12.03.2013

ORAÇÃO DA PROFESSORA PRIMÁRIA




Senhor,
Tu que ensinaste
Perdoa que eu ensine,
Que use o nome de mestra,
Nome que tu usaste na Terra.

Mestre,
Torna perene o meu fervor
E passageiro o desencanto.
Arranca de mim este impuro desejo de justiça
Que ainda me perturba,
A mesquinha insinuação de protesto
Que sobe de mim quando me ferem.

Não me doa a incompreensão,
Nem me entristeça o esquecimento
Daqueles que ensinei.

Dá-me que seja mãe, mais do que as mães,
Para poder amar, e como elas, defender
O que não é carne da minha carne…
Dá-me que seja simples e profunda,
Livra-me de ser complicada e banal
Em minha lição quotidiana.
Dá-me que retire os olhos
Do meu peito com feridas,
Ao entrar cada manhã na minha escola.

Torna mais leve no castigo a minha mão
E torna-a mais suave na carícia.
Que com dor eu repreenda
Para ter a certeza
De que corrigi amando.


GABRIELA MISTRAL (1889-1957), professora e poetisa chilena, galardoada com o Prémio Nobel da Literatura em 1945

6.01.2013

HÁ LIVROS QUE FAZEM FITA

«Bastantes foram as ficções que nos escreveram sem que tenhamos dado conta disso…», pensei para comigo enquanto folheava ao acaso, petiscando aqui e ali, o De Que Falamos Quando Falamos de Amor.

E então, de repente, apeteceu-me ver um filme que tivesse sido baseado num livro que já lera e tenho a certeza me marcara, embora dele muito pouco ou quase nada me lembrasse: A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. O romance, logo nos primeiros frames, saltou-me à consciência, não como um dejá vu que era, mas como um desanoitecer da memória onde se entrecruzavam inúmeros flashbacks derivados da consequente e exagerada utilização do discurso e título em paragonas ou citações, quer por políticos na berra ou pelos Mass Media que queriam fazer figura de letrados.

Todavia, o filme homónimo, realizado por Philip Kaufmann (1988), com Juliete Binoche, Lena Olin e Daniel Day-Lewis, é mais do que uma grande história ancorada na Checoslováquia dos finais de 60. É a materialização da transitoriedade, aquela fluida sensação de que nada é eterno, estável e assente; enfim, que tudo muda e só a incerteza e a dúvida alternam e retornam no tempo, exatamente nesse tempo onde o eterno não passa de mais uma abstração da poesis, do sonho ou evasão.

Porque A Insustentável Leveza do Ser é um filme que está dentro de outro filme onde nada é seguro e definitivo. Onde mesmo as personagens principais, protagonistas, se não dão a conhecer com clareza, permanecem indistintas para além dessa vontade de viver e atravessar o espaço-quando com que subtilmente – ou será melhor afirmar “levemente”? – se manifestam. O que, é evidente, não obsta, nem impede, que sintamos que cada um dos seus gestos é essencial para o desenrolar da narrativa nesse registo histórico e sentimental que a escrita polifónica de Kundera tão exemplarmente descreve, propõe, serve, num palimpsesto ativo em que tampouco a excelente fotografia de Nykvist consegue apagar, para nos devolver pouco a pouco da ilusão e entrever o outro lado do rio tingido com o naturalismo realista que a objetiva impõe. Isto é, não obstante a diferença de suporte e veículo, o romance de Kundera finta, rasteira, o realizador, a ponto de parecer presente mesmo quando foi intenção deste último em que não estivesse… O que é uma grande fita!

FILMES GENERICAMENTE ESQUECIDOS

Serenidade, de Rosa Coutinho Cabral, Anne Trister, de Léa Pool, Jane B., de Agnès Varda, As Noites Bárbaras, de Marion Hansel, Robinsinada ou O Meu Avô Inglês, de Nana Ozhardzhade, A Rua das Casas Negras, de Euzhan Paley, A Hora da Estrela, de Susana Amaral, só para citar alguns de entre os muitos títulos que apareceram e de imediato desapareceram do panorama cultural português, são filmes de realizadoras cinematográficas que viram no discurso feminino o leitmotiv mais que suficiente para fazerem no cinema uma destrinça de género, quer nos modos de contar as histórias (incluindo a terminologia e linguagem), quer nos elencos e conteúdos escolhidos e/ou enfatizados, ou aquilo que essas realizadoras entenderam ser relevante para ilustrar a sua narrativa, que consideraram importante ou interessante nós observarmos enquanto espetadores e descodificantes.

Neles, a condição feminina, enquanto elemento de uma sensibilidade particular, bem como a forma como ela foi traduzida à velocidade de duas ou três dezenas de imagens por segundo, parece ser-lhes o denominador comum que fez com que nunca tivessem sido muito vistos, fato que sobejamente ajudou para que também fossem lestamente atirados para o esquecimento, mesmo dessa parte da humanidade a quem as questões de género acarretam identidade e empatia. As situações sociais que espelham, as teorias de vida que refletem, os objetivos e anseios que perseguem, as narrativas sentimentais e emocionais que equacionam e entretecem, não deixaram de ser atuais, pese embora a escala de prioridades e preocupações existenciais tenha mudado, remetendo-as para patamares subalternos. Porquê?

Será que alguém pensa terem sido dissolvidas (e removidas) todas as inquietações que desassossegavam o género feminino só pelo fato de ninguém falar delas com a mesma acutilância e veemência das cineastas do século passado? De 80 para cá muita água correu debaixo da ponte, mas também penso que não… O tempo tudo cura, sobretudo na idade avançada, que culmina com a morte, que é um tempo sem tempo onde todas as fortunas e infortúnios se equiparam em valor, num tanto-faz que anestesia, todavia há feridas que nunca cicatrizam sob a crosta ou carapela que as omite do inventário das chagas pessoais e sociais visíveis. Porque elas remanescem à mínima beliscadura… Salvo seja!

4.29.2013


APONTAMENTOS À MARGEM PARA DESMARGINAR

Eis a primeira sequência de APONTAMENTOS À MARGEM PARA DESMARGINAR nascidos em Alínea R) evolução verde ( http://www.facebook.com/evolui.verde ) como editorial de página, mas traduzindo o evoluir teórico de uma orientação que se pretende simbiótica entre a ideia de sustentabilidade e a preparação do futuro, com relevante ênfase nos Direitos Humanos, na Ética da Terra, no progresso e desenvolvimento.



VI –  ESPECISMO E MULTICULTURALIDADE

Embora a espécie humana tenha sido aquela que melhor se emancipou na (e da) natureza, deixando de estar sujeita às suas contingências, o que é certo, é que cada forma de vida é idiossincrática, rara, única e inimitável, singularidade pela qual se devem observar atenciosos cuidados em consideração e respeito pelas condições do seu florescimento, bem como pelo equilíbrio do habitat que a integra. As capacidades do ser humano, o seu empenho, arte, engenho e espírito gregário-expansionista, permitiram-lhe ultrapassar quase todos os constrangimentos naturais, contudo devemos reconhecer que há limites e fronteiras decorrentes das leis da natureza que não podemos violar, e que põem em risco a nossa hegemonia terrena. (Qualquer vírus ou bactéria nociva tem mais possibilidades de nos dizimar do que nós a ela…) E um deles é o das monoculturas e eleição de espécies no povoamento de largas parcelas do território, por motivos económicos ou de facilitação instrumental dos ecossistemas, selecionando e incentivando a proliferação de muito poucas espécies em detrimento das restantes (especismo), diminuindo a sua resiliência face aos elementos, à desertificação e falência, atingindo consequentemente a comunidade humana aí hospedada.

Ou seja, para contrariar as dificuldades naturais de expansão e sobrevivência praticámos a manipulação do meio ambiente, durante milénios, através do especismo, estratégia essa que foi globalmente tida por sensata; todavia, sabe-se atualmente, que ela pode acarretar-nos dissabores e danos irreparáveis, tanto no ecossistema como na economia das regiões, tanto na ecosfera como nas condições de vida do indivíduo, porquanto o atrofiamento da sua sustentabilidade é bem maior do que os benefícios auferidos, uma vez que as monoculturas são mais atreitas aos efeitos das catástrofes naturais e das alterações climáticas. Porque fazer depender a sobrevivência de uma população de um só produto, é fazer perigar esta à menor fragilidade da sua (re)produção.  

Por conseguinte, chegou a altura de inverter o curso das decisões e rejeitar todas e quaisquer práticas culturais que ponham em causa a integridade da fauna e da flora de um lugar, ou as suas particularidades geográficas e territoriais, não só quando provocam elevada mortalidade e extinção de espécies, como é o caso de inúmeros rituais e tradições, sacrifícios e eleição de símbolos emblemáticos para marketing, ou de tomar medidas radicais de desinfestação, por pesticidas e herbicidas de efeito durador nos solos e/ou atmosfera, e ainda a promoção de eventos de diversão com animais (touradas, circos, lutas, exposições não-científicas) e comercialização de espécimenes selvagens ou exóticos, e enveredar definitivamente por uma opção generalizada de atitudes e comportamentos que difundam e disseminem a diversidade (multiculturalidade) específica e cultural, de raças e credos, pois os ambientes (e nações) mais ricos, fecundos e sustentáveis, não são os que se resumem e fecham sobre si, mas os que se cambiam e multiplicam contemplando a biodiversidade e o maior número possível de janelas de oportunidade, mobilizando todos os seus recursos endógenos para promover a cooperação e o desenvolvimento autónomo, assim como a segurança e bem-estar das suas populações (humanas e não-humanas).


VII – ÉTICA E INSTINTO

A principal preocupação de uma cidadania responsável, consciente, crítica e participativa, é garantir o direito de todos e de todas a um ambiente sustentável, sadio e ecologicamente equilibrado, com vista a, consequentemente, promover e instituir a qualidade de vida de cada um, como da generalidade. Até há bem pouco tempo as relações humanas com a terra, além dos usuais bairrismos patriótico-territoriais, foram estritamente económicas, o que implicava, na prática, constatar de muitos privilégios e nenhumas obrigações. Proprietários, rendeiros, empresários, turistas, trabalhadores e residentes, cada qual a seu modo, instrumentalizaram-na exaustivamente, tornando-a apêndice de rendimentos e mais-valias, alheando-se dela e esquecendo que a ética é inequivocamente uma espécie de instinto comunitário em evolução similar ao instinto de defesa.

A crise que atravessamos tem agravado esse relacionamento fazendo recuos consideráveis, em diversos setores de interceção do ambiente com os interesses económicos e as tradições culturais que espelhavam já alguma melhoria na qualidade, natureza e intensidade/intencionalidade dessa instrumentalização. O território português, antes ressequido está agora alagado, sobretudo nas áreas de cultivo de víveres de produção/consumo sazonal, pondo em risco a variedade e volume da produção nacional de bens que o défice e a balança importações/exportações aconselham acuidada ponderação.   

Portanto, repensar o uso do solo arável, estabelecer prioridades e otimização da escolha nas sementes, segurar e acautelar as sementeiras dos locais passíveis de derrocadas, enxurradas ou incêndios, promover a investigação agrícola e pecuária, proteger e preferir as espécies autóctones, bem como reimplantar a conduta dos “três erres” (Reduzir, Reutilizar e Reciclar), apresenta-se não só como uma necessidade económica e existencial, ou de prevenção do caos territorial, mas igualmente como um imperativo ético, uma forma de orientação equivalente ao mais explícito e contundente dos Dez Mandamentos: não matarás. Porque se não for feito está-se a defraudar o instinto de sobrevivência dum povo e duma nação, está-se a matar diretamente ou em diferido a (esperança de) vida de muitos, senão quase todos, os portugueses e portuguesas menos abonados e dependentes do orçamento do estado. 


VIII – POLÍTICA AMBIENTAL E DESENVOLVIMENTO

São erros de palmatória, em ambientalismo e democracia, a exploração do homem pelo homem, a mitigação dos direitos, liberdades e garantias, o produtivismo salvagem e empreendedor não esclarecido, a exploração irracional dos recursos naturais, a institucionalização das dependências, a conservação inadequada do perecível e o insistir num planeamento de curto prazo, sobretudo quando este é imposto pela subordinação da vontade política aos interesses económicos ou a fundamentalismos ideológicos. Esses erros têm sido continuamente repetidos pelos detentores do aparelho de estado, quase consecutivamente, não fossem algumas frechas de descuido, desde meados do século passado, pelo menos, mas de forma requintada e com subtilezas de malvadez para contornar os ditames de Quioto, a sustentabilidade e o apaziguamento dos conflitos (bélicos ou não) e as clivagens político-partidárias das sociedades, sobretudo nas afetas ao universo da portugalidade, onde o maquiavelismo do «dividir para reinar» tem feito escola em todas as juventudes partidárias dos últimos 30 anos. Principalmente nas dos dois maiores partidos (PS e PSD) que têm assim, não só mas também, conseguido alternar-se no poder e declaradamente contra quem governam (ou em nome de quem dizem governar), e são quem mais sofre os efeitos desse falso designo: os portugueses e portuguesas sem outros rendimentos senão os resultantes do aluguer da sua força/capacidade de trabalho.

Porém, e ainda que se reconheça que o ecossistema circunscrito ao território nacional seja um sistema finito, notoriamente perecível à continuada exploração, pela reduzida dimensão e elevada antiguidade histórica, a ação depauperativa intensificada, iniciada nos anos sessenta com a implementação das sociedades de produção e consumo, filhas da Revolução Industrial, incentivada pelas políticas ambientais que insistem em cultivar a tese de que o desenvolvimento sustentável é sinónimo de empreendedorismo selvagem e crescimento económico a todo o custo, onde os fins justificam os meios, em vez de associar este a uma melhoria da qualidade de vida humana enquadrada nos serviços prestados em prol do ambiente e do equilíbrio dos ecossistemas, de forma não só conservar os recursos como a aumentar-lhes a resiliência e sustentabilidade, providenciando o desmantelamento das atividades económicas que fomentam a exploração dos habitats, das espécies e dos recursos humanos, ou combatendo o comércio ilegal de bens, espécies e pessoas, comércio esse que reitera a tendência esclavagista medieval para objetivar o lucro e desenvolvimento económico pondo, insistentemente, em risco, o florescimento das demais espécies sem ser, em exclusivo, para assegurar a satisfação das necessidades básicas duma população, está a tornar-se um handicap multigeracional.   

E isso pode-nos sair muito caro, particularmente aos que não querem, ou não podem, emigrar, porquanto as necessidades são crescentes mas os recursos, ao invés, decrescentes. Explorar o mar, explorar o solo, explorar o ar, explorar as espécies autóctones, explorar a paisagem, explorar as sinergias regionais, explorar os areais, explorar as florestas, explorar os aquíferos, explorar os minerais, explorar o património natural ou histórico, explorar tudo e mais alguma coisa, quando devia ser antes melhorar o mar, melhorar o solo, melhorar a paisagem, melhorar o ar, melhorar as dunas e areais, melhorar os rios, melhorar as florestas, etc., é certamente o caminho mais rápido e eficiente para piorar as condições de vida dum povo, atingir o limite dos recursos nacionais, aumentar o desemprego, diminuir o PIB, rumando à depauperização generalizada e tornar-nos o dia-a-dia como causa de uma insustentável infelicidade e receio do futuro, mal-estar social e legalizada corrida para a opressão. Tudo coisas que devemos evitar enquanto ainda o podemos fazer, cujo prazo para agir em conformidade vai diminuindo gradualmente, e em acelerado contínuo, à medida que cada orçamento de estado vai sendo aprovado e posto em exercício, promovendo em catadupa o sucesso de muito poucos em prejuízo de todos, enfim, promovendo o insucesso da maioria dos governados. Aliás, explorar para conservar ou conservar para explorar, como argumenta o establishment, é uma panaceia falaciosa e mal-intencionada, de má-fé, para fugir à responsabilidade, consciência social e cidadania, pois num mundo em constante mudança, conservar inalterável seja o que for é violentar a sua natureza. E todos sabemos que, em termos ambientais, desde os anos 60, só se pode conservar aquilo que se melhora, ou nada feito.

IX – ECONOMIA E SOCIEDADE

O desenvolvimento económico é o garante e o “provedor” direto da satisfação das vontades, desejo e necessidades de uma população ou comunidade; mas não é o único. Essa satisfação exige a interferência humana na integridade dos ecossistemas, o que leva a que aqueles que mais dependem da biodiversidade para salvaguardar o seu equilíbrio, sejam também os mais propícios a molestá-la e defraudá-la. O bem-estar de uma espécie é quase sempre feito com sacrifício das demais, e a humanidade não foge – nem tem como fugir… – ao veredicto. Porém, o desenvolvimento sustentável é um dos grandes passos das sociedades modernizadas, dados no sentido de conciliar a instrumentalização do meio ambiente, os seus recursos limitados e finitos, bem como salvaguardar a integridade ecológica do nosso habitat, sem prejudicar ou pôr em causa o crescimento da economia, alinhando planos e orçamentos sob os auspícios duma consecutiva otimização de resultados.   

O modelo de sociedade que assenta no gigantismo centralizador, cujas estruturas socioeconómicas, altamente complexas e burocratizadas, impede a observância da sustentabilidade, toda e qualquer, nomeadamente a económica, porque facilita o desperdício de energias e a concentração de poderes, o controlo hegemónico dos processos de produção e consumo, apagando a participação consciente e responsabilizadora do cidadão vulgar das tomadas de decisão sobre a sua própria vida, logo, e irremediavelmente, impedindo-o de optar por um relacionamento harmónico e simbiótico com o ecossistema em que está inserido. Por conseguinte, devemos pugnar cada vez mais por uma sociedade de dinâmica social renovadora, descentralizada, democrata, participativa, organizada de baixo para cima, onde cada pessoa possa e seja ouvida nas tomadas de decisão que dizem respeito às suas condições e qualidade de vida, possa estar presente em todos os aspetos da existência em sociedade e quotidiano social, e que funcione como um todo ajustado/adaptado/assimilado ao ecossistema, proporcionando que o impacto ambiental (e pegada ecológica) seja amortecido, ou amenizado, por uma constante preocupação com a melhoria dos recursos naturais disponíveis, assim como as condições elementares da prossecução das espécies, que não lhe, nem nos, defraude a esperança de um equilíbrio suficiente e duradouro para a perseguição da eternidade possível. Enfim, uma sociedade que seja simultaneamente policêntrica e plural, que se construa e reconstrua continuamente a partir dos princípios da diversificação.

Porque a economia pode promover a sociedade, e esta deve reforçar a unidade ontológica entre o ser humano e o ambiente que o cerca, em direção a uma simbiose perfeita, exemplo inequívoco no qual se baseia a maximização das possibilidades de bem-estar, realização pessoal, social e profissional de cada um, em liberdade e entre gente livre, que mais não é do que essa “liberdade livre” onde cabem todas as liberdades que não lesam os próximos nem terceiros, e onde não há lugar para a mínima hipótese de exclusão, indiferença e ostracismo sobre seja quem for. Sobretudo porque também é essa a heurística da sustentabilidade: a de proporcionar sempre mais consolidada e efetiva sustentabilidade – ou sustentabilidades.

X – ESTÉTICA E CULTURA

“Nós abusamos da terra porque a vemos como um bem que nos pertence. Quando virmos a terra como uma comunidade à qual pertencemos, então poderemos começar a usá-la com amor e respeito. Não há outro caminho para que a terra sobreviva ao impacto do homem mecanizado, e para que dela possamos retirar a colheita estética com que pode contribuir a cultura, ao abrigo da ciência”, como salientou ALDO LEOPOLDO (Madison, Wisconsi, 04.03.1948), a propósito da apresentação/lançamento do seu livro. Ética, cultura e ecologia (como uma ciência entre a panóplia de muitas outras), não são conceitos separáveis nos dias atuais, como já não eram nos finais da primeira metade do século passado, ainda que naquela época, pudessem ser apenas fundidos por uma opção sensata e preocupada, e hoje o sejam porque não temos outro remédio, pois se a cultura não propiciar um melhor entendimento do meio circundante afasta-nos dele, desenraíza-nos, isola-nos, torna-nos patológicos ou doentios, por tê-la e cultivá-la como inútil, desnecessária e incompreensível, pseudolegível e inópia, isto é, que produzirá apenas artefactos e ideias defeituosas, que promovem tão-só a penúria, a míngua, a indigência, a falta de nobreza e a carência de identidade.

Porque a cultura enquanto realidade social é a síntese de toda a criatividade humana, numa dinâmica individual como coletiva, que visa mobilizar e favorecer as relações entre as pessoas, entre estas e a região onde vivem, e da região que habitam com as restantes regiões do globo, próximas ou menos próximas, cuja identidade seja constatável, no plano nacional como no internacional. Não é uma expressão da tecnocracia sob os postulados do economicismo, incompatíveis com autonomia, com a independência, com a emancipação, com a consciencialização, com a descentralização, mas sim a expressão dos díspares modos de viver, das práticas e valores simbólicos que deles eclodiram, emergiram, nasceram ou se deixaram influenciar, que ganharam importância estética e afetiva para as pessoas ou grupos delas, consubstancializando as suas formas de estar, de pensar, de ser, de agir, de organizar o espaço e o tempo, possibilitando que superiormente os determinemos do que eles a nós, e à maneira como nos olhamos e vemos em convivência (agressiva, sublimada, racionalizada ou não) terrena. Suscetível de inviabilizar, complicar ou adulterar, como também de simplificar, de tornar natural e de aprazível satisfação.

Consequentemente, preservar e melhorar o património cultural, natural, atmosférico, reanimá-lo e dignificá-lo com sentidos renovados e abertos a semânticas persecutórias, pode ser uma tarefa difícil de executar e implementar, com dificuldade na motivação de intelectuais, artistas, cientistas, publicistas e comuns usufruidores, porém é um desafio e um designo moral a que ninguém pode, cobardemente, virar as costas, uma vez que o desperdício de tempo, meios, recursos, aprendizagens, ideias, entrosamento sócio-espacial, de níveis de identidade e diversidade daí resultantes, nos poriam em séria incompatibilidade com a existência humana e planetária, atirando para o lixo da eternidade um contributo de elevada precisão e valor, degradando continuamente a comunicação e entendimento entre humanos, ou entre estes e os não humanos, mas também o de molestar dos ecossistemas com modelos e formas irreversíveis que podem tornar-nos a vida insuportável, desprezível, desajustada, atrofiada e de moribunda humanidade. Aliás, entender a cultura como uma estratégia para humanizar o planeta, não é uma prosopopeia retórica e medieval, de cavalaria e evidente quixotismo, mas um ato indecoroso, aberrante e suicidário, como igualmente um handicap espiritual que traduz a nossa incompetência para entender a realidade e as multifacetadas perspetivas que a compõem, que pode originar raros rasgos de génio mas abundantes gestos e exemplos de depredação necrófaga, e de exalada decomposição das condições, conceitos e teorias da vida na terra. E isso é imoral, inestético e abjeto. 

4.12.2013


No âmbito do ciclo 360º Ciência Descoberta, terá lugar no dia 17 de Abril p.f., no auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian, às 18h00, a conferência Matéria médica: invenções ibéricas em redor da flora e da fauna exóticas, que será proferida pelo Prof. Doutor José Pardo-Tomás, da Institución Milá y Fontanals, CSIC, Espanha. A conferência terá tradução simultânea.
Para mais informações, poderá sempre recorrer  a  (+) 351 21 782 35 25 ou  conf360@gulbenkian.pt
ehttp://www.facebook.com/servicodecienciafundacaocaloustegulbenkian. Para visionamento simultâneo esta estará disponível por Videodifusão em www.livestream.com/fcglive


A ideia principal é oferecer uma interpretação da contribuição ibérica para o conhecimento da flora e da fauna de origem não europeia, colocando sobretudo o acento na sua utilidade médica, daí o uso da expressão “matéria médica” nos tratados científicos daquela época.

Neste sentido, vamos rever as obras dos tratadistas portugueses e espanhóis de história natural e matéria médica das Índias (tanto ocidentais como orientais) no século XVI. Mas o nosso interesse não vai concentrar-se apenas nas suas obras e na circulação europeia das mesmas, mas também nas práticas culturais e científicas desses autores e dos seus leitores.

Veremos igualmente como esse conhecimento e essas práticas circularam tanto nas colónias como no eixo metropolitano formado pelo triângulo Lisboa-Sevilha-Madrid, espaços de circulação desse novo conhecimento à volta dos usos medicinais das plantas e dos animais de origem exótica.

JOSÉ PARDO-TOMÁS is Doctor in History (Universitat de València, Spain). Since 1994, he is Scientific Researcher at the Department of History of Science in the “Milà i Fontanals” Institute (CSIC, Barcelona, Spain). Visiting scholar in the universities of Padua (Italy), Humboldt (Berlin, Germany), Bordeaux (France) and UNAM (México), he works on social and cultural history of medicine, natural history, and scientific books in Early Modern period. In a joint venture with María Luz López-Terrada, he published Las primeras noticias sobre plantas americanas (1993), and with José M. López-Piñero, Nuevos materiales y noticias sobre la Historia natural de Nueva España (1994) and La influencia de Francisco Hernández (1996). He is author of Ciencia y censura (1991), El tesoro natural de América (2002), El médico en la palestra (2004) and Un lugar para la ciencia (2006), among others books. 

4.09.2013


APONTAMENTOS À MARGEM PARA DESMARGINAR

Eis a primeira sequência de APONTAMENTOS À MARGEM PARA DESMARGINAR nascidos em Alínea R) evolução verde ( http://www.facebook.com/evolui.verde ) como editorial de página, mas traduzindo o evoluir teórico de uma orientação que se pretende simbiótica entre a ideia de sustentabilidade e a preparação do futuro, com relevante ênfase nos Direitos Humanos, na Ética da Terra, no progresso e desenvolvimento.

I - O TRIGO E O JOIO

A biodiversidade é a conjugação da fraternidade e da igualdade estendida a todos os seres do planeta, incluindo-o; porém, a Terra não está só no universo, sendo apenas mais um dos centros de vida entre as infinitas possibilidades que lhe assistem, e a miríade de variedades e hipóteses que dela há na nossa e demais galáxias. “A política e a economia são simbioses avançadas nas quais a competição original de todos contra todos foi substituída, em parte, por mecanismos cooperativos dotados de conteúdo ético”, como referiu Aldo Leopoldo na Ética da Terra. Assim deve continuar a sê-lo, ou mais propriamente, começar a sê-lo, uma vez que temos desprezado tanto as duas (fraternidade e igualdade) que omitimos a biodiversidade enquanto valor intrínseco a toda a atividade humana civilizada. Sobretudo, porque sem ela, a liberdade é uma ironia e a maneira mais eficaz de manietar os povos, obrigando-os a hipotecar o futuro em seu nome. Temos um exemplo, de incontornáveis consequências dessa hipoteca, desse iceberg cuja parte visível se chama Troika.

Se vamos agir e tomar consciência de nossas responsabilidades de cidadania, ou continuar a entreter-nos com o fogo-de-artifício brejeiro político-partidário, é uma questão que importa definir.



II - A SOCIEDADES SOMOS todos NÓS

Família, trabalho e felicidade. Disponibilidade, objetividade e lucidez. Iniciativa, continuidade e avaliação. Cidadania, responsabilidade e emancipação. Amor, bem-estar e liberdade. Saber estar, saber ser e saber fazer. Afeto, motivação e conhecimento. Humanidade, sabedoria e progresso. Hipótese, verificação e conclusão. Eis as diferentes tomadas (de consciência, estádios ou valores) que desde sempre assistiram à demanda da cultura e civilização sobre a barbárie do abstrato, da mediocridade, da crendice, do conservadorismo traiçoeiro e desonesto, do desconhecido, da ignorância mal-intencionada, e da rigidez fundamental. Porém, os convencidos de suas certezas, continuam a vociferar contra o outro dizendo que está errado, em vez de provarem eles mesmos que estão certos. Só que isso não é política, não é economia, não é socialização: é criancismo.

Então, que fazer? Tudo pode ser reciclado, incluindo as bases essenciais da nossa identidade e cultura. Reciclar a criança que há em nós, enquanto indivíduos e enquanto povo, para passarmos ao estádio seguinte da evolução e do progresso, não é nenhuma utopia, ideologia, nem religião: é uma atitude. É uma nova atitude perante a vida, que nasce da observação, da reflexão e da prática de muitos grupos e pessoas, que em todo o mundo se aperceberam que atravessamos uma crise civilizacional grave, para a resolução da qual se torna necessário demolir velhos (pre)conceitos, valores e poderes, bem como definir caminhos alternativos que valorizem a criatividade individual e coletiva que respeite a vida, o ambiente, a natureza, o ecossistema, a atmosfera, a água e a condição humana. Porque a sociedade somos TODOS nós, e esse pronome tem o tamanho da Terra. (Por enquanto!)



III - EVOLUÇÃO É AÇÃO

É significativa a diferença entre agir e reagir: agir é participar; reagir, é sujeitar-se a. E, se cada qual é o sujeito das suas ações, deixa de o ser quando reage, porque nessa circunstância, está somente a (cor)responder às determinações de quem o manipulou. Só quem age é verdadeiramente ( r )evolucionário.

Servindo-nos do progresso científico e desenvolvimento humano, ganhámos uma nova compreensão do mundo e, através do sentido sensitivo, importámos valores e modelos tecnológicos ou comportamentais não-humanos, da natureza, enunciados e circunscritos pelos reinos animais, vegetais, minerais e elementar, passando a ter a polémica expressão NATURE KNOWS a merecer garantido crédito. De entre eles os comportamentos civilizacionais socialmente avançados como a preocupação de reciclar os resíduos sólidos urbanos, de aumentar a produtividade primária líquida, produzir organismos geneticamente modificados, introduzir substâncias químicas no meio ambiente, alimentar os animais selvagens além dos domésticos, de tutelar e promover operações de conservação e restauro de parcelas do território e ecossistemas, delimitámos parques e reservas naturais, reestruturámos o corpo curricular e programático educativo e universitário, reformámos a administração e o planeamento tecnológico, tendo em vista uma melhor integração/ocupação humana do território físico-natural.

Parar, desincentivar ou adormecer essas preocupações, sob o argumento da atual crise socioeconómica, é uma reação que obriga a atirar fora o desenvolvimento e progresso conseguido por milénios de estudo, esforço e atualização. Portanto, deixemos as águas tépidas e lodosas da acomodação e ajamos enquanto o podemos fazer, pois pode muito bem acontecer que quando o queiramos fazer seja já tarde demais.



IV - EQUILÍBRIO OU ETERNIDADE?

Até há poucas dezenas de anos a humanidade, na sua quase generalidade e graças ao concurso das diferentes ideologias, economias e religiões, entendia o ambiente numa perspetiva antropocêntrica, em que a natureza se apresentava apenas como um valor instrumental associado a um leque de potencialidades e benefícios, nomeadamente estético, histórico, científico e económico. Era fonte de estímulo para a criatividade e imaginação, bem como um contributo significativo para o desenvolvimento integral do ser humano.

Mas as mentalidades, em consequência dos progressos no bem-estar e condições de vida, científicos e tecnológicos, evoluíram, e hoje a tendência global edita-se numa compreensão do meio ambiente sob duas perspetivas distintas, embora que simultâneas: o biocentrismo e o ecocentrismo. Isto é, considerando que é a vida ou o ecossistema quem tutelam a narrativa na interpretação essencial do valor atribuído à natureza, enquanto suporte principal do ambiente. Com Copérnico e Galileu a Terra deixou de ser o centro do universo; com o Relatório de Brundtland (1987) findou a era da supremacia humana na Terra. A mudança teve efeitos irreversíveis, e obrigou à reciclagem de todas as teorias de entendimento da casa (eco) de todos nós, de modo a que este não só se demonstrasse mais lúcido, objetivo, rigoroso, lógico, ético e funcional, mas também mais abrangente, de forma a reconhecer que sem a preservação da diversidade das espécies é impossível um equilíbrio sustentável do planeta.


Na perspetiva biocêntrica somos apenas mais uma das estratégias da vida para se tornar eterna. Na perspetiva ecocêntrica, somos tão-só membros de uma espécie que interage com as demais na tentativa de manter equilibrada a sobrevivência do ecossistema terreno. Na prática, as duas se completam e exigem-nos que observemos cuidadosamente a nossa conduta porquanto se fizermos perigar o equilíbrio perdemos o comboio da eternidade, porque na autoestrada da continuidade da vida somos o veículo que melhor a percorre, desde que o façamos com tino, segurança, equilíbrio e sustentabilidade. A escolha a cada qual pertence, mas o que é certo, é que aquela que cada um fizer vai ter consequências (irreversíveis) na vida dos demais.


V - BIODIVERSIDADE E EFEITO BORBOLETA


“Como é evidente, não é preciso dizer que a viabilidade económica limita a margem daquilo que pode ou não ser feito a favor da terra. Sempre foi e há de ser assim. A falácia que os deterministas económicos nos amarraram em volta do pescoço coletivo, e que necessitamos agora de eliminar, é a crença de que a economia determina TODO o uso da terra. Isso simplesmente não é verdade. Uma grande quantidade de ações e atitudes, incluindo talvez a maior parte de todas as relações com a terra, é determinada pelos gostos e predileções dos utilizadores mais do que pela sua bolsa. A maior parte de todas as relações com a terra depende de investimentos de tempo, previsão, capacidade e fé mais do que de investimentos em dinheiro. No que se refere à utilização da terra, somos o que pensamos.” (In ALDO LEOPOLDO, A Ética da Terra)

Havendo inegável valor intrínseco em cada uma das formas de vida conhecidas (biodiversidade), independentemente do interesse que possam ter para a espécie humana, a não instrumentalização das entidades holísticas como os ecossistemas e a ecosfera, cujo equilíbrio exige ponderação no balizar das atividades humanas, porque o que for feito, desfeito, neutralizado, ativado, implantado ou retirado de um local tem, diretas ou indiretas, consequências também noutros lugares (efeito borboleta) mais ou menos distintos do planeta, apresenta-se como a única atitude plausível para manter (e recuperar) a sustentabilidade global. Não só porque o respeito por cada indivíduo é extensivo e acarreta igual respeito pelo ecossistema em que se integra, mas igualmente porque ele é parte integrante de uma organização avançada sócio-biológica-económica (genes, espécimenes, espécies, ecossistemas), que fica inequivocamente alterada tanto com a sua presença, como com a sua ausência, e em (pro)porções similares.

Por conseguinte, pugnar por uma democracia direta, participativa e de base requer o acesso universal à informação e às novas tecnologias da comunicação, à tomada de consciência coletiva dos fatos e problemas de cada qual e de todos, bem como uma diferente responsabilização do cidadão pelo seu habitat, num díspar envolvimento na assunção individual e pública da cidadania, da igualdade de género e do respeito (legalizado) pelos animais, no âmbito de uma mentalidade que não abdica dos seus direitos nem do poder natural de quem é outorgado legítimo herdeiro e proprietário, parece ser a maneira mais racional e eficaz de contemplar (socialmente) a importância essencial pela biodiversidade e os efeitos sistémicos da ação humana. Por milhentas razões e argumentos, mas principalmente porque “somos o que pensamos” e, se é indesmentível que hospedamos um número infinito de seres vivos no nosso corpo, não o é menos que sempre que um deles é molestado, ou adoece, todo o nosso ser é inegavelmente afetado, nomeadamente pelo antídoto que nos for aplicado.

2.18.2013


CONTOS GAUCHESCOS – I

Por  J. Simões Lopes Neto

À memória de meu pai
                   Saudade



Patrício, apresento-lhe Blau, o vaqueano.
– Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana; molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei sobre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em S. Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, corri pelas paragens magníficas de Tupaceretã[1], o nome doce, que no lábio ingénuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus...   
– Saudei a graciosa Santa Maria[2], fagueira e tranquila na encosta serra, emergindo do verde-negro da montanha copada o casario, branco, como um fantástico algodoal em explosão de casulos.
– Subi aos extremos do Passo Fundo, deambulei para os cumes da Lagoa Vermelha, retrovim para a merencórdia Soledade, flor do deserto, alma risonha no silêncio dos ecos do mundo; cortei um formigueiro humano na zona colonial.
– Da digressão longa e demorada, feita em etapas de datas diferentes, estes olhos trazem ainda a impressão vivaz e maravilhosa da grandeza, da uberdade, da hospitalidade.
– Vi a colmeia e o curral; vi o pomar e o rebanho, vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as cidades; e dos rostos e das auroras, de pássaros e de crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desaparecimento, guardarão na retina até o último milésimo de luz, a impressão da visão sublimada e consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num último esto para que a raça que se está formando, aquilate, ame e glorifique os lugares e os homens dos nossos tempos heróicos, pela integração da Pátria comum, agora abençoada na paz.
E, por circunstâncias de caráter pessoal, decorrentes da amizade e da confiança, sucedeu que foi meu constante guia e segundo o benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino, mantendo o seu aprumo de furriel da farroupilha, que foi, de Bento Gonçalves, e de marinheiro improvisado, em que deu baixa, ferido, de Tamandaré.
Fazia-me ele a impressão de um perene tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio, e abrigando dentro do tronco cernoso enxames de abelhas, nos galhos ninhos de pombas...
Genuíno tipo – crioulo – riograndense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingénuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.
E, do trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou; das coisas que ele compreendia e das que eram-lhe vedadas ao singelo entendimento; do pêlo-a-pêlo[3] com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida, entre o Blau – moço militar – e o Blau – velho, paisano –, ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia –, que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas no fundo de uma arca.
Querido digno velho!
Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o.



TREZENTAS ONÇAS

– Eu tropeava[4], nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim parar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado[5] da troteada.
– Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.
Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira... e fui-me à água que nem capincho[6]!
Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.
E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei.
Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol.
– Ah!... esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco[7] muito esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-lhe para acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.
Por sinal que uma noite...
Mas isso é outra coisa; vamos ao caso.
Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e latia e corria para trás, olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; – parecia que o bichinho estava me chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar.
– Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava – as boas-tardes! – ao dono da casa, aguentei um tirão seco no coração... Não senti na cintura o peso da guaiaca!
Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento dos gados que ia levantar.
E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois de uns coriscos tirante a roxo... depois de tudo me ficou cinzento, para escuro...
Eu era mui pobre – e ainda hoje, é como vancê sabe... –; estava começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador[8], sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras...
Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:
– Então patrício? Está doente?
– Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão...
– A[9] la fresca!...
– É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele agora pensar de mim!...
– É uma dos diabos, é... ; mas não se acoquine[10], homem!
Nisto o cusco brasino[11] deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir...

Ah!... E num repente lembrei-me de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi. E, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinta das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma tragada, antes de entrar na água, e que deixei espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo.
Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes que outros andantes passassem. 
Num vu[12] estava a cavalo; e mal isto, o cachorrito pegou a retouçar, numa alegria, ganindo – Deus me perdoe! – que até parecia fala!
E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado.
Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por diante, e que por certo vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos todos na aba do sombreiro; uns quantos vinham de balandrau[13] enfiado. Sempre me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua.
Amaguei[14] o corpo e penicando as esporas, toquei a galope largo.
O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo.


A estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; à direita, o sol muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosos.
Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto de luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas, como numa despedida triste, em que a gente também não sacode os braços...
Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande em tudo.
O zaino era um piganço de lei; e o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da polvadeira rasteira que as patas do flete[15] levantavam.
E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal[16]; depois o lusco-fusco; depois, cerrou noite escura; depois, no céu, só estrelas... só estrelas...

O zaino atirava o freio e gemia no compasso do galope, comendo caminho. Bem por cima da minha cabeça as Três-Marias tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar... Lembrei-me dos meus filhinhos, que as estavam vendo, talvez; lembrei-me de minha mãe, de meu pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as conheceram pelo nome de Marias, as Três Marias. – Amigo! Vancê é moço, passa a sua vida rindo... Deus o conserve!... Sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!...
– Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope lá caiam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d'água perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!...
Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro, passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos[17]:

                                             Quem canta refresca a alma,
                                             Cantar adoça o sofrer;
                                             Quem canta zomba da morte:
                                             Cantar ajuda a viver!...

Mas que cantar, podia eu!...
O zaino respirou forte e sentou, trocando a orelha, farejando no escuro: o bagual[18] tinha reconhecido o lugar, estava no passo.
Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me.
Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito... que medo, não, que não entra no peito de gaúcho.

Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vaga-lumes retouçando no escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por todos os lados, mais para lá, mais para cá...; nada! Nada!...
Então, senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era!...
E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição.
É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!
Tirei a pistola do cinto; armatilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala...

– Ah! patrício! Deus existe!...
No refilão daquele tormento, olhei para diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!... – Patrício! Não me avexo de uma heresia; mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção...
O cachorrinho fiel lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança...
Eh-pucha! Patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho[19] ao sol, num descampado, no pino do meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!...
E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar.

E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minha culpa, tinha perdido as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como explicar o sucedido, comigo, acostumado a bem cuidar das coisas. Agora... era vender um campito, a ponta de gado manso – tirando umas leiteiras para as crianças e a junta de jaguanés[20] lavradores – vender a tropilha[21] dos colorados... e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse[22] a conta... enfim, havia se ver o jeito a dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não!
E d'espacito[23] vim subindo a barranca; assim que me sentiu o zaino escarceou, mastigando o freio.
Desmaneei-o[24], apresilhei o cabresto; o pingo[25] agarrou a volta e eu montei, aliviado.
O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância.
Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo, acuando. O zaino relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do potreiro outros relinchos vieram.
Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se rebolcou com ganas.
Então fui para dentro: na porta dei o – Louvado seja Jesu-Cristo; boa-noite! – e entrei, e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quantos paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saia; corria o amargo.

Em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na ressolana[26], estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com trezentas onças, dentro.
– Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal foi o susto?...
E houve uma risada grande de gente boa.
Eu também fiquei rindo, olhando para a guaiaca e para o guaipeva[27], arrolhadito aos meus pés...  



[1] TUPACERETÃ – Município em cuja parte oriental, entre os arroios Caixa-d'Água e Caneleira, fica a cidade com o mesmo nome. [Tupaceretã é a forma tradicional, oficialmente substituída por Tupanciretã. Teodoro Sampaio em seu Tupi na Geografia Nacional, consigna Tupanceretã, "a terra da mãe de Deus, o património de Nossa senhora".]
[2] SANTA MARIA –  Cidade da região central do município do mesmo nome, entre cabeceiras do arroio Cadena.
[3] PÊLO-A-PÊLO – Lidar contínuo e duro; trato ininterrupto e rude. [Não dicionarizado. Prende-se à expressão viajar (ou andar) de pêlo a pêlo = sem mudar de cavalo, por longa que seja a viagem.]
[4] TROPEIRO – Aquele que conduz tropa, isto é, rebanho de gado vacum ou cavalar.
[5] ABOMBADO – Impossibilitado de continuar viagem por cansaço devido ao calor (diz-se do cavalo); esfalfado, exausto, arquejante (diz-se do animal e por extensão da pessoa). Termo também usual em S. Paulo.
[6] CAPINCHO – O macho da capivara; ou o filhote macho da capivara.
[7] CUSCO – Cão pequeno, de raça ordinária.
[8] Charqueador, produtor e comerciante de charque, ou carne de vaca seca, salgada e comprimida em mantas. 
[9] A la fresca – expressão de espanto, surpresa ou descrença. 
[10] ACOQUINE -- de acoquinhar, ou inquietar, amofinar, amedrontar, assustar, importunar, aborrecer. 
[11] BRASINO – Diz-se do animal, bovino ou cão, que tem pelo vermelho com listas pretas ou quase pretas.
[12] NUM VU – Num vá, num vupe, num ápice.
[13] BALANDRAU – Nome dado ao poncho de pala, ou pala simplesmente, o qual tem no meio, como a opa, uma abertura por onde é enfiado o pescoço. 
[14] AMAGUEI – De AMAGAR, isto é, levar (o corpo) para a frente, quando a cavalo, a fim de dar impulso ao animal.
[15] FLETE – Cavalo bom, árdego, de bela aparência.
[16] PAJONAL – Terreno coberto de palha-brava, santa-fé e outras gramíneas.
[17] PAGOS – Lugar onde se nasceu, o rincão, a querência, o povoado, o município de onde se é natural ou onde se reside.
[18] BAGUAL – Potro recém-domado, cavalo novo, arisco, espantadiço, grosseiro, rústico, e muito grande.
[19] ESPINILHO – Acácia de flor amarela.
[20] JAGUANÉ – Diz-se de, ou animal vacum que tem o fio do lombo e o ventre brancos, e os lados de cor preta ou avermelhada.
[21] TROPILHA – Certo número de cavalos de pelo igual, que geralmente acompanham uma égua-madrinha.
[22] MERMAR – Diminuir de peso, valor, quantidade, velocidade, etc.; diminuir, minguar.
[23] D'ESPACITO – Devagar, pouco a pouco, de espacito.
[24] DESMANEAR – Tirar a meneia (peça formada por dois pedaços de couro ligados por uma argola e com a qual as patas ao cavalo, similar às peias). 
[25] PINGO – Cavalo bom, vistoso, árdego.
[26] RESSOLANA – Soalheira forte, soalheira.
[27] GUAIPEVA – Cusco, também designado guapeca ou guaipé. 

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