7.31.2011

Quando assim sai a manhã, serena e bela!
Como vem no horizonte o sol raiando!
Já se vão os outeiros divisando,
Já no céu se não vê nenhuma estrela.

Como se ouve na rústica janela
Do pátrio ninho o rouxinol cantando!
Já lá vai para o monte o gado andando,
Já começa o barqueiro a içar a vela.

A pastora acolá, por ver o amante,
Com o cântaro vai á noite fria;
Cá vem saindo alegre o caminhante;

Só eu vejo o rosto da alegria:
Que enquanto de outro sol morar distante,
Não há de para mim nascer o dia.

João Xavier de Matos (Sec. XVIII)
Quem sabe como nasceu o prazer? Vejamos o que nos diz a mitologia…

CUPIDO E PSIQUE,
Por Thomas Bulfinch (1796-1867)
Tradução de David Jardim Júnior


Certo rei e rainha tinham três filhas. A formosura das duas mais velhas era ímpar, mas a beleza da mais nova era tão extraordinária e maravilhosa que nenhumas palavras há para expressá-la como de fato merecia. A fama de tal beleza ultrapassou os limites do reino, de tão grandiosa, que os estrangeiros dos países vizinhos iam, em numerosos grupos, como que em peregrinação, admirá-la, que deslumbrados lhe rendiam homenagens que só se devem à própria Vénus. Na verdade, Vénus viu os seus altares desertos, enquanto os homens se voltavam em devoção à jovem virgem. Quando esta passava, as pessoas entoavam-lhe loas e atapetavam o seu caminho com coroas e flores.
Ora, o desvirtuamento da homenagem devida apenas aos poderes imortais, para exaltação de uma simples e comum mortal, ofendeu profundamente Vénus. Que exclamou, sacudindo com indignação a sua linda cabeleira:
– Terei então que ser eclipsada e subtraída das minhas honras por uma jovem mortal? Em vão aquele pastor real, cujo julgamento foi aprovado pelo próprio Jove, concedeu-me a palma da beleza sobre as minhas mais ilustres rivais, Palas e Juno. Ela não poderá, portanto, usurpar as minhas honras em tranquilidade. Dar-lhe-ei motivo para arrepender-se dessa beleza injustificada.
Chama, por conseguinte, seu filho alado, Cupido, sobejamente ardiloso por sua própria natureza e recreação, exaltando-o e provocando-o superiormente quanto a seus cumprimentos. Mostra-lhe Psique e diz:
– Castiga, meu filho, aquela audaciosa e impertinente beleza; assegura, à tua mãe, uma vingança tão doce quanto foram amargas as injúrias que recebi. Infunde no peito daquela altiva donzela uma paixão tamanha e avassaladora por algum ser baixo, indigno, ordinário, de sorte que ela possa colher uma tão grande mortificação quanto o júbilo e triunfo que agora sente.
Cupido preparou-se, então, para obedecer às ordens maternas.

Há duas fontes no jardim de Vénus, uma de água doce, outra de água amarga. Cupido encheu nelas dois vasos de âmbar, cada um com água de cada uma das fontes, e suspendendo-os do alto da sua aljava, encaminhou-se para o quarto de Psique, que encontrou dormindo. Derramou, então, algumas gotas de água da fonte amarga sobre os lábios da jovem, embora ao vê-la quase tivesse sido tomado pela piedade; depois, tocou-a de lado com a ponta da sua seta. Ao contato, Psique acordou e abriu os olhos diante de Cupido – ele mesmo invisível – que, perturbado, se feriu com a sua própria seta. Descuidando-se do ferimento, o único pensamento do deus consistia em desfazer o mal que fizera, e derramou as balsâmicas gotas de alegria sobre os sedosos cabelos da jovem recém-desperta.
Psique, daí em diante desdenhada por Vénus, não tirou vantagem de todos os seus encantos. É bem certo que todos os olhos a contemplavam, maravilhados, e com admiração, e todas as bocas a exaltavam, sobretudo as dos poetas e aedos; mas nenhum rei ou príncipe, plebeu ou estrangeiro se apresentou a pedi-la em casamento. Já suas duas irmãs mais velhas, e muito menos belas que ela, há muito se havia casado com dois príncipes herdeiros, enquanto a formosa Psique, nos seus aposentos de solteira, lamentava abatida a solidão, até irritada com tamanha beleza que, embora pródiga em louvores e odes, não conseguia despertar amor.
Seus pais, receosos de que inadvertidamente tivessem provocado a ira dos deuses, consultaram o oráculo d Apolo, que lhes respondeu:
– A virgem não se destina a ser esposa de um amante mortal. Seu futuro marido a espera no alto da montanha. É um monstro a quem nem os deuses nem os homens mortais podem resistir. Essa terrível predição encheu a todos de desânimo, e os pais da jovem sucumbiram ao desespero, todavia, Psique, adiantou-se e disse:
– Por que me lamentais, meus queridos pais? Devereis antes ter sofrido e pesarosos se manifestarem, em vez de congratulados se haverem sentido, e cumulado de honras (indevidas), quando todos à uma me chamavam de Vénus. Percebo agora que sou vítima daquele nome. Resigno-me. Levai-me àquele rochedo que me destinou meu desventurado destino.
E, assim, após nesse sentido terem preparado todas as coisas, a donzela tomou real tomou seu lugar no cortejo, que mais parecia um funeral do que um casamento e, com seus pais, entre as lamentações do povo, subiu à montanha, no alto da qual a deixaram só, voltando depois para casa com os corações afogados em dolorosa e vil tristeza.
Enquanto Psique estava de pé no cume da montanha, tremendo de medo e com os olhos rasos de lágrimas, o gentil Zéfiro a levantou acima do solo e a conduziu suavemente até um florido vale, para dormir e descansar dos receios. Ao despertar, refeita pelo sono reparador, olhou em torno e viu, bem perto, um lindo e frondoso bosque de árvores altas e majestosas. Entrou-lhe dentro e, no meio dele, encontrou uma fonte de águas puras e cristalinas, e mais adiante, um magnífico palácio, cuja augusta fachada dava a impressão de não tratar-se de obra de mortais, mas de venturosa morada de algum deus. Tomada de espanto e admiração, a moça aproximou-se do palácio e aventurou-se a introduzir-se nele. Cada objeto que viu a encheu de assombro. Colunas de ouro sustentavam o teto abobadado e as paredes eram ornadas a baixos-relevos e pinturas de animais selvagens ou cenas rurais, campesinas, bucólicas, representadas de modo a deleitar os olhos e sugestionar a imaginação do espetador. Continuando a avançar, Psique percebeu que, além dos aposentos majestosos, havia outros repletos de tesouros e todos os demais produtos da natureza e da arte.
– Soberana dama, tudo quanto aqui vês é teu. Nós, cujas vozes ouves, somos teus servos e obedeceremos às tuas ordens com a maior atenção, presteza e diligência. Retira-te, pois, para o teu quarto e repousa em teu leito, após o que, quando tiveres descansado, poderás refrescar-te com um banho. A ceia espera-te no aposento adjacente, quando ali te aprouver acomodares-te.
Psique atendeu às recomendações dos servos invisíveis, depois de repousar e banhar-se, sentando-se no aposento contíguo, onde de imediato surgiu uma mesa, sem qualquer servidor visível, com os pratos e vinhos mais deliciosos que imaginar se possa. Também seus ouvidos foram deleitados com música tocada por executantes invisíveis, um dos quais cantava, outro tocava alaúde, enquanto os restantes completavam a maravilhosa harmonia de um coro perfeito.
Psique não vira ainda o marido que lhe estava destinado. Ele vinha apenas nas horas de escuridão e partia antes do amanhecer, mas suas expansões eram repletas de amor e inspiraram nela uma paixão semelhante. Não raras vezes ela implorava ao amante que ficasse e a deixasse observá-lo, porém ele nunca lhe satisfazia o pedido. Pelo contrário, recomendou-lhe que jamais fizesse qualquer tentativa para vê-lo, porque ele tinha bons motivos para se esconder.
– Por que me queres ver? – Perguntava. – Duvidarás acaso do meu amor? Tens algum desejo por satisfazer? Se me visses, irieis depois talvez temer-me, talvez adorar-me, todavia a única coisa que te peço é que ames. Prefiro que me ames como um igual a que me adores e veneres como um deus.
Estes argumentos de certo modo aquietaram Psique, durante algum tempo, e, enquanto tudo foi novidade para ela, sentiu-se feliz. Finalmente, porém, a lembrança de seus pais, que desconheciam o seu destino, e de suas irmãs, impedidas de compartilhar com ela as delicias de sua situação, dominou-lhe o espírito, e ela começou a considerar somente como uma espécie de esplêndida e rica prisão. Então, quando o marido compareceu certa noite, desabafou com ele, contando-lhe os seus sofrimentos, e acabou, embora a custo, obtendo dele o consentimento para que suas irmãs pudessem ir visitá-la.
Assim, chamando Zéfiro, transmitiu-lhe as ordens do marido, ao que, obedecendo-lhe prontamente, trouxe as irmãs de Psique até si, através da montanha, para o vale onde habitava. Elas abraçaram-na e a jovem retribuiu-lhe as carícias.
– Vinde – disse Psique. – Entrai em minha casa e disponde de quanto vossa irmã tem para vos oferecer.
E nisso, tomando-as pelas mãos, levou-as a seu palácio de ouro e entregou-as aos cuidados dos criados invisíveis, a fim de que se banhassem, fossem servidas à mesa e admirassem os inúmeros tesouros disponíveis. A vista daqueles dons celestiais fez com que a inveja penetrasse no coração de ambas, vendo que sua irmã mais moça possuía tais riquezas e esplendores, deveras superiores aos seus.
Fizeram a Psique inúmeras perguntas, nomeadamente a de que espécie de pessoa era seu marido. Psique respondeu que era um belo jovem, que geralmente se perdia nas montanhas caçando todos os dias. Contudo, as irmãs, não satisfeitas com essa resposta, levaram-na a confessar que jamais o vira. Daí que ambas trataram de, então, de inculcar no coração dela acutilantes dúvidas e inquietações, desconfianças e tenebrosas sugestões.
– Lembra-te – disseram –, que o oráculo pitiano anunciou que tu te casarias com um monstro horrível e tremendo. Alguns habitantes deste vale alvitram que ele uma terrível e monstruosa serpente que te nutre, por enquanto, com alimentos suculentos e deliciosos a fim de devorar-te posteriormente. Ouve o nosso conselho. Mune-te de uma lanterna e de uma faca afiada, esconde-as onde teu marido não possa encontra-las, e quando ele estiver a dormir profundamente, sai do leito, acende a lanterna e vê, com teus próprios olhos, se o que dizem é verdade ou não. Se for, não hesites um momento em cortar-lhe a cabeça e recuperares a tua liberdade.
Psique resistiu aos apelos das duas tanto quanto pode. Todavia ficara impressionada e, depois que as suas se retiraram, o eco das suas palavras manteve-se durante longo tempo e de forma persistente, acirrando-lhe a curiosidade, de forma resoluta e pertinente, para que lhes continuasse a resistir. Assim, aprovisionou de uma faca e lamparina, escondendo-as onde só ela sabia estarem. Quando ele adormeceu, Psique levantou-se sem fazer qualquer ruído, recuperou lanterna e faca, e acendendo a primeira, para grande espanto seu, viu, não o monstro horrendo que temia ver, mas antes o mais belo e encantador dos deus, com madeixas louras sobre o pescoço cor de neve e róseas faces, um par de asas nos ombros, mais brancas ainda que a neve, de brilhantes e reluzentes penas como flores primaveris. Porém, ao baixar a lâmpada para observar de mais pero e melhor o rosto do formoso marido, inclinou a ligeiramente a lamparina, o que foi suficiente para que uma gota do óleo ardente caísse no ombro do deus, que assustado abriu os olhos e a encarou. Depois, sem dizer uma palavra sequer, abriu as níveas asas e voou através da janela. Psique, na tentativa vã de segui-lo, caiu da janela ao solo. E Cupido, vendo-a estendida no chão, parou o voo por um instante e disse:
– Tola Psique, foi assim que retribuíste o meu amor? Depois de ter desobedecido às ordens de minha mãe e te ter tomado minha esposa, tu me julgavas um monstro e estavas disposta a cortar-me a cabeça? Vai. Volta para junto de tuas irmãs, cujos conselhos parece preferires aos meus. Não te imponho outro castigo, além do deixar-te para sempre. O amor não pode conviver com a suspeita.
E isto dizendo, continuou o seu voo, deixando a infortunada Psique prostrada no chão a lamentar-se tristemente.
Quando se recompôs um pouco, observou em redor, mas o palácio e os Jardins tinham desaparecido, encontrando-se ela num descampado a pequena distância da cidade onde residiam as irmãs. Procurou-as e contou-lhes a história do seu infortúnio, com que as desprezíveis criaturas, fingindo pesar, na verdade se regozijavam.
– Agora, talvez ele escolha uma de nós – disseram, entre si.
Levadas por essa ideia, e sem dizer uma palavra sobre as suas intenções, cada uma delas se levantou cedo na manhã seguinte, dirigiu-se ao alto da montanha e convocou Zéfiro, para recebe-la e levá-la ao seu senhor. Depois atiraram-se no ar, todavia Zéfiro as sustentou, deixando-as cair no precipício, onde se despedaçaram.
Entretanto, Psique caminhava noite e dia, sem repouso nem alimentação, à procura do marido. Tendo avistado uma imponente montanha, em cujo cume havia um templo magnífico, disse consigo mesma, suspirando:
– Talvez meu amor, meu senhor, habite ali.
E, assim dizendo, dirigiu-se ao templo.
Mal entrara, viu montões de trigo, quer em espigas, quer em feixes, misturados com espigas de cevada. Espalhados em torno, havia foices e ancinhos, além de todos os demais instrumentos usados na ceifa, em desordem, como que atirados descuidadamente das mãos dos ceifeiros e ceifeiras cansados, nas horas escaldantes do dia.
A piedosa Psique pôs fim àquela confusão indizível, separando e colocando no seu devido lugar, convencida que estava em que não podia negligenciar o culto a nenhum deus, antes sim, ao contrário, procurar com sua diligência cultuá-los a todos. A divina Ceres, a quem era devotado aquele templo, vendo a jovem tão piedosamente ocupada, sensibilizou-se, falando-lhe assim:
– Ó Psique, és na verdade digna da nossa piedade, e embora eu não possa proteger-te contra a má vontade de Vénus, posso porém ensinar-te o melhor meio de evitar desagradá-la. Vai, e voluntariamente rende-te à tua deusa e soberana, e trata de rogar-lhe perdão com modéstia e submissão, e talvez, assim, ela te restitua o marido que perdeste.
Psique obedeceu prontamente à ordem de Ceres, dirigindo-se ao templo de Vénus, tentando fortalecer o espírito e repetindo, em voz baixa, o que iria dizer, e como tentaria apaziguar a divindade irritada, compreendendo como o caso era difícil e até fatal.
Vénus recebeu-a com a ira estampada no rosto.
– Tu, a mais ingrata e infiel das servas, lembraste-te, afinal que tens, realmente, uma senhora? – Exclamou, interpelando a outra. – Ou serás que vieste só para ver teu marido enfermo, ainda aguardando no leito, em consequência da ferida que lhe causou sua esposa? És tão pouco favorecida e tão desagradável, que o único meio pelo qual podes merecer o teu amante é a prova do engenho e diligência. Farei uma experiência da tua capacidade como dona da casa.
Ordenou, então, a Psique, que fosse para o celeiro do seu templo, onde havia grande quantidade de trigo, aveia, milho, ervilhas, feijões e lentilhas, preparados para alimentar os pombos, e disse-lhe:
– Separa todos estes cereais, colocando cada qual de acordo com a sua qualidade, e trata de o fazer antes de anoitecer.
Depois Vénus partiu, deixando a jovem.
Psique, porém, quedou-se consternada, diante da imensidade de trabalho que a esperava, estúpida e calada, sem mover um dedo.
Mas enquanto assim estava, desesperada, Cupido inspirou as formiguinhas, nativas dos campos, a terem pena dela. A chefe das formigas e a enorme multidão de suas súbditas de seis pernas aproximaram-se do montão de cereais e, com o maior entusiamo e expediente, tomando grão a grão, os separaram do montão, formando diversos montes de cada qualidade, desaparecendo imediatamente, logo que terminaram. Ao aproximar-se o crepúsculo, Vénus voltou do banquete dos deuses, rescendendo perfumes e coroada de rosas. E aio ver a tarefa executada, exclamou:
– Isto não é obra tua, desgraçada, mas daquele que conquista para seu infortúnio, e para o teu.
Assim dizendo, deu à jovem um pedaço de pão negro para a ceia, e partiu.
Na manhã seguinte, Vénus mandou chamar Psique, e disse-lhe:
– Olhe para aquele bosque que se estende na margem do rio. Ali encontrarás carneiros pastando sem pastor, coberto de lã brilhante como ouro. Vai buscar-me uma amostra daquela lã preciosa colhida de cada um dos velocinos.
Docilmente, Psique dirigiu-se à margem do rio, disposta a fazer o que estivesse ao seu alcance para executar a ordem. O rio deus, porém, inspirou os juncos harmoniosos murmúrios, que pareciam dizer:
– Oh donzela duramente experimentada, não desafies a corrente perigosa, nem te aventures entre os formidáveis carneiros da outra margem, pois enquanto eles estiverem sob a influência do sol nascente, estão dominados por uma força cruel de destruir os mortais, com seus chifres aguçados ou seus rudes dentes. Quando, todavia, o sol do meio-dia tiver levado o rebanho para a sombra, e o espírito sereno do rio o tiver acalentado para descansar, então podes atravessar entre ele sem perigo e encontrarás lã nas moitas dos arbustos e nos troncos das árvores.
Assim o bondoso rio deus ensinou a Psique o que deveria fazer para executar a tarefa e, seguindo as suas instruções, ela em breve voltou para junto de Vénus, com os braços cheios de lã de ouro, tal e qual como esta deusa lhe ordenara. Não foi contudo recebida com benevolência pela sua implacável senhora, que lhe disse:
– Sei muito bem que não foi por teu próprio esforço que foste bem-sucedida nessa tarefa e ainda não estou convencida de que tenhas capacidade para executares sozinha uma tarefa útil. Toma esta caixa, vai às sombras infernais e entrega-a a Prosérpina, dizendo: “Minha senhora Vénus que que lhe mandes um pouco da tua beleza, pois tratando de seu filho enfermo, ela perdeu alguma da sua própria.” Não demores a executar o encargo, porque preciso disso para aparecer na reunião dos deuses e deusas esta noite.
Psique ficou certa de que a sua perda era, agora, inevitável, obrigada a ir por seus próprios pés diretamente ao Érebo. Por conseguinte, para não adiar o inevitável, subiu ao alto de uma elevada torre, para de lá se precipitar, de maneira a tornar mais curta a descida para as sombras. Contudo, uma voz, vinda da torre, a inquiriu:
– Por que, desventurada jovem, pretendes pôr fim a teus dias de modo tão horrendo? E que covardia faz desanimar diante deste último perigo quem tão milagrosamente resolveu todos os outros?
Em seguida, a voz lhe disse como, através de determinada gruta, poderia alcançar o reino de Plutão e como evitar os perigos do caminho, passar por Cérbero, o cão de três cabeças, e convencer Caronte, o barqueiro, a transportá-la para a travessia do negro rio e trazê-la de volta.
– Quando Prosérpina te der a caixa com a sua beleza – acrescentou, porém em voz ciciada – tem cuidado, acima de todas as coisas, para que de modo algum a caixa se abra, e não permitas que a tua curiosidade olhe o tesouro da beleza das deusas.
Animada por estas palavras, Psique seguiu todos os conselhos e recomendações da voz, e chegou sã e salva ao reino de Plutão. Foi admitida no palácio de Prosérpina e, sem aceitar o delicioso banquete que esta lhe ofereceu, contentando-se apenas com pão seco para alimentar-se, transmitiu o recado de Vénus. A caixa foi-lhe entregue sem demora, fechada e repleta de coisas preciosas. Psique voltou, então, pelo mesmo caminho e bem feliz se sentiu quando viu novamente a luz do dia.
Depois, porém, depois de ter vencido tantos perigos, sentiu-se dominada por um intenso desejo de examinar o conteúdo da caixa.
– Como? – Exclamou. – Eu, transportando a beleza divina, não aproveitarei uma parte mínima dela para pôr em minhas faces e assim parecer mais bela aos olhos de meu marido?
E isto dizendo, abriu cuidadosamente a caixa, mas nada ali encontrou, porquanto o infernal e verdadeiro sono estígio, libertando-se da sua prisão, tomou posse dela e fê-la cair no meio do caminho, como um cadáver sem senso de movimento.
Cupido, todavia, restabelecido já do seu ferimento, e não suportando mais a ausência da sua amada Psique, passando pela greta da janela de seu quarto, que fora deixada aberta, voou até ao lugar onde estava a jovem e retirando o sono de seu corpo fechou-o de novo na caixa, e acordou Psique, com o ligeiro contato de suas setas.
– Mais uma vez – exclamou –, quase morreste, devido à mesma curiosidade. Mas agora executa a tarefa exatamente como te foi imposta por minha mãe, que eu cuidarei do resto.
Então Cupido, rápido como o relâmpago, penetrando através das alturas do céu, apresentou-se diante de Júpiter, com sua súplica. Júpiter ouvi-o com benevolência e advogou com tal empenho a causa dos amantes que conseguiu a concordância de Vénus. Daí que tenha mandado Mercúrio levar Psique à assembleia celestial e, quando esta chegou, entregou-lhe uma taça de ambrósia, dizendo:
– Bebe isto, Psique, e sê imortal. Cupido não romperá jamais os laços que atou, mas essas núpcias serão perpétuas.
Assim ficou Psique finalmente unida a Cupido, união de que resultou mais tarde terem uma filha, por cujo nome, Prazer, é bem conhecida de todos.

7.23.2011

UM MUNDO PERDIDO
Henri Bosco

Afinal, não foi muito difícil...
A tia Martine conseguia sempre tudo de meus pais, num abrir e fechar de olhos. Conseguiu, pois, levar-me com ela.
Só lhe fizeram objeções, por fazer:
– ...E se lá nos cai doente? Constipa-se tão facilmente!... A garganta, o nariz... Ah! Que infelicidade!...
Lá era Pierrouré, a casa dos meus bons primos Gloriot.
– Assoá-lo-ão, Marcelina, e com um raminho de borragem [planta anual empregada como sudorífero] aquecer-lhe-ão os pulmões. Eu já o conheço.
– Dormirá numa cama dura! – gemeu minha mãe. – Pensem bem, em casa de montanheses! ... E o ar é lá muito forte!... Terá frio, as noites são frescas...
– De terá calor e de noite cobri-lo-ão, minha filha. E além disso, o tempo está bom. Vejam o céu, apalpem-no!...
Ah, lá estar bom, estava! E tão bonito que se julgaria estar em São Vitor, em pleno Julho!
É certo que a 15 de Setembro, afora algumas folhas, nada mudou ainda da força do Verão, no nosso sítio.
E a tia concluiu:
– Vocês devem dar-lhe estas três semanas de férias. Vão fechá-lo, pobre pequeno! Sofrerá, tenho a certeza. Encontrá-lo-emos triste, magro, com a pele empalidecida, em três meses de escola. Porque o vosso colégio é assim mesmo. Emagrece-se, estiola-se... Ao menos, que tome um pouco de forças antes de perder as belas cores. Trá-lo-ei com as faces frescas e belos músculos.

E assim se decidiu.

7.21.2011


Pela competência é que vamos

"A liberdade sem travões é unicamente para a imprensa e não para os leitores; quem quiser uma opinião só sua apresentada com algum relevo e ressonância não pode estar em contradição com as ideias do jornal e, muito menos, que almeje disputar a "audiência" pública com os editorialistas oficiais desse órgão de comunicação." (Palimpsesto com ecos Alexandre Soljenitsyne, sobre O Declínio da Coragem)

Não podemos fazer depender o nosso desenvolvimento, retoma da confiança dos mercados, estabilidade económica e financeira, progresso social e sustentabilidade social ou natural, do apoio exterior; eles devem ser resultado direto e consequente das políticas sectoriais alicerçadas numa gestão responsável, consciente, madura, experimentada, rigorosa, honesta, emancipada, frontal e cuidada de todas as nossas potencialidades, bem como do empenho, objetividade e esclarecida intenção das forças vivas nacionais, intra e extra território, nomeadamente as inerentes e caraterísticas dos países membros da CPLP. São nações indispensáveis para reforçar o nosso estatuto no mundo, além de autênticos filões de oportunidade, como já reconhecem os mais desenvolvidos povos europeus, dos quais, os últimos a tentarem implantar-se, por exemplo, em Angola, Itália, Holanda e Alemanha. Esta, foi ontem notícia!
Espreitar a hipótese das eurobonds para nos safarmos airosamente encalacrando os demais dos país europeus não se avizinha, minimamente, uma solução plausível bem-intencionada, franca, positiva e contraproducente, mas antes a expressão remanescente do chico-espertismo que nos afundou recentemente, tenha ele sido de origens conjunturais como portuguesas. Nem bradar aos deuses para que nos socorram. É importante que deixemos de adubar o pacovíssimo comportamento de defender que quando algo bom acontece fomos nós os agentes motivadores ou protagonistas do feito, mas se algo de menos positivo ou de conturbados sucede, então foram sempre outros, sobretudo os Estados Unidos ou a conjuntura global. Porque não foi, e todos sabemos que nada é assim tão fácil e linear.
Por outro lado, as campainhas de alerta não podem estar só ligadas aos zumbidos externos. Pretender que a Europa devia despertar mais cedo para as dificuldades, é sacudir a água do capote. A Europa somos nós. De Sagres aos Urais, isso é tudo Europa, e dos 27 preenche grande parte desse espaço. Escutar as campainhas de alerta, como afirmou o presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, recentemente, deve começar cá por casa. As medidas de desenvolvimento (sustentado) e o crescimento económico, começam no interior do nosso país, das nossas instituições e empresas, e depois é que podem alastra-se à Europa dos 27, que não podemos continuar a entender como a Santa Casa da Misericórdia das nações. Nem o BCE/CE é a Madre Teresa de Calcutá. Ou FMI o tio rico que chegou do estrangeiro. Os portugueses estão cansados discursos para o inglês ver e de declaras boas intenções que ninguém segue. Precisamos de fatos. De atos. E de verem à vista desarmada que não nos embalam mais com lamúrias e bodes-expiatórios “distantes”, como as utopias de outrora.
Precisamente hoje na RDP, o entrevistado das 10:00 horas disse que Portugal não pode queixar-se dos outros, nem sequer das diatribes e negociatas dos UEA, pois gastou à barba-longa tudo o que tinha e o que não tinha, que pediu emprestado, reiterando aquilo que há muito se desconfiava pelo registo histórico: continuamos dependentes de Castela desde os tempos de Afonso Henriques e essa mentira da independência não passou de golpe de teatro e marketing ideológico. Não podemos de deixar as nossas explorações para trás, nem perder o tino com quanto pretendem fazer-nos querer. Podemos agarrar o nosso futuro com as mãos se não esquecermos a nossa consciência, a emancipação, a responsabilidade lusíada. Basta não arrepiar caminho à menor contrariedade!


“Não deixaremos de explorar,
E o fim da nossa exploração
Será chegar onde começámos
E conhecer o local pela primeira vez…
Quando as labaredas se dobram
Sobre a coroa das chamas
E a chama e a rosa são uma só.”

In T. S. Eliot, Four Quartets

7.19.2011

A CONFISSÃO, por Tchekov

O dia estava luminoso, glacial... Sentia a alma leve como um cocheiro que recebe por engano uma moeda de ouro em vez de uma de prata. Tinha vontade de chorar, de rir, de rezar... Transportava-me ao sétimo céu. Haviam-me nomeado tesoureiro. O que me regozijava não era tanto a ideia de uns pequenos lucros ilícitos. Nessa época ainda não me tornara ladrão e faria em bocados quem me dissesse que, com o tempo, começaria a fazer alguns desvios... Estava contente com outra coisa: com a minha promoção, o aumento insignificante dos meus vencimentos. Apenas isso.
Contudo, existia ainda outro motivo para me alegrar. No mesmo instante da minha nomeação sentira no nariz algo que se assemelhava a óculos cor-de-rosa. Pareceu-me de repente que os homens tinham mudado. Palavra de honra. Passaram, por assim dizer, a ser melhores. Os feios haviam ficado belos, os maus transformaram-se em bons, os soberbos em humildes, os misantropos em filantropos. Eu andava como que iluminado pela graça. Descobrira na humanidade qualidades que nunca suspeitara. Observava a gente, esfregando os olhos, e pensava: «É estranho, ou sucedeu qualquer coisa ou então, dantes, eu era um imbecil e não reparei em todas essas virtudes.» E concluí: «Como é bela a humanidade!»
Kasukov, um dos membros dos nossos serviços, tipo arrogante que tratava com desprezo as pessoas insignificantes, também se transformara no dia da minha nomeação. Veio para mim com um sorriso aberto (que mosca lhe mordera?) e bateu-me no ombro.
– É muito orgulhoso para a sua idade, meu caro – disse-me ele. – Nunca nos vem visitar. Porquê? Faz mal, meu amigo. Há reuniões de moços em minha casa, divertem-se. As minhas filhas estão sempre a perguntar: «Porque não convida Grigori Kuzmich, papá? Ele é tão simpático!» E eu respondo-lhes: «Pode-se arrastá-lo pelos pés? Contudo, tentarei, vou dizer-lhe...» Vamos, não se faça rogado e apareça.
Espantoso! Que lhe teria acontecido? Enlouquecera? Era um ogro, e ei-lo que de repente...
Ao chegar a casa, no mesmo dia, fiquei deveras admirado. Para o jantar, minha mãe servira-me quatro pratos em vez dos dois habituais. À noite, com o chá, deu-me doce de calda e pães de leite; no dia seguinte, outra vez quatro pratos e de novo doce de calda. Ao outro dia, a mesma coisa. Havia convidados, tomámos chocolate.
– Que significa isto, mamã? – Inquiri. – Porque se tornou de súbito tão generosa? O meu vencimento não duplicou. O aumento é uma ninharia.
Minha mãe lançou-me um olhar surpreendido.
– Que vais tu fazer com todo esse dinheiro? Queres acumulá-lo?
Era de embaraçar uma pessoa! Meu pai encomendou uma peliça, comprou um chapéu novo, começou o tratamento de águas minerais e uvas (no Inverno!). Cinco dias depois recebi uma carta de meu irmão. Não me tolerava, as nossas convicções haviam-nos separado: eu era a seus olhos um egoísta, um parasita, não sabia sacrificar-me, e eis porque me detestava. Na carta, li o seguinte:

Caríssimo irmão. Estimo-te e não podes imaginar as penas infernais que me causou a nossa disputa. Reconciliemo-nos. Estendamos a mão e vivamos a paz! Oxalá concordes. Esperando a tua resposta, abraça-te o teu irmão muito afeiçoado.
Eulampe


Querido irmão! Respondi-lhe que o abraçava e que estava encantado com a sua atitude. Na semana seguinte recebi um telegrama:

Agradecimentos. Muito feliz. Manda cem rublos. Absolutamente indispensável. Abraços.
Eulampe


Enviei-lhe os cem rublos.
Até «ela» se modificou. Não gostava de mim. Um dia em que me enchi de coragem e lhe insinuei timidamente que o meu coração não estava satisfeito, chamou-me insolente e riu-se-me na cara. Quando me tornou a encontrar, uma semana depois da minha nomeação, sorriu com lindas covinhas e ar acanhado.
– Que lhe sucedeu? – Perguntou-me ela, fitando-me. – Está com ótimo aspeto. Não quer vir dançar?
Passado um mês, a mãe dela já era minha sogra, tão famoso havia sido o meu aspeto. Como eu precisasse de dinheiro para o casamento, tirei trezentos rublos da caixa. Pode-se tirá-los à vontade quando se sabe que serão repostos no dia seguinte, ao receber o vencimento. Tirei, além disso, cem rublos para Kazusov... Pedira-mos emprestados e era impossível recusar. Dispõe de influência, pode de um momento para o outro correr comigo... (Aqui, o chefe da redação, achando a narrativa um tanto longa, cortou noventa e três linhas, com prejuízo dos direitos de autor.)
A pedido, uma semana antes da minha detenção, ofereci uma festa. Tanto pior! Que bebam, e comam a fartar, já que são tão invejosos. Quantos éramos na função, não contei, mas lembro-me que as minhas nove divisões se encontravam à cunha. Havia gente moça e gente idosa, e havia também pessoas diante das quais o próprio Kazusov se dobrava em dois. As filhas de Kazusov (a mais velha fora meu namoro) deslumbravam com os seus vestidos. Só as flores de que estavam cobertas me custaram mais de mil rublos. Foi muito divertido. A música soava, os lustres cintilavam, o champanhe corria... Proferiam-se longos discursos e fizeram-se brindes. Um jornalista dirigiu-me uma ode, outro, uma balada...
– Neste nosso país não sabemos apreciar os homens como Grigori Kuzmich – proclamou Kazusov após a refeição. – Pobre Rússia, coitada!
E todos aqueles indivíduos, depois de terem comido e estarem saciados, sussurravam entre si e escarneciam-me, com o polegar na ponta do nariz e agitando os dedos, quando eu estava de costas. Mas via-lhes o sorriso, os gestos de mofa, ouvia-lhes os segredinhos.
– Roubou, o tratante – murmuravam, com sorriso malévolo.
Contudo, nem os esgares nem os segredos os impediriam de comer e beber e darem largas à sua satisfação.
Os lobos e os diabéticos são incapazes de ingerir tudo o que aquela gente devorou. A minha mulher, faiscante de ouro e de diamantes, aproximou-se de mim e avisou-me em voz baixa:
– Dizem, por aí, que fizeste um desfalque. Se for verdade... fica sabendo que te deixo. Não poderei viver com um ladrão!
E, falando assim, compunha o vestido de cinco mil rublos... Nessa noite, Kazusov apanhou-me mais cinco mil rublos. Eulampe pediu-me emprestado outro tanto.
– Se o que por aí se rosna é verdade – disse o meu digno mano, metendo o dinheiro no bolso –, então toma cuidado! Não posso ser irmão de um gatuno!
Findo o baile, conduzi-os a todos de carro, aos subúrbios. Acabámos perto das seis horas da manhã. Extenuados pelo vinho e pelas mulheres, estenderam-se nos trenós para regressar a penates. No momento em que os veículos se punham em andamento, gritaram-me à laia de despedida:
– Amanhã há o inspetor! Obrigado!
Minhas senhoras e meus senhores! Estou preso. Estou preso ou, para me exprimir mais demoradamente: ontem era um homem honesto, merecedor de respeito, hoje sou um gatuno, um ladrão... Gritem agora, injuriem, admirem-se, julguem, exilem-me, escrevam artigos de fundo, atirem pedras, mas... por favor, não todos; todos não!

7.16.2011

(Conto tradicional japonês, cuja transcrição para a linguagem ocidental foi feita por Lafcádio Hearn :)

O PEQUENO SEMPREVERDE

O pequeno Sempreverde, o lenhador, era um rapaz de vinte anos, bem-parecido e de muito bom coração. Para sua mãe, então, parecia ser o melhor dos filhos. Todos os dias, de madrugada, ia apanhar lenha às montanhas próximas, que depois vendia no mercado da cidade e, com o dinheiro que lhe davam por ela, comprava géneros alimentícios e roupas para sua mãe.
Um dia, fora Sempreverde à lenha com seu machado, quando, repentinamente, por ele passou um tufão com tal fúria, que o atirou para fora do caminho. Lutando com o vento como se este fosse uma pessoa viva, atirou-lhe uma machadada conforme pôde. Logo sentiu a impressão, bastante estranha, de ter atingido alguém, principalmente depois de ter visto algumas manchas de sangue caminho adiante. Guiado por esse rasto, foi dar a um grande buraco na terra, tão grande que não se lhe via o fundo. Deixou cair nele uma pedra, porém, só passados longos segundos pode ouvir, o fraquíssimo ruído desta aquando do embate.
– Pode viver neste lugar algum demónio – sussurrou de si para consigo.
Meditando, voltou para trás e dirigiu-se à cidade. Na praça pública havia grande algazarra de conversas e exclamações em redor de alguém que estava afixando na parede um edital com estas horríveis notícias: «Hoje, enquanto a Princesa andava passeando no jardim real, foi raptada por uma súbita rajada vento, e desde então ninguém mais soube dela. O Rei e a Rainha estão tristíssimos. Por ordem do governo faz-se pública a notícia deste infausto acontecimento a todos os cidadãos e cidadãs, esperando que alguém traga novas que ajudem a reaver a nossa querida Princesa. Ficam a apresentarem-se no Palácio Real todos quantos tenha tido qualquer aventura com o vento.»
Sempreverde foi à presença do Rei dando-lhe conta do que lhe sucedera a caminho do bosque. Em recompensa das suas informações, o Rei deu-lhe 100 onças de ouro. E feliz e contente, o jovem lenhador levou o dinheiro a sua mãe.
– Onde foste arranjar isso? – perguntou-lhe ela, surpreendida.
Sempreverde contou-lhe toda a história do que se passara. A mãe profundamente comovida com as notícias acerca da Princesa e, com pena do Rei e da Rainha, disse:
– Querido filho, procedeste honradamente em benefício da pobre Princesa. Mas será possível ao nosso Rei, que tanto tem feito por nós, recuperar a sua filha?
– Não me convenço disso – foi a resposta do rapaz.
– Vai, faz o possível para trazer a Princesa – disse ela –, e dar-me-ás uma grande felicidade.
Sempreverde pensou um pouco no caso. Nada lhe teria dado maior prazer que restituir a Princesa a seus pais, mas a empresa parecia-lhe cheia de perigos. E, sem ele, que havia de ser de sua mãe?
– Não tenhas receio, meu filho – disse-lhe esta. – Buda nos protegerá.
Antes que Sempreverde voltasse ao palácio do Rei, este publicou um pregão à procura de um homem destemido que quisesse penetrar na grande cova e salvar a Princesa de qualquer perigo que ela pudesse correr. Ninguém se adiantou com propostas de auxílio, apesar de haver, nessa ocasião, duras competições entre os rapazes por causa da mão da Princesa, e de um deles, chamado Wusan, que tinha de si próprio uma lisonjeira opinião, haver sempre dito que ia casar com ela. Sempreverde foi ter com o Rei, oferecendo-se para fazer o que o outro não fizera.
Muito comovido, o Rei disse-lhe:
– Meu rapaz, possivelmente caminhas para a morte.
– Eu, com tudo quanto é meu, sou propriedade do Rei e da Nação – foi a resposta do rapaz.
Uma grande multidão acompanhou Sempreverde até ao bosque. Instalaram o cabrestante por cima do buraco, com uma corda em volta da roldana. Da extremidade da corda pendia um grande cesto com campainhas. Quando Sempreverde chegasse ao fundo da cova, tinha que dar três sacudidelas na corda e outras três quando estivesses pronto a subir.
O rapaz, armado com seu machado, meteu-se no cesto que foi então vagarosamente descido no escuro buraco, com grandes exclamações de todos. Por baixo de Sempreverde, tudo era absoluta negridão. Sobre ele, o céu, visto pelo orifício do poço, parecia uma pedra preciosa, branca e brilhante. Quando Sempreverde sentiu outra vez terra firma, a redonda pedra preciosa tinha-se torna vermelha de fogo, do sol que caía no ocidente. Deu três sacudidelas às campainhas e, deitando um rápido olhar à sua volta, viu que estava num sítio húmido, de cujo chão vinha o mais desagradável dos cheiros. Quando os olhos se lhe habituaram à escuridão, viu, à distância, qualquer coisa como uma bandeja de prata: era um longo caminho circular através da terra que se abria diante dele.
– Pode ser que eu esteja noutro planeta – pensou o moço lenhador, que tomou a luz redonda por um sol.
Logo prosseguiu sem receio e, quanto mais caminhava, maior a luz parecia tornar-se. Quando chegou ao fim do caminho, Sempreverde ficou sem ver coisa alguma, porque havia uma luz brilhante, proveniente duma grande pedra preciosa, redonda como a Lua e fixa num alto rochedo. Não longe dela, um belo palácio com um telhado pontiagudo de oiro polido lhe surgiu diante da vista.
Sempreverde entrou nesse estranho palácio. Atravessou formosos jardins e grandes salas deslumbrantes decoradas. As paredes eram cravejadas de pedras preciosas. Tudo lá dentro tinha um aspecto estranho e irreal. Não se via de onde provinha a luz e parecia não viver ali ninguém.
Sempreverde estava agora ficando seriamente atrapalhado, quando, de súbito, chegou aos seus ouvidos um abafado suspiro de angústia. Quase sem respirar nem fazer ruído, percorreu um corredor que o conduziu a uma cozinha. E que viu ele na sua frente? A boa Princesa, de rosto pálido e enfermo, diante do forno, cozinhando num tacho de bronze de elegante desenho. Quando o viu entrar, uma expressão de alegre surpresa lhe apareceu no rosto. Depois de lhe ter feito as suas reverências, Sempreverde quis dizer-lhe quem era, mas a Princesa, por gestos, ordenou-lhe com ar de autoridade que ficasse calado, e levou-o para outro aposento, a alguma distância dali.
– Conta agora o que pensas fazer – disse a Princesa, com a fisionomia transfigurada pela esperança.
Sempreverde disse-lhe como se chamava, e contou-lhe o que se passara depois de ela ter sido roubada. A Princesa ficou bastante comovida ao saber dos cuidados de seu pai e de sua mãe.
– Se me restituíres a eles – disse, a minha dívida para contigo será enorme.
Sempreverde prometeu-lhe que, apesar do perigo, havia de levá-la dali.
– Estamos no palácio de um estranho demónio – disse ela tristemente –, tão cruel e violento, que todos os seus criados fugiram. Puderam fugir porque têm asas; eu, porém, não as tenho. O demónio vigia-me dia e noite, e obriga-me a fazer todo o seu árduo trabalho. Agora, foi ferido por um lenhador e ficou muito maldisposto. Quando está encolerizado, eu fujo dele a sete pés.
Nesse momento ouviram um forte ruído, e a Princesa soltou um grito de susto.
– Onde está essa maluca? – Era a voz colérica do demónio. – Ainda está fazer-me a comida, e eu aqui todo este tempo à espera! Ora, eu a ensinarei a trabalhar mais e melhor!
– Oh, afasta-o de mim – pediu a Princesa, enlaçando com os braços o jovem lenhador.
O demónio irrompeu no aposento, soprando raivosamente como um furacão. Na sua cara verde e amarela, os olhos eram brilhantes e luzidios como metal.
Tinha dentes desumanos como um javardo e garras longas e aguçadas como espadas. Foi direito à Princesa, tentando apanhá-la, mas as unhas prenderam-se-lhe na seda do vestido. Sempreverde levantou ao ar o machado e, descarregando-o com toda a força, deu-lhe tal golpe, que a lâmina o atravessou de alto a baixo, e o demónio rolou, hirto, no chão.
A Princesa perdera os sentidos. Voltou a si com a ajuda de Sempreverde, mas sentindo-se ainda tão abalada, que não era capaz de suster-se nas pernas.
– Permiti que vos dê o braço, formosa Princesa – disse ele, com profundo respeito.
Saíram do palácio e voltaram até ao fundo da caverna. Desta vez, a distância pareceu muito mais curta a Sempreverde. A sua satisfação por ter vencido o demónio e salvar do perigo a Princesa tornava-o alegre e feliz.
Quando chegaram ao buraco, a Princesa saltou para o cesto e convidou Sempreverde a meter-se também lá com ela.
– Mas a corda não é suficientemente forte para poder com ambos – observou ele –, e Vossa Alteza tem o privilégio de subir em primeiro lugar, pela sua mais alta categoria.
Mostrava-se tão sem medo ao perigo e tão amável, que a Princesa se comoveu profundamente, dizendo-lhe quanto era grande a sua dívida para com ele, e que, decerto, se casariam quando tivessem acabado aquelas atribulações.
– Ah! – disse o rapaz, duvidando dos seus ouvidos. – Vós quereis casar comigo, que sou apenas um rachador de lenha?
– Ainda que não sejas de alto nascimento – foi a resposta da Princesa –, o certo, é que tens o coração de um grande homem. Toma este vestido de seda que tornou possível a tua vitória sobre o demónio. Será a prova do nosso ajuste, para o recordarmos até nos tornarmos a ver.
Sempreverde deu três campainhadas, e o cesto foi içado.
A Princesa, agitando os braços, tocou com as mãos nos lábios e atirou-lhe um beijo. E ele teve quase a certeza de que, ao mesmo tempo, lhe chegaram suavemente aos ouvidos estas palavras:
– Tu és o meu amor.

***
Umas vezes esperançados e outras receosos, o Rei e a Rainha puxavam a corda ao mínimo sinal de movimento. Pareceram-lhe longuíssimos os minutos. Ao ouvirem as campainhas, prosseguiram, entusiasmados. Todos quantos viviam na cidade ali tinham vindo com as suas melhores habilidades para divertir a Princesa. Por fim, ela apareceu. O Rei e a Rainha estavam completamente dominados pelo contentamento. Rindo e falando, tomaram a filha nos braços.
– A Princesa está salva! – Diziam de todos os lados, soltando exclamações. – Viva Sempreverde!
O Rei ordenou que o feliz sucesso fosse assinalado com um dia de folga e divertimento geral. A única pessoa infeliz, nesse momento, era Wusan. Posto que fosse filho de um homem poderoso, tinha poucas probabilidades de vir a ser amado pela Princesa. Só queria saber de si próprio, sem jamais pensar no bem dos outros. Era mesquinho e cheio de manhas desagradáveis.
– Sempreverde tomará o meu lugar, se o não afasto do meu caminho – pensou Wusan.
Foi ao buraco, desfez o nó da corda em volta da roldana quando Sempreverde ia subindo no cesto, e atirou para dentro da furna uma peça de fogo de artifício, o qual ribombou, saindo de lá um tal barulho e uma luz tão brilhante, que toda gente se convenceu de ser o demónio que voltava para se vingar; e assim, fugiram todos com medo, sem pensarem mais em Sempreverde.
Toda a noite Sempreverde esteve tristíssimo: a queda não fora muito grave e não ficara nada magoado. Mas perdera as esperanças de tornar a ver o dia. Por cima da sua cabeça, a abertura da caverna parecia um rubi vermelho-escuro e, pela madrugada, uma safira azul. Naquela triste situação, não lhe valia de nada abanar as campainhas e gritar.
– Deve haver outra saída – considerou, de repente, de si para consigo.
E voltou ao estranho palácio. Que era aquilo? De algures, muito próximo, chegou até ele um grito de aflição.
– Acode-me Sempreverde! Acode-me!
A voz era fraquíssima. O lenhador chegou ao pé de uma grande porta chapeada de bronze, fechada por um enorme ferrolho. De novo lhe chegou a voz aos ouvidos. Rapidamente, desaferrolhou a porta. Diante dele estava uma estreita prisão subterrânea, de onde pendia um grande dragão amarrado, pelos pés, à parede.
– Liberta-me, Sempreverde, e serás recompensado pelo teu trabalho – lhe garantiu o bicho.
Com grande cuidado, Sempreverde desprendeu-lhe os feridos pés e logo viu à sua frente um formoso mancebo que lhe contou a história das suas aventuras.
– O meu pai é o Rei do Mar. Como a Princesa que por tua intervenção, está agora a salvo, também eu fui feito prisioneiro pelo demónio que mataste. Ontem, quando te aproximavas desta porta, ao ouvir as tuas passadas, dei um grito. Mas os teus pensamentos eram todos para a encantadora Princesa. Fiquei outra vez sem esperança, até que o ruído dos teus passos voltou. Meu senhor Sempreverde, lembrar-me-ei sempre de ti, que me libertaste da prisão. Ser-me-ás tão querido como meu pai e minha mãe, porque a existência que eles me deram primeiro, voltas tu, agora, a dar-ma. Andava brincando alegremente pelo mar – prosseguiu –, e eis senão quando, veio sobre mim o demónio, bradando: «Alcança-me um pouco daquela bebida que faz viver eternamente. O teu pai tem, num sítio qualquer do palácio, uma garrafa cheia dela!» Como não lhe quis revelar o segredo do lugar onde ela estava guardada, o demónio, furioso, prendeu-me com as suas mãos de garras enormes e fez-me sofrer este humilhante castigo que presenciaste.
– Sinto-me muito feliz por ter vindo acudir-vos – disse Sempreverde – mas parece-me que há poucas esperanças de sair daqui, porque não encontro meio algum.
– Deixa-me ver, primeiramente, onde há água – disse o Princípe do Mar. – Isso simplificará mais as coisas.
Nas traseiras do palácio viram um grande jardim com um tanque de água. Ao tocar nela, o Príncipe voltou à sua primeira forma de dragão, e, de súbito, transformou-se numa nuvem de diferentes cores.
– Trepa para as minhas costas – disse ele a Sempreverde – e deixa estar os olhos fechados até que possamos chegar ao nosso destino.
Sempreverde assim fez, sentindo como que um furacão soprar-lhe rudemente aos ouvidos. Primeiramente, teve a sensação de subir, depois de descer. Quando tornou a abrir os olhos, viu que estava numa grande extensão de areal. Diante dele achava-se o mar azul.
– Onde estamos? – Perguntou, surpreendido.
– Nos meus domínios – foi a resposta do Príncipe. – E levo-te à presença de meu Pai, terá extraordinário prazer em saber o que fizeste por mim.
A princípio, Sempreverde não queria ir, receando que sua mãe pudesse estar em aflições, à sua espera. Mas o Príncipe cumpriria a sua palavra. Viu então abrirem-se amplamente as vagas e aparecerem, entre as duas paredes de água, degraus de polido mármore branco. Os dois amigos desceram-nos. Ao fundo da escada, havia uma grande porta e, na empena, em letras de ouro, estas palavras:
PAÇOS DO REI DO MAR
As paredes do palácio eram brilhantes como joias. Dois grandes peixes azuis estavam de sentinela à porta. Quando viram aproximar-se gente, avançaram para ver quem era, voltando logo para trás, como costumam andar os peixes na água, para trás e para diante. Dentro do palácio dançavam rapazes e raparigas, iguais às sentinelas, mas com a única diferença que estes tinham cauda como os peixes e outros animais marinhos. Alguns deles saíram a dar a notícia do regresso do Príncipe.
O velho Rei do Mar, com a sua longa cauda entrançada em anéis, desceu do seu alto trono com delicadas palavras para Sempreverde.
– É natural que o vosso principal desejo seja ver a vossa mãe – disse ele –, e portanto não quero reter-vos muito tempo no meu paço. Deixai-me somente dar-vos qualquer coisa como recompensa.
E, a uma ordem do Rei, avançou um grupo de ostras com cofres cheios de pérolas e pedras preciosas de grande valia, mais belas que todas quantas jamais tinham visto as maiores princesas da terra.
– Não as aceiteis – disse, em voz baixa, o Príncipe, ao seu amigo. – Pede antes a Maçã de Ouro que está ao lado Rei. Vale mais que todas as joias ou que a maior riqueza, pois te dará tudo quanto desejares.
Com profundo respeito, Sempreverde recusou todas as oferas do Rei do Mar.
– Se não há aqui nada do vosso agrado – disse o Rei – então, que posso eu oferecer-vos?
– Ó grande Rei – respondeu Sempreverde –, far-me-eis muito feliz, se me désseis a Maçã de Ouro.
– Aqui a tendes – disse bondosamente o rei do Mar. – Não há nada com que eu não ficasse satisfeito de vos dar.
O jovem Príncipe conduziu até à borda do mar o seu amigo.
– Vamos separar-nos, querido Sempreverde – disse meigamente. – Entristece-me muito isto, pois nunca mais nos veremos, mas saberei novas do que te acontecer. Esta maçã satisfará todos os teus anseios. Basta dizer «Querida Maçã, dá-me isto, dá-me aquilo», e todos os teus pedidos serão realizados.
E, com estas palavras, o jovem Príncipe mergulhou outra vez no mar.
– Querida Maçã de Ouro – foi o primeiro pedido de Sempreverde –, dá-me um carrinho que me leve até casa de minha mãe.
E, num instante, apareceu no areal uma carruagem com asas. O jovem lenhador subiu para ela e foi navegando, como um pássaro, entre as nuvens do céu.
A Princesa estava inconsolável com a perda de Sempreverde e dizia para consigo que havia de lhe ser fiel, esperando pelo seu regresso.
– Ou casarei com Sempreverde, ou com ninguém – disse, com firmeza na voz, ao pai e à mãe, quando eles tentaram decidi-la a escolher outro homem. Ela e a mãe do rachador de lenha passavam agora muito tempo juntas, consolando-se uma à outra da perda do mesmo ser amado. Grande foi, por conseguinte, a sua surpresa ao ver, um dia, descer do céu uma carruagem com asas. E, quando viram sair de lá Sempreverde, não lhes parecia possível que estivessem verdadeiramente acordadas. O rapaz abraçou a sua mãe, que o cobriu de beijos e afagos.
– Que excelente filho! – disse a Princesa consigo. – Com certeza que há de fazer-me muito feliz, se eu casar com ele.
Sempreverde foi à presença do Rei e da Rainha, de todos os principais dignitários e de todo o povo, e contou-lhes as suas aventuras e o estranho modo por que o cesto se despenhara. Era crença geral que tinha sido obra de alguma pessoa ruim.
O falso namorado da Princesa estava agora cheio de vergonha. Sempreverde, querendo saber ao certo quem lhe tinha feito a partida, perguntou à Maçã:
– Minha querida Maçã de Ouro, quem foi o autor daquela maroteira?
Wusan adiantou-se e, ajoelhando perante o Rei, confessou:
– Fui eu que desfiz o nó e atirei para dentro do buraco uma peça de fogo-de-artifício para vos fazer abandonar Sempreverde.
Ao ouvir aquilo, o Rei ordenou que Wusan fosse decapitado. Mas Sempreverde disse que tinha um grande desejo de punir ele próprio Wusan, e o rei autorizou-o a fazê-lo.
– Minha querida Maçã de Ouro – pediu Sempreverde –, faz com que o infortunado Wusan dê mostras de vergonha pelo que fez.
Imediatamente Wusan, profundamente comovido, rogou a Sempreverde que o deixasse ir embora em liberdade, ao que o bondoso Sempreverde gostosamente acedeu, sem mais nenhum argumento.
A Princesa e Sempreverde casaram nesse mesmo dia. Toda a cidade e o Palácio do Rei foram belamente enfeitados e, à noite, iluminados com balões de cores. Sempreverde pode dar à família da Princesa presentes como nenhum filho de Rei podia permitir-se. Agora, que era o dono da Maçã de Ouro, ninguém tinha fortuna nem joias iguais às dele. A própria Princesa parecia completamente pobre comparada com Sempreverde. Toda a nação tomou parte no auspicioso acontecimento: dia e noite, houve todas as espécies de folguedos, e toda a gente estava contente, até Wusan, que parecia o mais satisfeito de todos. A mãe de Sempreverde foi acolhida pelo Rei e pela Rainha, mas o mais feliz de todos era o próprio Sempreverde: o mais adorado ornamento dos seus aposentos particulares era o vestido de seda que a Princesa lhe dera em memória do grande feito dele e do seu fiel amor.

7.10.2011


" Olhai! Vou mostrar-vos o ÚLTIMO HOMEM.
«O que é amar? O que é criar? O que é uma estrela?» Assim falará o Último Homem, piscando os olhos.
A terra ter-se-á então tornado exígua, nela se verá saltitar o Último Homem, que apouca todas as coisas. A sua espécie é tão indestrutível como o pulgão; o Último Homem será o que viver mais tempo.
«Descobrimos a felicidade», dirão os Últimos Homens, piscando os olhos.
Terão abandonado as regiões onde a vida é rigorosa; pois o homem precisa de calor. Ainda amará o próximo e se roçará por ele, porque é necessário calor.
A doença, a desconfiança hão de parecer-lhe outros tantos pecados; é só preciso ver onde se põe os pés! Insensato é aquele que ainda tropeça nas pedras e nos homens!
Algum veneno, de vez em quando, coisa que proporcionará sonhos agradáveis. E muito veneno para acabar, a fim de ter uma morte aprazível.
Trabalhar-se-á ainda, porque o trabalho distrai. Mas ter-se-á cuidado para que esta distração nunca se torne fatigante.
A pessoa deixará de ser rica ou pobre; as duas coisas serão demasiado penosas. Quem quererá ainda governar? Quem quererá ainda obedecer? Eis outras duas coisas que serão demasiado penosas.
Nenhum pastor e um só rebanho! Todos quererão a mesma coisas, todos serão iguais; quem quer que tiver um sentimento diferente entrará voluntariamente no manicómio.
«Noutro tempo toda a gente era doida», dirão os mais sagazes, piscando os olhos.
Ser-se-á sagaz, saber-se-á tudo o que antigamente se passou; desta maneira se terá com que zombar sem cessar. Ainda se questionarão, mas depressa surgirá a reconciliação, por medo de estragar a digestão.
Ter-se-á um poucochinho de prazer durante o dia e um poucochinho de prazer durante a noite; mas respeitar-se-á a saúde.
«Descobrimos a felicidade», dirão os Últimos Homens, piscando os olhos.
Aqui terminou o primeiro discurso de Zaratustra, a que também se chama Prólogo; pois neste ponto foi interrompido pelos gritos e pela hilaridade da multidão. «Dá-nos esse Último Homem, Zaratustra – gritavam –, torna-nos semelhantes a esses Últimos Homens! E fica com o teu Super-Homem!» E povo todo exultava e dava estalos com a língua. Mas Zaratustra afligiu-se e disse para consigo:
«Não me compreendem nada, eu não sou a boca que convém a estes ouvidos.
Vivi tempo de mais nas montanhas, ouvi de mais os ribeiros e as árvores; e agora falo-lhes como se fala aos cabreiros.
A minha alma não ficou nada abalada, é clara como a montanha pela manhã. Mas eles julgam-me frio, tomam-me por um sinistro chocarreiro.
E ei-los olhando para mim e troçando; e não contentes em troçar, odeiam-me ainda por cima. Há gelo nos seus risos.»”

In Frederico Nietzche, Assim Falava Zaratustra

7.03.2011

É Preciso Descaramento!

"Babando sobre sórdida tigela
subtil mercúrio, em pílulas tomado,
jura o dorido, pálido soldado,
nunca mais ver a cara à tal donzela.

Mas, como fados zombam de cautela,
com bom capote, à choupa conquistado,
sobre duas muletas encostado,
se pôs a assobiar à porta dela.

Tal, ajoelhado ao vencedor banqueiro,
com mil votos formais, mas sem virtude,
jurou a paz este infeliz parceiro.

Chegam as horas: resistir não pude;
e da porta a que fui vim de dinheiro
como o soldado veio de saúde."


Nicolau Tolentino, poeta e mestre meninos português do século XVIII

Nunca ninguém imaginou que para fazer tão pouco fosse preciso gastar tanto, mas o popular aforismo judaico-cristão (e semítico) de que com a saúde não se poupa, ou que nela todo o gasto é um investimento, foi levado a um exagero tal que ultrapassou os limites do caricato para entrar nos condomínios do deplorável. Não só porque nesse enredo envolve cada português com 917 €, que é montante que lhe cabe pelo calote que não cometeu, embora tenha permitido que outros o cometessem pelas escolhas que na urna sucessivamente fez, eleições atrás de eleições sempre nos mesmos alternantes do convénio, mas também porque o dito Serviço Nacional de Saúde (SNS) só parece ser bom para quem não precisa dele. E que o digam aqueles que foram fazer operações à vista e ficaram cegos ou, anteriormente, os que por causa de uma transfusão de sangue bateram as botas. Os que entraram num hospital com uma unha encravada e trouxeram de lá um vírus fatal. Os que foram lá medir a pressão arterial e tiveram que recorrer às farmácias para verem esse "ato clínico" consumado.
Daí que muitos se interroguem, não sem razão, sobre onde é que o SNS desbaratou a verba que lhe coube dos sucessivos Orçamentos de Estado (OE) mais o acumulado correspondente ao "buraco" aberto em dívida de 2,7 mil milhões de €, se nem para medir a pressão arterial a uma pessoa serve? Gostava de conhecer as estatísticas, números e natureza dos atos clínicos praticados que justificam tal calote... Quantos carros topo de gama compraram e quantas vivendas apalaçadas fizeram os seus profissionais de “giro”, técnicos ou administrativos? Então, a primeira tranche da ajuda da Troika (1,75 mil milhões) não chega para cobrir a dívida da saúde portuguesa e fica tudo por isso mesmo, sem convocar os responsáveis pelo desmando à barra das responsabilidades?
Eu sei que isto é um país onde até os polícias conduzem sem carta, durante meio século, sem nada lhes acontecer, senão deixarem de girar na rua... Mas é preciso muito descaramento para branquear o atual status quo só porque não se quer melindrar a vaca sagrada da feitiçaria e dos curandeiros da tribo onde, ao que parece, existem pelo menos 1428 profissionais sem a escolaridade obrigatória, todos dias se depara, em média, com 134 queixas formais (reclamações), e a maioria dos conselhos de administração hospitalar não cumpre a Lei do Orçamento de Estado mantendo-se impune e alegremente a auferir o chorudo vencimento e em funções quase vitalícias. É claro que não faltará quem há de apontar o dedo aos políticos deste ou daquele partido, no poder ou na oposição, fazendo deles o bode expiatório desse rol de crimes observáveis diariamente (e à vista desarmada). Porém, de uma coisa podemos estar certos: a Assembleia da República e os políticos portugueses têm culpa de muita coisa inconcebível e vergonhosa que acontece neste país, mas desta vez não foram eles que meteram o montante em causa no bolso. Foram outros, ajudados pelos funcionários benquistos às administrações e direções várias, com quem tropeçamos dia a dia ou sempre que nos dirigimos aos Centros de Saúde e Hospitais da portugalidade corporativista do nosso contentamento. Haja decoro e respeitinho pela inteligência dos cidadãos deste país. Tentar virar o bico ao prego é passar um atestado de desinteligência a cada utente do SNS. É dar-lhe o antídoto certeiro para o inspirar numa revolta cujos contornos e resultados podem sair do controlo mínimo e desejável, pois para quem já perdeu tudo, nada o pode fazer refém. Nem a esperança de uma saúde melhor!

7.01.2011

Precisa de Código!

Hoje fui ao Hospital Distrital de Portalegre – que suponho dar pelo pomposo nome José Maria Grande – para recolher o electroencefalograma que ali fizera dias atrás. Como a minha médica de família me passara uma guia de tratamento para medir a pressão arterial periodicamente e, ao tentar fazê-lo no Centro de Saúde bati com os burrinhos na lama – salvo seja! –, empenhei-me em cumprir aí o aconselhado, conforme indica o bom senso nos doentes que querem ajudar os médicos a ajuda-los. Pois bem: foi outro trinta e um!

Primeiro, mal perguntei às funcionárias do guichet de atendimento das Consultas Externas, foram unânimes e peremptórias: «Não é utente do Centro de Saúde? Então é lá!» (De lá viera eu corrido na quarta-feira, como devem estar lembrados…)

Depois perguntei onde podia levantar o ECC cujo talão de identificação e recolha exibi. «Isso é ali, à direita, peça à pessoa que estiver de serviço.» Não estava ninguém. Nem vivalma, à exceção de dois ou três “clientes” em inequívoca posição de espera. Finalmente filei uma enfermeira que passou e desabafei ao que ia… Foi atenciosa e expedita. «Claro que medimos a pressão arterial. Vá ali ao guichet e peça uma “guia” de tratamento, que eu faço isso.» Naïf como sou, crente, obstinado em acreditar que os serviços públicos servem para servir as pessoas, fui. «Não pode», rerespoderam-me lá. «Não se pode passar nenhuma "ordem" de serviço para medir a tensão arterial porque não temos código para fazê-lo, e sem código não se pode fazer. É preciso uma ordem lá de baixo.» (Lá de baixo devia ser da administração ou coisa no género…)

Fui chamar a enfermeira e confrontei-a com a nova informação que, afinal, era velha para mim. «Vê! Eu não lhe dizia?»

Foi uma pândega. Quatro ou cinco funcionárias num guichet de informações e marcações, mas como precisava de medir a pressão arterial nenhuma podia fazer nada, nem autorizar a enfermeira a fazê-lo. Passos Coelho a estas até devia retirar não metade do décimo terceiro mês, mas o ordenado de todos os meses que ali trabalham, uma vez que nem para providenciar um serviço, que até as farmácias, empresas particulares fornecem à borla, servem.

Não obstante, a profissional de enfermagem demonstrou que o diploma de curso não lhe saiu como brinde na Farinha Amparo, e fez a medição, anotando os valores na guia de tratamento que a minha médica de família passara. Fui servido e pude comprovar mais uma vez porque é que chegámos onde chegámos e a dívida da saúde é aquela que é.

Não percebem onde quero chegar? Acham que falta dizer alguma coisa mais? Então, se não perceberam à primeira o que estou a pensar mas não digo, é porque não estão também a usar o código certo. E o que é preciso é código! De conduta, de ética, por exemplo…

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

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Onde a liquidez da água livre

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