5.27.2015

A MÃO AO ASSINAR ESTE PAPEL


 
A MÃO AO ASSINAR ESTE PAPEL
 

 

A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;

cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração;

duplicaram o globo dos mortos e reduziram a metade um país;

estes cinco reis levaram a morte a um rei. 

 

A mão soberana chega até um ombro descaído

e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;

uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte

que pôs fim às palavras.

 

A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,

e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;

maior se torna a mão que estende o seu domínio

sobre o homem por ter escrito um nome.

 

Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam

a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;

há mãos que governam a piedade como outras o céu;

mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar.

 

In DYLAN THOMAS

A Mão ao Assinar Este Papel

Trad. De Fernando Guimarães

O ESTILO SOMOS NÓS

 

 

O ESTILO SOMOS NÓS

 
Incontáveis copos de vinho
e Li Bai compõe cem poemas.
Dorme numa taberna, no mercado de Chang’an,
quando o imperador solicita a sua presença.
O poeta recusa a barca do Filho do Céu e diz:
“Que Sua Majestade saiba,
este seu humilde servidor
é o rei dos Bêbedos.”

LI BAI

 


“No Verão de 742, de novo na província de Shandong, Li Bai cumpre o ritual de ir ver o nascer do sol no alto da montanha, exatamente sobre a Taishan, a mais sagrada de todas as montanhas da China. Lá encontra meninas de jade que lhe oferecem de beber em taças de nuvens. Mil duzentos e trinta e nove anos depois, em Outubro de 1981, no mesmo lugar, um português, aos tombos pela China, cumpriria, rigorosamente igual ritual” – afirma António Graça de Abreu, no Prefácio a Poemas de Li Bai, editado pelo Instituto Cultural de Macau, em 1996. Omar Kayyam, outro poeta da nossa intencionalidade, astrónomo e matemático persa, muçulmano, e que viveu entre os anos 1040 e 1122, celebra os prazeres etílicos, em termos quase religiosos, não obstante a proibição do uso de bebidas alcoólicas estipulada no Alcorão, proibição essa a que se deve a descoberta do café, que então foi considerado como substituto do vinho. E fá-lo em termos tais, que esse misticismo ultrapassa o purgatório, como no Rubayyat «um jardim, uma jovem ondulante, a ânfora cheia de vinho, / meu desejo e minha amargura: eis o meu Paraíso e o meu Inferno. / Mas quem percorreu o Céu e o Inferno?», ou naquele outro em que confessa que «jamais desejei o manto do engano. / Mas roubaria por um copo de vinho. / Tenho setenta anos: o meu cabelo é de neve. / Hoje quero ser feliz: amanhã será tarde», onde as noções de tempo e propriedade, de ética e de sociedade, são minimizadas face à impetuosidade da bebida. Inúmeros artistas plásticos, não só andaram aos bordos, como esculpiram ou pintaram sob a inspiração de Baco, onde figuram os nomes de Miguel Angelo, mas igualmente Rubens, Velázquez, Murillo, Le Nain, Jordaens, os mestres flamengos e a quase totalidade dos surrealistas da modernidade. Xenefonte, Tácito, os versos de Homero, Anacreonte, Horácio, Rabelais, Baudelaire e Carducci, ou ainda os escritos geórgicos de Plínio, Columelle e Catão, são inegáveis testemunhas da importância do vinho na História (e nas estórias). Exemplos mais recentes nas literaturas nacionais e universal, como o foram Jack London, Blaise Cendras, Fernando Pessoa, Hemingway, Manuel da Fonseca, Cardoso Pires, que não negaram nunca o valor da bebida como auxiliar de criatividade. Da Antiguidade aos nossos dias, o vinho tem estado sempre na linha da frente das relações sociais e artísticas, impondo-se sobremaneira, senão pelo recurso económico e comercial que é, pelo menos nos efeitos que propicia.

Ao longo dos tempos, dispersando-se por diversas tonalidades, perfis, sabores, graus, divinizado ou satanizado, socializado ou marginalizado, o vinho veio no entanto ganhando foros de imprescindível na caracterização das celebrações (de vitórias desportivas, de colheitas, de negócios, de matrimónios e batizados, de inaugurações e de liturgias), da sabedoria (no reconhecimento da palavra e da honra, da família e da amizade, da integridade dos contratos, da reconciliação entre opositores), do amor (na antecipação e preparação do prazer, na resistência às paixões impulsivas e momentâneas, no afogar das mágoas passionais), do ritual (religioso, guerreiro e de iniciação à maturidade), do tempo que passa (iludindo a solidão, esquecendo as limitações ou eliminação do vazio existencial), de todos os dias (às refeições, aos encontros e nas esperas), da saúde (como analgésico, desinfetante e condimento substancial das mesinhas caseiras) e da morte (para “chorar” ou beber o defunto, esquecer os entes perdidos e comemorar ou homenagear datas épicas e heróis); mas foi sobretudo na sua capacidade de transfigurar o tempo e os modos, que o vinho veio a realizar a maior proeza histórica, que até hoje nos foi concedida: a da igualdade. Aquilo que sempre foi impossível pelas medidas de coesão, pelas políticas e reformas sociais, pelas legislações e Cartas de Direitos, pela luta de classes ou pelas atividades missionárias e evangélicas, conseguiu-o somente a tendência alcoólica dos povos, pondo na mesma mesa ou valeta, tanto os ricos e afortunados, os clérigos e os tropas, os políticos e os vagabundos, os doutores e os analfabetos, os condutores e os peões, os valentes e os fracos, os feios e os lindinhos, como os atléticos e os enfezados: de gatas e, às vezes, na mesma morgue.

Portanto, independentemente daquilo que aconteceu no passado ou do que venha a resultar no futuro, importa hoje escamotear, exorcizar, pensar, as motivações e efeitos dum bem, que se mal usado nos pode desgraçar. Esclarecer as relações de amor/ódio com um produto de tão grande poder sobre nós e os outros, é um passo importante para ganharmos patamares de defesa, como de usufruto do prazer, que nos podem auxiliar no relacionamento com uma substância que tanto nos pode pôr a par dos imperadores, à semelhança do que sucedeu com Li Bai, ao ser solicitado à presença de Sua Majestade, como dos velhos ladrões de Omar. Nos pode emprestar o génio de um premiado com o Nobel, como nos pode atirar para uma cadeira de rodas o resto da vida, entornando-nos o cálice da eternidade no asfalto do sofrimento e dependência. Como nos pode facilitar o dia-a-dia ou torná-lo numa dolorosa ressaca, mais ou menos interrompida conforme a carteira ou disponibilidade temporária.

Porém, sendo uma espécie de corda bamba entre bebedores e abstémios, o equilibrista nem sempre mantém a postura da vara, faça ele o que fizer, porquanto se esgueira demais para os lados da imaculada perfeição que é abdicar de si mesmo em favor da sua teoria de vida. E hoje, superiormente às circunstâncias que estipulam o consumo ou não de bebidas alcoólicas, o que está sobretudo em causa é como cultivar a nossa atitude perante este ou aquele produto, que nos pode ser benéfico e igualmente nocivo, e assim definitivamente possamos aprender a conviver com “alguém” de que nunca seremos capazes de nos separar, embora nos comprometa ou nos teste os limites por dá cá aquela pinga. Principalmente porque, como Li Bai, também nos é possível afirmar das bebidas, sem mágoa, que são essa «água faiscando como seda prateada / [que] transforma a terra num céu sempre igual» e nos permite «agarrar esta noite de luar, / vogar na barca do vinho e procurar as flores.” Essencialmente  porque tudo é possível, se acreditarmos que sim. E o vinho e o tempo, é, pelo modo como se usam (consomem, bebem, fazem, gastam, aproveitam, testemunham, apuram, editam) que ganham a diferença – e a qualidade... Enfim, o seu estilo. E esse, somos sempre nós.

 

Joaquim Castanho      

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

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