

invadiram milhões de páginas
anónimas
dissolutas
esquecidas
que ganharam vida
Lutaram contra prefácios ocos
derrubaram frases vazias
desordenaram batalhões de ideias
detalhadas
Assaltaram parágrafos
e arrasaram capítulos
Venceram a lassidão


E o autor, aspirante a poeta
criticou

claudicou.



Zélia Marchão


ESCRITA DOMÉSTICA


Por cima dos telhados oblíquos
pairam frases gramaticalmente harmoniosas
pelos canais de telhas gastas de adjectivos
deslizam palavras simples e melodiosas
das goteiras, sílabas caem-me gradualmente
nas mãos em concha
E numa página em branco
construo metáforas
tentando disfarçar o pensamento
De vez em quando um salpico de pretérito
invade um espaço ou outro
Das chaminés, em espirais enfeitiçadas
fluem, subindo, preposições desordenadas
pousando a pouco e pouco na roupa do estendal
E o vento chega, forte, para baralhar
toda a ortografia
Desejo que a neve traga
as pontuações certas
Porque, neste inverno, presumo que
não se construam textos seriamente delineados
Talvez, quem sabe, o ferro de engomar
quente, escaldante de realidade
alguma coisa, ainda, possa salvar
Cada peça é moldada por dedos de tinta
acariciando as linhas de lã
para simplesmente se aculturar com todo
o tipo de verbos alinhados, metodicamente, na gaveta
Por fim, após um banho quente de diversão
prosas de cetim arrepiam-me a pele
perfumada de poemas
que se soltam de primaveras melódicas, passadas.

Zélia Marchão

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

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