10.12.2004

DESMANDOS & IMPROPÉRIOS DA NOSSA PRAÇA

Já ninguém lê jornais. Nas bibliotecas sobram intactos; nos cafés acumulam-se dobrados na prateleira das inutilidades. E aparte isto, só quem é mesmo obrigado a lê-los o faz: empresários das agências funerárias, jornalistas, anunciantes, famílias dos defuntos, autarcas e demais políticos envolvidos nos eventos democráticos (do poder). Enfim, a quadrilhice noticiosa passou do mórbido ao moribundo.
Causas? Infinitas e incontáveis. Mas sobretudo porque os tempos que correm não estão para tretas, ainda que de meias tintas sejam – ou em directo. O mundo pula e solavanca (e nós com ele, no pára-arranca), ditando-nos quanto de filosofal a pedra está mais que gasta.
É certo que alguns cafés resistentes, para desfastio da clientela, continuam a comprar este ou aquele título em cujas capas a cor melhor condiz com a decoração do estabelecimento, principalmente desportivos, a que se possam aproveitar além das boutades nos relatos, também os números antigos para limpar as vidraças. Esporadicamente são inclusive notícia, as ditas casas ou seus mui digníssimos frequentadores, alguns até célebres e destacáveis por isto e aquilo, colunáveis e informadores situacionistas, aliviando encargos às tribos aficionadas, mas daquilo sabendo muitos embora que disto já nem tantos, o que desvalorizam impreterivelmente se algum congénere concorrente teve honras radiofónicas ou televisivas. Porque aí sim, ficam abespinhados e ressentidos, sentem-se vítimas da descida de escalão, passando para a divisão local do preto e branco, onde nem federado se precisa de ser para se ficar com fama de Zé-ninguém. Então aferram-se à tradição e embirram com os progressismos, todos eles, mesmo os penteados coloridos ou as mini-saias, e passam a cultivar um inaudito desdém pelo mundo e ao que nele acontece, a que costumam chamar de “só desgraças” de enfeite aos fait divers políticos, reflectindo em teoria quanto a prática jornalística lhes fornece enlatado pela indústria noticiosa, agências obreiras de separar o interessante do incensurável politicamente correcto, joeirando dos factos os que o são mais e/ou nem tanto.
Ou opinião. Fantasias das mentes desocupadas onde a má fé se faz verbo, quase sempre de borla, maniqueísta, eivado de restrito esclarecimento e motivada percepção. Opinião irremediavelmente partidária ou anti-partidária, redundante, assertiva (asservada e graxista), pistoleira, bandeirolas, encharcada de clichés, requentada e eco dos debates televisivos, esvaziada de propostas semânticas construtivas ou de discursos cooptantes. Maçuda e altaneira. Recadeira ou paliativa. De manifesto esconde-esconde e agarra-agarra criancista. Fleumática e arruaceira. Arrivista e intencional, e que serve sobretudo de patamar promocional de carreiras. E políticos.
Ora o resultado desta inconsistência da imprensa (nacional, regional e local), desta abdicação conivente progressiva dos jornais dos projectos de desenvolvimento urbano sustentado, reflecte-se acentuadamente nas zonas interiores mais desfavorecidas, onde o vigor do tecido empresarial e do mercado é menor, e os rigores das crises superiormente se sentem. Como por exemplo, em Portalegre, onde em anos anteriores, já quase de remoto espectro, houve alguns festivais de impacto cultural, entre os quais o Internacional de Cinema, o de Ambiente, Som e Imagem ou Internacional de Teatro, mas que pereceram definitivamente, arrastando consigo todo o esforço financeiro despendido nas suas edições iniciais para a vala do desperdício, da qual jamais sairá para vergonha dos políticos que roubaram essa verba às bocas esfomeadas, sem saúde, educação, casa e cultura, contabilizadas em mais de um terço da nossa população. Investimentos indubitavelmente irrecuperáveis, excepção feita ao Festival Internacional de Teatro, que é o primeiro ano que falha desde que começou, por circunstâncias adversas múltiplas, que se circunscrevem nas dificuldades operativas ao nível das instalações e acessibilidades, em virtude das obras na Igreja de Santa Clara, sua residência fixa, como nas circundantes à Igreja de S. Francisco, espaço provisório onde se tem instalado ultimamente a Companhia de Teatro e Portalegre, organizadora e promotora do evento, como a nível financeiro, capítulo onde ainda não foram saldadas algumas dívidas contraídas nas anteriores edições, ou no corte dos complementos honorários aos subsídios requeridos pelos projectos que se apresentam, verba imprescindível para cobrir as despesas de deslocação, permanência e alojamento dos grupos de teatro nacionais e estrangeiros que nele, Festival Internacional de Teatro, actuem e participem.
Sobretudo porque esta imprensa salamelequeira se restringiu à cobertura política dos eventos, em vez de divulgar, criticar e analisar obras e autores, encenações e actuações, estimulando assim públicos e bilheteiras, patrocínios e mecenatos, que são a única forma de garantir a sustentabilidade das artes do espectáculo, qualquer que ele seja, promovendo receitas e não esmolas institucionais, também conhecidas por subsídios, e dos quais se insiste dependerem.
São a rejeição e indiferença as principais armas dos fracos, pobres de espírito e miseráveis. Mas quando estas são arremessadas sobre o desenvolvimento regional (e nacional), com a desculpa da actualidade e do interesse jornalístico, assumem uma perversão e malignidade inimagináveis, à semelhança do que vem sendo feito a propósito da novela marcelista no outono governamental laranja. Esquecidos estes filósofos da ejaculação precoce, arautos da maledicência e do esclavagismo comunicativo, impotentes para modificar o olhar perante as evidências moleculares do desenvolvimento sustentado, de que as funções específicas da imprensa regional (Decreto-Lei nº 106/88, de 31 de Março) são as de a) promover a informação respeitante às suas regiões, b) contribuir para o desenvolvimento da cultura e identificação regional através do conhecimento e compreensão do ambiente social, político e económico das regiões e localidades bem como promover as suas potencialidades, e d) contribuir para o enriquecimento cultural e informativo das comunidades regionais e locais, bem como para a ocupação dos seus tempos livres, aproveitam igualmente a embalagem para especular a-propósito dos agendamentos eleitorais, metendo a carreta à frente dos bois, preferindo adubar o suspense com os nomeáveis ao óscar presidencial, numa rotina de casa da sorte mas azar nosso e de quem a trabalhar promete enfileirar nas cortinas do futuro, é tributável e não abdica da cara que tem, mostrando-a sem qualquer vergonha a toda a gente, incluindo aos funcionários públicos que lhe consomem parasitariamente quanto descontam em IRS e IRC, a fazer render a pistoleirice do poder, cuja prática assenta no sempiterno "dispara primeiro e pergunta depois" dos cowboys bushianos, que tem sido a escola de boas maneiras democráticas dos nossos politiquinhos.
Com a retirada palaciana de Marcelo, eis que a manobra de diversão política forjada pelo PSD para iludir a vida pública portuguesa eclodiu de pleno, amenizando as tónicas da sustentabilidade e convergência, ao debate ou aprovação do Tratado Europeu e agravamento das assimetrias regionais, à falência e descalabro dos sistemas educativos, de saúde, segurança social, tributário e judicial, condicionando a actividade opositora do PS a permanecer num limbo de esperança bem-aventurosa, que o narcotiza e suspende, preferindo acoitar-se na perspectiva de que o governo cairá por si (de podre) e em consequência de um conflito interno no PSD, do que a fazer-lhe frente, e pagar para ver.
Por outro lado, ficou-se a saber (zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades, como diz povo) que a censura é uma prática comum em todos os órgãos de comunicação social, e até naqueles que se denominam de independentes, descoberta do tipo pólvora prò fósforo, visto que todos nós, os que de alguma forma colaborámos e trabalhámos nela, o sabíamos e sofremos, mas que quando o dizíamos era menosprezado e, segundo alguns, até merecido, considerando que "o quem paga manda e quem recebe obedece" da prostituição intelectual é uma lei tradicional muito arreigada ao espírito comezinho português. Principalmente porque essa censura encapotada, praticada avulso por directores, proprietários, redactores, paginadores, colegas jornalistas, igrejas, autarcas e anunciantes, é o pão-nosso-de-cada-dia de quantos fazem opinião nos jornais e rádios da nossa república. O sal da terra. O único desafio motivador para neles escrever, que é o de fintá-la, ludibriá-la, contorná-la pelo dizer metafórico e das entrelinhas, visto que outro não pode haver, já que ninguém os lê, ninguém lhes dá crédito, nem eles pagam a quem quer que seja, que presunção e água benta cada um toma a que lhe convém e conselho se fosse coisa boa não se dava, vendia-se.
A importância do medo do lobo na unidade do rebanho é sobejamente conhecida dos sapiens pastorinhos da nossa espécie. Ao sobrevalorizar-se a opinião de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS pròs mais pequeninos), alerta-se simultaneamente para o perigo que há num solitário à solta e de como ele pode, com o seu discurso e atitude de franco-atirador, estraçalhar a magnanimidade do rebanho PSD, quais cordeiros cavaquistas de santanas, a propósito dos quais o Oeste tem um mui digno ditado onde os ditos mais os santos e os santinhos não passam de uma cambada de sacanas. Jorge Sampaio, garante constitucional da nossa democracia, conhece-lhe efeito, como aliás toda a fauna cacarejante do paiol do rato, agora inquieta pelo calor (energia desconcentrada mas concertada) na aclamação em congresso da nova abelha-mestra, outro berlusconni dos pequeninos de consciente efeito na consciência da esquerda adormecida.
Todavia preferem calar-se uns e outros, ou dizendo o fazem por portas travessas com indirectas e tempo de antena governamental em horário nobre, a reboque do qual a oposição igualmente se pronuncia, demonstrando quanto tudo vai bem nos melhores dos reinos, não esclarecendo absolutamente ninguém acerca do que sabem do tabu MRS, pondo a render o peixe do silêncio ("tu que sabes e eu que sei, cala-te tu, que eu me calarei", como reza a lei fundamental do mundo do crime, apanágio da sã convivência entre mafiosos e trambiqueiros, qual código de honra do chico-espertismo nacional, ou tábua deontológica entre os filhos da mãe próspera e amarialvdo pai) cúmplice, essa faca traiçoeira de dois gumes, a pôr a coisa em pratos limpos e écrans asseados, e avisando a navegação interna que isto de ter bolinha ao centro é sinal e cautela, sobretudo depois que o povo reconheceu muito filosoficamente que "quem tem cu tem medo". De põe-te a pau,que anda prà'i muito comentador mal-intencionado.
Mas importa não esquecer que a censura mais praticada na nossa praça, é a da ditadura de estilo -- com ou sem cartilha (livro) dele. Normalmente começa por ser uma questão de espaço e de clareza ("escreva, escreva, mas não vá além dos 2000 caracteres e sem palavrões complicados", propõem-lhe benfazejos, sorridentes, e preocupados com as restrições e diminuta flexibilidade vocabulares dos seus leitores, alguns directores/redactores/editores dos pasquins da nossa predilecção), e acaba nos cortes de parágrafos e alterações para melhor se entender, ou simplesmente no excomungar do opinioso não lhe publicando os textos, tal como me sucedeu a mim num jornal afecto à igreja católica, após ter feito um artigo sobre o aborto em que não subscrevia a tomada de posição desta. À semelhança do que acontecia com as esposas dos senhores patriarcais, que não alcançando o orgasmo porque os seus maridos não lhos facilitavam em conseguir mas sim a satisfazer-se nelas, a aliviar-se, destruindo-lhes a auto-estima e amor próprio, convencendo-as até de que se não usufruíam prazer de uma relação sexual com eles, era porque seriam genitalmente disfuncionais, complicadas de cabeça, e o problema residia somente nelas, também os detentores de prelos, de estatutos editoriais ou proprietários, quando aquilo que o opinion maker escrevia não subscrevia as suas linhas de pensamento, ou doutorais de suas macrocefalias, se serviam de pormenores estilísticos (tamanho das frases, ritmo da linguagem, distribuição de palavras, repetição de termos, figuras de retórica e graus de subjectividade) para incutir no colunista o medo de ser corrido por não ser lido ou entendido, quando não satisfazia os propósitos feudais da cartilha (marialva). Castrando-lhe o estilo. Obrigando-o a abandonar ou submeter-se às regras pacóvias do catecismo editorial. Pondo-lhe as frases a ferros, entre clichés e lamechices, extorquindo-lhe toda e qualquer originalidade, possibilidade de êxito ou brilho que não lhe adviesse do privilégio de integrar a ficha técnica do órgão suserano.
O truque censório mais corrosivo, subtil e eficaz é o de nos convencerem que o defeito é nosso. Acima de tudo nosso e só nosso. Que se as audiências fracassam, se os projectos entram em falência, então a culpa é sempre dos operadores descartáveis, os menos imprescindíveis: os fazedores de opinião. Agora que Portugal inteiro ficou a saber que há censura entre nós, estou curiosíssimo para ver como é que os paus de galinheiro que durante os últimos 25 anos a praticaram, se vão desemerdar da realidade que criaram. Porque uma coisa é certa: quando um crime não é punido, e o transgressor ganha autoconfiança para repeti-lo, não só se está a instituir uma prática ilegal comum, como a aliciar os cumpridores da lei para o não fazerem, prometendo-lhe compensações futuras de hegemonia e fundamentalismos antidemocráticos, anti-republicanos e anticonstitucionais. Ou não?

A CHAGA CONTINUA...

Quando os nossos jornalistas transformaram as embalagens dos produtos culturais em notícias e confundiram o marketing com factos, mais não fizeram do que adulterar os conceitos de cultura, de desenvolvimento e de jornalismo, mudando para ser tudo aquilo que simplesmente parecia. E em consequência o atraso que actualmente verificamos em matéria científica, cultural e cognitiva deve-se-lhe integralmente. Foram sobretudo os órgãos de comunicação social, em Portugal, quem não desempenhou as funções que lhe estavam estatuídas. Grande parte do desprezo que as populações votam aos conteúdos desta natureza deve-se à maneira falseada e desprezível com que foi tratada pelos mass media nos últimos 50 anos. Como foi preterida pelo assuntos de lana caprina politiqueiras, telenovelescas e futeboladas do nosso (des)contentamento.
Ao aplicarem o 5WH nos acontecimentos deram deles somente a imagem daquilo que eles pareciam ser, atribuindo o protagonismo não aos factos e conteúdos em si, mas sim a quem os promovia e financiava. Por eles se promovia e a eles se acoplava. Segunda geração dos doutrinários dos três FFF (Fado, Fátima e Futebol), seguidistas subservientes do autoritarismo corporativista, apologistas da “massificação das massas”, lambe-botas dos anunciantes, lobbys almoçarantes e grupos económicos diversos, estiveram na linha da frente do progresso nacional, mas em vez de o facultarem, usaram-no em seu proveito próprio e exclusivo benefício, fomentando o esvaziamento cognitivo e artístico da sociedade portuguesa, outorgando apenas a algumas franjas académicas ou especialistas (com apanágio) da coisa cultural, como se ela não fosse parcela integrante e própria da natureza humana, comum a qualquer um da nossa espécie desde remotas e cavernosas eras, mas simplesmente atributo peculiar dos génios de eleição, estimulando a invenção de uma mentira social geradora de diferença, pervertendo a essência básica e fundamental do conhecimento: esbater as assimetrias e implementar o desenvolvimento.
A cáustica recusa de MRS em contar o que deveras se passou, em pretender que o silêncio fale mais alto que as palavras, à semelhança do que se espalhou acerca da fotografia pelos jornalistas que não sabiam escrever ou eram demasiado preguiçosos para o fazer, para quem que valia por mil palavras, é uma caganeirice muar habitualmente praticada por afectados paranóicos, dos quais se diz que amuam, confirmativa de quanto a pistoleirice também usa e cultiva o bluff, ou artifício da pólvora seca. Se há algo para ser dito, que se diga, visto que estamos numa democracia onde vigora (ainda) a constituição e os direitos do homem. Se não há, então que tal se admita de uma vez por todas e se acabe com medo de reconhecer que o rei vai nu. Que o comentador está a armar em fino, a fazer negaças de donzela que quer ser doneada mas sem doer muito.


(Haverá nos próximos capítulos algum desfecho não ficcional? Teremos que fingir ouvir quantos discursos mais de fugir à seringa? Haverá um Portugal diferente para cada português? Isto e outro tanto no próximo capítulo: não perca.)

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

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