7.19.2011

A CONFISSÃO, por Tchekov

O dia estava luminoso, glacial... Sentia a alma leve como um cocheiro que recebe por engano uma moeda de ouro em vez de uma de prata. Tinha vontade de chorar, de rir, de rezar... Transportava-me ao sétimo céu. Haviam-me nomeado tesoureiro. O que me regozijava não era tanto a ideia de uns pequenos lucros ilícitos. Nessa época ainda não me tornara ladrão e faria em bocados quem me dissesse que, com o tempo, começaria a fazer alguns desvios... Estava contente com outra coisa: com a minha promoção, o aumento insignificante dos meus vencimentos. Apenas isso.
Contudo, existia ainda outro motivo para me alegrar. No mesmo instante da minha nomeação sentira no nariz algo que se assemelhava a óculos cor-de-rosa. Pareceu-me de repente que os homens tinham mudado. Palavra de honra. Passaram, por assim dizer, a ser melhores. Os feios haviam ficado belos, os maus transformaram-se em bons, os soberbos em humildes, os misantropos em filantropos. Eu andava como que iluminado pela graça. Descobrira na humanidade qualidades que nunca suspeitara. Observava a gente, esfregando os olhos, e pensava: «É estranho, ou sucedeu qualquer coisa ou então, dantes, eu era um imbecil e não reparei em todas essas virtudes.» E concluí: «Como é bela a humanidade!»
Kasukov, um dos membros dos nossos serviços, tipo arrogante que tratava com desprezo as pessoas insignificantes, também se transformara no dia da minha nomeação. Veio para mim com um sorriso aberto (que mosca lhe mordera?) e bateu-me no ombro.
– É muito orgulhoso para a sua idade, meu caro – disse-me ele. – Nunca nos vem visitar. Porquê? Faz mal, meu amigo. Há reuniões de moços em minha casa, divertem-se. As minhas filhas estão sempre a perguntar: «Porque não convida Grigori Kuzmich, papá? Ele é tão simpático!» E eu respondo-lhes: «Pode-se arrastá-lo pelos pés? Contudo, tentarei, vou dizer-lhe...» Vamos, não se faça rogado e apareça.
Espantoso! Que lhe teria acontecido? Enlouquecera? Era um ogro, e ei-lo que de repente...
Ao chegar a casa, no mesmo dia, fiquei deveras admirado. Para o jantar, minha mãe servira-me quatro pratos em vez dos dois habituais. À noite, com o chá, deu-me doce de calda e pães de leite; no dia seguinte, outra vez quatro pratos e de novo doce de calda. Ao outro dia, a mesma coisa. Havia convidados, tomámos chocolate.
– Que significa isto, mamã? – Inquiri. – Porque se tornou de súbito tão generosa? O meu vencimento não duplicou. O aumento é uma ninharia.
Minha mãe lançou-me um olhar surpreendido.
– Que vais tu fazer com todo esse dinheiro? Queres acumulá-lo?
Era de embaraçar uma pessoa! Meu pai encomendou uma peliça, comprou um chapéu novo, começou o tratamento de águas minerais e uvas (no Inverno!). Cinco dias depois recebi uma carta de meu irmão. Não me tolerava, as nossas convicções haviam-nos separado: eu era a seus olhos um egoísta, um parasita, não sabia sacrificar-me, e eis porque me detestava. Na carta, li o seguinte:

Caríssimo irmão. Estimo-te e não podes imaginar as penas infernais que me causou a nossa disputa. Reconciliemo-nos. Estendamos a mão e vivamos a paz! Oxalá concordes. Esperando a tua resposta, abraça-te o teu irmão muito afeiçoado.
Eulampe


Querido irmão! Respondi-lhe que o abraçava e que estava encantado com a sua atitude. Na semana seguinte recebi um telegrama:

Agradecimentos. Muito feliz. Manda cem rublos. Absolutamente indispensável. Abraços.
Eulampe


Enviei-lhe os cem rublos.
Até «ela» se modificou. Não gostava de mim. Um dia em que me enchi de coragem e lhe insinuei timidamente que o meu coração não estava satisfeito, chamou-me insolente e riu-se-me na cara. Quando me tornou a encontrar, uma semana depois da minha nomeação, sorriu com lindas covinhas e ar acanhado.
– Que lhe sucedeu? – Perguntou-me ela, fitando-me. – Está com ótimo aspeto. Não quer vir dançar?
Passado um mês, a mãe dela já era minha sogra, tão famoso havia sido o meu aspeto. Como eu precisasse de dinheiro para o casamento, tirei trezentos rublos da caixa. Pode-se tirá-los à vontade quando se sabe que serão repostos no dia seguinte, ao receber o vencimento. Tirei, além disso, cem rublos para Kazusov... Pedira-mos emprestados e era impossível recusar. Dispõe de influência, pode de um momento para o outro correr comigo... (Aqui, o chefe da redação, achando a narrativa um tanto longa, cortou noventa e três linhas, com prejuízo dos direitos de autor.)
A pedido, uma semana antes da minha detenção, ofereci uma festa. Tanto pior! Que bebam, e comam a fartar, já que são tão invejosos. Quantos éramos na função, não contei, mas lembro-me que as minhas nove divisões se encontravam à cunha. Havia gente moça e gente idosa, e havia também pessoas diante das quais o próprio Kazusov se dobrava em dois. As filhas de Kazusov (a mais velha fora meu namoro) deslumbravam com os seus vestidos. Só as flores de que estavam cobertas me custaram mais de mil rublos. Foi muito divertido. A música soava, os lustres cintilavam, o champanhe corria... Proferiam-se longos discursos e fizeram-se brindes. Um jornalista dirigiu-me uma ode, outro, uma balada...
– Neste nosso país não sabemos apreciar os homens como Grigori Kuzmich – proclamou Kazusov após a refeição. – Pobre Rússia, coitada!
E todos aqueles indivíduos, depois de terem comido e estarem saciados, sussurravam entre si e escarneciam-me, com o polegar na ponta do nariz e agitando os dedos, quando eu estava de costas. Mas via-lhes o sorriso, os gestos de mofa, ouvia-lhes os segredinhos.
– Roubou, o tratante – murmuravam, com sorriso malévolo.
Contudo, nem os esgares nem os segredos os impediriam de comer e beber e darem largas à sua satisfação.
Os lobos e os diabéticos são incapazes de ingerir tudo o que aquela gente devorou. A minha mulher, faiscante de ouro e de diamantes, aproximou-se de mim e avisou-me em voz baixa:
– Dizem, por aí, que fizeste um desfalque. Se for verdade... fica sabendo que te deixo. Não poderei viver com um ladrão!
E, falando assim, compunha o vestido de cinco mil rublos... Nessa noite, Kazusov apanhou-me mais cinco mil rublos. Eulampe pediu-me emprestado outro tanto.
– Se o que por aí se rosna é verdade – disse o meu digno mano, metendo o dinheiro no bolso –, então toma cuidado! Não posso ser irmão de um gatuno!
Findo o baile, conduzi-os a todos de carro, aos subúrbios. Acabámos perto das seis horas da manhã. Extenuados pelo vinho e pelas mulheres, estenderam-se nos trenós para regressar a penates. No momento em que os veículos se punham em andamento, gritaram-me à laia de despedida:
– Amanhã há o inspetor! Obrigado!
Minhas senhoras e meus senhores! Estou preso. Estou preso ou, para me exprimir mais demoradamente: ontem era um homem honesto, merecedor de respeito, hoje sou um gatuno, um ladrão... Gritem agora, injuriem, admirem-se, julguem, exilem-me, escrevam artigos de fundo, atirem pedras, mas... por favor, não todos; todos não!

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