À MESA COM A TV
1. FÉNIX
Quando desceu da bicicleta, Isadora do Carmo reparou no vulto escuro e peludo do animal entre as ervas, junto ao muro de pedra solta. Aproximou-se, descontraída, sentindo nos músculos das pernas o descongestionar de alívio ao esforço despendido, e notou que era um canino, enroscado sobre si mesmo. Soube que estava vivo pelos arrepios e tremuras que lhe estremeciam o dorso encurvado. Acautelou o andar, para o não sobressaltar, mas continuou a dirigir-se-lhe determinada e afoita. À distância de uma passada soube que o acordara, porquanto este a olhara mortiço e pesaroso, quase desanimado, como quem já não teme nem espera nada da vida. O negro da íris, baço e sem brilho, ofuscado por uma cortina de felpa lacrimosa, toco-a conforme um SOS de muda aflição. Então agachou-se em bicos de pés, apoiando as nádegas sobre os calcanhares, a fim de o atentar melhor. Pareceu-lhe inofensivo e fez-lhe uma festa com a mão direita, acariciando-o na testa, entre as vistas, com apenas dois dedos: o indicador e anelar grande.
Como a posição e irregularidade do piso lhe dificultavam a aproximação, desceu os joelhos à terra, debruçando o tronco para lhe ficar perto. E o animal cerrou as pálpebras em assentimento e suspendeu o tremor. Sob o pêlo preto, eivado de branco sujo, notavam-se-lhe os contornos da espinha dorsal e costelas, em resultado da evidente magreza. Considerou-o faminto mas não doente, não por ter qualquer prova disso, antes devido à sua intuição protectora. Franziu o sobrolho, ponderando na atitude a tomar, alargou a carícia sobre a cabeça com a palma a mão, e decidiu que o bicho apenas carecia de cuidados e alimentação. Ergueu-se, serena e segura, num gesto comedido iniciando o impulso com o auxílio do braço esquerdo, a mão em mola cónica apoiada no solo, e encaminhou-se para casa, percorrendo a pé o resto da subida até ao Monte, onde habitava. Podia tê-lo feito de bicicleta, mas receou que o cão se assustasse com a geringonça, ao pô-la em movimento.
A meio do trajecto, Isadora torceu o pescoço em viés canhoto, fixando intencionalmente a figura que deixara momentos antes, em soslaio contemporizador, num derradeiro mas simultaneamente esperançoso «volto já», qual promessa subentendida de quem superiormente prefere cumprir do que prometer. O cão, que mais tarde veio a confirmar-se ser uma cadela, olhava igualmente fixa a silhueta que o visitara na manhã arrufada e, embora afastadas por dezenas de metros largos, o que viram uma da outra foram os clarões empáticos que as pupilas de ambas emitiram, quais flashs minúsculos mas de intensa luminosidade e significado, curtos e breves, e todavia febris que nem gritos de vida.
E foi aí, nesse circunstancial e rigoroso segundo, décimo cagagésimo de segundo, que a comunhão afectiva, sentimental, passional, entre os corações destes dois seres se configurou em amor autêntico de primeira vista que, para não fugir à regra, acontece sempre na vez seguinte ao encontro ou registo inaugural. Ao olhar de confirmação e quando ambas as partes se abalançam na entrega, se põem entre si a usual questão «se entrei num sonho, será que estou dormindo ou acordado?» e justamente se declaram rendidos perante a coincidência de terem pensado ou visto o mesmo: o seu ser íntimo e essencial a mergulhar de cabeça nas profundidades anímicas do Outro.
Quem confortara quem? Que esperança eclodira naquele instante? Todos os seres são iguais desde que capazes de prazer e de dor, e se vejam assim interessados em partilhar a felicidade e harmonia globais, numa razão justificável por contribuírem para o equilíbrio ambiental, na salvaguarda pelo respeito e direito à inovação e liberdade existenciais. Portanto, Isadora do Carmo, transpondo a porta de casa para refazer a caminhada anterior, trazendo consigo uma lata de carne picada (em conserva) e o tosco prato de barro, com falhas no bordo estampado com motivos campestres alentejanos, ocres, amarelos rendilhados com formas florais azuis e ceifeiras roliças reluzentes, pressentia estar a executar o inequívoco gesto de uma ordem natural que assiste à simbiose do universo: ajudar a eternizar a vida, seja qual for a maneira com que se manifeste e a diferença que a caracterize, espécie ou género, aparência ou designação, que esta encontre para se revelar.
Não tinha além de treze anos mas parecia uma mulher acabada, tanto nas particularidades feminis que lhe arredondavam o esqueleto, como na postura erecta e desenvolta, compenetrada, confiante, ou na expressividade humana com que reagia à solicitações do quotidiano. O cabelo longo, anelado, escorrido e candente sobre o dorso, castanho com laivos dourados, balouçava na passada acompanhando-lhe o ritmo e sublinhando-lhe a decisão. Estava de férias escolares, em veraneio desocupado, e com o dia por conta própria, livre de adultos até ao entardecer, que era quando estes se soltariam dos afazeres profissionais, fechavam a porta do trabalho para abrir a de pessoas de família. Os do activo, que outros, como o avô Alberto e os vizinhos António Crespo e Alice Rovisco, aposentados todos, raramente saíam do Monte, acrescentando-o com suas discretas presenças como se lhe pertencessem, fossem elementos figurativos de sua natureza e composição, integrando no quadro as linhas mestras duma permanência original e humanizada, tal como no princípio provavelmente fora, enquanto núcleo social de resistência à solidão e isolamento campesinos.
O saibro esboroava-se e rilhava em sussurro sob as solas das botas de saltos rasos, cano curto e atacadores garridos, enquanto antegozava o momento de ver o canino saciar-se. Abocanharia tudo de uma vez ou morderia temerosa e timidamente o repasto? Demonstraria gratidão ou partiria depois de alimentado? Atenderia ele as suas expectativas e interrogações? A camiseta azul marinho com flores estampadas com que protegia o tronco e busto pareceu-lhe subitamente quente e apertada, talvez consequência directa da inquietação que se lhe avolumava no peito. Todavia não apressou o andamento, o que seria uma resposta compreensível perante a ansiedade suscitada. Antes o retardou, estimando que a surpresa lhe não defraudasse o prazer, por antecipação intelectiva. Ou adiantamento. E as saias compridas, de corte e desenho afro-asiático, semelhantes à indumentária cigana, colaram-se-lhe às coxas firmes e suadas, pelo exercício do pedal, permitindo adivinhar a sensualidade latente à sua adolescência não reprimida, mas sacudiu-as maquinalmente, distraída e sem esmero de coquete, somente num descarrego de preocupações irrelevantes.
Mal lhe chegou junto, o faminto saudou-a com subtil bater de rabo na erva rala da valeta. Outrora secos e turvos, os seus olhos exibiam outrossim a húmida luz da familiaridade. Abriu a lata, metendo o dedo e puxando o aro metálico tipo espoleta, e verteu no prato o conteúdo, usando a tampa laminada como instrumento cortante para desfazer o rolo compacto e avermelhado da carne. Agachou-se novamente, em posição igual à que inicialmente adoptara, depôs-lhe o prato à beira das ventas, com o fito de que a intensidade do odor encorajasse o recalcitrante esfomeado a tomar a iniciativa desejada de lutar pela sobrevivência, no que não foi prontamente satisfeita. Mas após escassos minutos, que lhe pareceram bem maiores que os costumeiros da retouça, a reacção esperada adveio numa lambidela desempenhada, pouco convicta, ainda que prometedora.
Então, Isadora regozijou-se e suspirou de alívio. Comprazida assistia ao esforço do canino a esticar o pescoço para o prato, a insistir na tentativa de abocanhar e lamber o acepipe. De princípio bastante contrafeito, sacrificado, acelerou contudo à medida que a salivação o reanimava, para concluir finalmente no abocanhar de um naco mais solto, que engoliu a custo. E isso despertou-lhe a velha sabedoria da espécie: a energia recupera-se consumindo-a, que é a única maneira viável de recapturar o seu teor e impulso.
«Não seria exagerada a quantidade, para quem de há muito não provava sustento? Se fosse uma pessoa, era-o sem dúvida», pensou. «Mas é um cão, e estes estão preparados para comer quando há, até que tenham nova oportunidade de o fazer...», confiou ela.
Contente com o que via, desviou a atenção brevemente, e reparou na bicicleta. Mirou-a sorrateira e imaginou-se a montá-la, a pedalar nela pelas veredas e caminhos da herdade, acompanhada pelo cão, a par de si, em corrida pinoteada e feliz. E a vontade, ou o desejo que tal se tornasse realidade, trouxe-lhe renascida uma imensa ternura que lhe alastrou pelo corpo, lhe preencheu de alento cada átomo dele e se fez líquida por altura dos olhos castanhos de veludo avelã, de onde brotou em forma de lágrimas proféticas, a rebolarem-se cristalinas e reluzentes nas faces redondas de seu oval rosto, estremecidas pelo chorar ridente do catártico bem-querer, enquanto contemplava a comensal, que enfim evoluía a pratos limpos!...
Finda a refeição recompenso-o com festas de mão cheia sobre a nuca até constatar que adormecera. Levantou-se em seguida, recolhendo prato e lata vazia, que o campo não é lixeira nenhuma como o interpretam alguns citadinos, mas o jardim natural, único por sinal, que a biosfera nos dispensou (e em boa hora!), para que dele cuidássemos e usufruíssemos. E retomou o velocípede, embora sem nele se montar, preferindo conduzi-lo a seu lado, estrada a cima.
O muro separava-a das pocilgas, de onde soavam alguns grunhidos dos suínos a registar o seu triunfo, na azáfama de forrar os interiores ao couro. Ao topo dele, estacando o ângulo dos chiqueiros com a parede que circunda o Monte e protege o pátio no sítio onde as casas não servem igualmente de muralha, o eucalipto altaneiro platinava de tremeluzente e oleoso verde os princípios do céu. Mais adiante, marcando a entrada do recinto em volta do qual as casas se dispõem, no lado oposto ao forno, uma figueira abebreira pingando abêberas, vasculhava o ar circulante atenuando a brisa com suas largas folhas. E aí chegada, ponto a partir do qual deixaria de ver a estrada de macadame por onde viera, não resistiu a deitar a última mirada pela valeta, a confirmar se a sua protegida se mantinha no mesmo lugar. Mantinha. Portanto, depois de estacionar o veículo sobre a árvore, dirigiu-se à fonte, cuja carranca de sol bochechudo esguichava água da nascente no ocidente do pátio, chapinhar o rosto e lavar o recipiente em que dera comer ao animal sem-abrigo.
Se ao que naquele momento acontecia, por exemplo pudéssemos dar um rótulo, atribuir um nome, um logotipo, pelo que ali eclodia, explodia, da magia da manhã num monte quase silencioso, onde apenas o rumorejar da água caindo da bica para a tina do fontanário, o arrulhar dos pombos nos beirais dos telhados e o ciciar das folhas sob o efeito da aragem compunha a sinfonia do quadro, lembraria por certo a presença animada de outra forças que não as da alma humana, o grito interior a cocegar-nos os tutanos, formigando esperança e contentamento em cada célula, escolheríamos certamente uma imagem de brasa rejuvenescida a crepitar das cinzas do quotidiano, alguma centelha incandescente no emaranhado dos dias, como feitiçaria de célticas e misteriosas fadas.
Por isso, Isa planava que nem uma águia dentro do universo de si mesma, confortada pela constelação de promessas que lhe estrelavam o íntimo, o que se reflectia no rosto, dando vida às que das faces soletravam os pigmentos duma ancestralidade africana. Desconhecia o que lhe acontecera, mas tinha a certeza de um porém: que se tornara outra. Pôs o prato a secar, no poial do forno, e correu à esquina dele, para se certificar se a mancha escura na relva se mantinha “acesa”. As pernas agiam-lhe sozinhas e a tranquilidade matinal conspirava no enleio apenas identificável para os que sabem que o amor, na sua excelência e plenitude, vai muito para além das espécies e dos géneros, pois é como uma seiva a borbulhar de vida no interior de cada ser animado, pertença ele à flora, à fauna ou à humanidade. Que há um dia em que transborda em lava quente e sai pelas pupilas a buscar conforto e ternura nas borbulhas alheias, que estouram de repleta felicidade como balões de espuma, para retornar multiplicado, ampliado, fecundo e sequioso de novas viagens e escapadelas. Daí que lhe fosse difícil parar quieta um momento, a fim de obrigar-se a pensar na forma de convencer os pais a permitirem-se mais um elemento na família! Porque, enfim…, ela não conseguia deixar de pensar que encontrara o outro lado inseparável do sonho, que é quando as fantasias e aspirações, de miríades que são, confluem para uma realidade só: uma companhia essencial, testemunha e cúmplice própria para cada um dos seus instantes.
Então decidiu que não estava em condições condignas de receber um visitante ilustre com tamanha envergadura e patente, considerando que se achava suada e suja demais para anfitriã, e entrou em preparos de alindamento, duche e mudança de roupa, a abonecar-se como se enamorada, cuidando-se com esmero, no intuito de receber honrada e condignamente o ministerial hóspede: um cão esquelético e abandonado. Exactamente.
Escolher a indumentária começou por ser um divertimento que depressa se transformou em tortura. Qual é o traje oficial para uma pessoa se apresentar perante o animal de nossa eleição? Deve ir a rigor, com a usual austeridade das fardas pardas de ver a Deus? Ou, por outro lado, roto e esfarrapado como quem anda na apanha da azeitona? E o banho... Deve tomar-se com sabonete, loção perfumada ou sabão macaco? O cabelo pode ir molhado e enleado, em propositado desleixe, ou seco, solto, brilhante e penteado? O problema avolumara-se tanto, fizera picardias tamanhas no armazém das conjecturas e saberes, que ela teve - teve, não: viu-se obrigada a tomar a atitude radicalérrima - de seguir o tradicional costume (aliás sobejamente prático) de sacudir os ombros à aflição com a resposta do bom senso: porque logo que algum momento especial nos intimida devemos equipar-nos com o à-vontade diário, utilizando a vestimenta do hábito, aquela que nos fornece o conforto e galhardia de todos os dias. O que nela, óbvio está, passava obrigatoriamente por saias compridas, folgadas, rodadas, largas, e camiseta colorida de tecido fresco e modelo de corte flexível, fácil nas manobras e aconchegante no recato, porquanto naquela época do ano, em que sobretudo se aproveitava da liberdade para crescer auxiliada pela acção e movimento, ora da marcha como do pedalar, na escalada aos penedos e serranias como na subida às árvores de frutos, em cujo cume se encontram sempre os mais desenxovalhados e suculentos, como na ajuda aos idosos nos carregos da lide, não era de descurar o apego à desenvoltura. Principalmente porque amadurecer é um petisco confeccionado, apresentado, servido e ingerido sem cerimónias! E os salamaleques inoportunos apenas amaneiram e atrapalham a presteza a quantos se querem activos, operantes, participativos, assumidos e compenetrados nas tarefas do tornar-se uma pessoa também gente...
Mas resolvida a diferença não era atreita a apreciar os louros do negócio, quer no admirar-se narcísica dos espelhos, como no alisar-se em demoras de vincar os perfeccionismos, e de ápice em ápice cruzou o pátio depois de o ter feito à ombreira da porta de casa, e deste ao acesso saibroso do caminho até ao vulto peludo, como quem tem asas nos pés, ou na alma diz-se, se é esta quem afinal caminha, embora que para mim, que sou fora do tempo e das modas, antes me queiram parecer que elas iam sim no coração, pois que era este suponho quem a impulsionava que nem um balão de ar quente, a fazia voar, ir por cima das coisas térreas e superficiais, a planar, a deslizar lesta, ou a contrariar a importância da gravidade e soturno tic-tac do tempo. Sabe-se!... Ou por outra: desconfia-se.
O bicharouco acordara assim que a ouvira e ensaiara levantar-se, num gesto de gratidão e gentileza, demonstrando que ainda não perdera as boas maneiras, não obstante a degradante miséria em que se encontrava, o civilizado saber fazer sala cavalheiresco de içar o respectivo traseiro quando alguém se nos dirige, a atenção ou a palavra, se caso dela é, mas desistiu por insuficiência energética e falta de ligeireza na operação, visto que Isa quando voa é rápida, e lá que ela voava isso voava, se considerarmos que semelhante andar outra coisa não pode sugerir..., para acocorara-se de imediato a olhos sôfregos, sôfregos e grandes, enormes e sequiosos, perante ele a beber-lhe os seus, com os dedos minuciosos de ternura a nervurarem-lhe o crânio.
De uma oliveira perto, esvoaçou um melro, em piu-piu metálico, rasante, de quem refila contra os incómodos vizinhos, dirigindo-se para a figueira, onde pousou a banquetear-se de abêboras a seu bel-prazer. A nuvem caprichosa, persistente, deu o solavanco que faltava e o sol veio por ali abaixo, jorrando próspero e altaneiro e quente e fagueiro impondo a estação a que pertence. Avaliou os estragos da subnutrição e contabilizou, por expectativa e mentalmente, o número de parasitas que teria por cada centímetro quadrado de pêlo e pele. O interior das orelhas pejado de carraças, o pescoço pulguento e encardido, o dorso seco e áspero da sujidade. «Podia ter tomado banho depois disto...», considerou prática e pragmática. «Mas a água não gasta o corpo e posso muito bem tomar outro banho a seguir a isto!...», concluiu de imediato, afastando o núcleo pesaroso que iniciava a formar-se no cerne das suas cogitações. Então, num «se há trabalho por que espero!» ergueu-se pronta, arrebitada, tentando lembrar-se onde o avô guardava os produtos de higiene e desparasitação dos seus cães e caça... E o canino imitou-a, cuidando que lhe lia a vontade, para segui-la. Adoptara-a como dona, embora lhe fizesse espécie aquela coisa do semblante meditabundo num enquadramento de trajes tão vivos e flanantes.
«Ah, és uma cadela?!», exclamou rindo, o júbilo a periquitar-lhe nos tutanos, reconhecendo quanto lhe agradava constatar a evidência. Não que a defraudasse o facto ou hipótese de ser um macho, considerando que para ela ser não é uma questão de género, mas... bem, dos mistérios sexistas agradava-lhe sobretudo a faculdade de poder acondicionar o mundo segundo a visão pacata que dele tinha, e os cães andavam sempre a urinar em todo o lado, a guerrear, a competir por tudo e por nada. A resmungar, rosnar, a guardar e comandar sem que ninguém lhe encomendasse o serviço. Ao que ela estava muito sensível ultimamente, e que lhe causara diversas e acrescidas inquietações nesse âmbito. Por exemplo, não percebia porque é que os rapazes mais velhos a olhavam daquele jeito, de olho arregalado e sem pestanejar, em perscrutares intimidatórios, quando se compenetrava em alguma tarefa, ou absorta não reparava que o decote lhe mostrava parte das maminhas, as saias no balanço do movimento lhe realçavam o desenho das coxas e quadris, o que lhe provocava fúteis arrelias, irreverências hormonais e sentires contraditórios, gostares e não-gostares simultâneos, no corpo e no espírito.
«Melhor assim», aquiesceu, confirmando-lhe e configurando-lhe a suspeita de que o código de entendimento mútuo só podia sair beneficiado pela circunstância de funcionarem sob as mesmas coordenadas da identidade e discurso biológico. «Já tenho chatices que cheguem lá na escola, com as parvoíces daqueles patetas!...», e encetou a marcha, fisgando a comparsa pelo canto da olhadura, garantindo-se de que esta a seguia, ainda que cambaleante, trôpega, a escarranchar-se nos primeiros passos, vacilantes que nem de vitelo acabado de nascer, dolorosos mas impositivos da vontade, claudicantes mas determinados, periclitantes mas direccionados, indecisos mas com motivo e sentidos definidos, as ventas a arfar alçadas, arquejantes, abertas, a respirar sôfrega os odores de Isa e da manhã, perseguindo-a e tentando manter a distância entre ambas o mais curta possível.
Por seu turno, Isadora, talvez em propositada consequência do apercebimento das dificuldades, retardava o andamento, cozinhando conjecturas e alinhavando projectos, onde as duas coubessem por igual medida. E se a família embicasse em querê-la sim, mas junto aos demais cães, no canil? Não via justo meter a fragilidade carente no mesmo habitat da matilha... «Vão brigar, castigá-la pela sua debilidade, roubar-lhe a ração, fazê-la padecer e rastejar ainda mais», concluiu. Mas «calma», contemporizou, «uma coisa de cada vez. Lá chegaremos!...»
O forno é um casarão enorme com duas divisões apenas. Dum lado, o depósito das alfaias, suplementos adicionais e adubos, sementes e restantes materiais agrícolas; do outro, a cozinha de fora, com o respectivo forno para assados, tulha de cinzas e lareira. Aí funcionara em tempos, efectivamente, o forno a lenha para fazer pão, mas haviam feito obras recentemente, derrubando-o e aproveitando a chaminé para edificar em seu lugar um lareira ampla, de lar em laje granítica, e um forno menor, que permitisse além de cozinhar, também seroar ao seu redor. (Modernices!...) E o restante espaço apetrechado com equipamento condizente à sua utilização: mesa de pedra central, ladeada com bancos altos de madeira e fundo de entrançado bunho, lava-loiças e bancada de confecções, armários de parede, fogão a gás, frigorífico, arca congeladora, enfim, o usual para a serventia que lhe dedicaram as pessoas e os tempos impuseram na satisfação dos gostos, bem como na das necessidades e bem-estar. No inverno faziam ali lume, que estava 24 horas por dia aceso, para curar as carnes dependuradas na chaminé, pois todos os anos matavam dois porcos, em Janeiro, de que faziam enchidos e presuntos, conforme os temperos e moldes tradicionais.
O avô, lembrara-se então, costumava guardar os produtos perigosos da pecuária num armário embutido do depósito, arrecadação de mil coisecas e artefactos, espólios e labuta e cultivo. A ideia de procurar lá com que lavar a lazarenta surgiu-lhe, numa dedução lógica, enquanto se deslocava meditativa e apreensiva, roendo as unhas, arreando biqueiradas nesta ou naquela pedrita menos discreta que sobressaía do saibro, sem qualquer propósito além do descarregar maquinal, espontâneo, das preocupações momentâneas. Pensado e feito confluíram para o mesmo espaço-quando e, depois de ter arengado com a perseguidora num «fica aqui. Nada de modas nem saídas à pedro-palmeiro, ou de fugas à barrela, òvistzsches?!...», de afectuosa familiaridade, em meio por meio de pedido e ordem, com abundância de gestos para reforço à compreensão da cadela, quase maternal, e de quem sabe serem escusadas as recomendações, mas fazendo-as não obstante, unicamente por sentir prazer em dirigir-lhe a palavra, dizer-lhe qualquer frase elaborada para elevar a figurante ao estatuto de protagonista num cenário de gente. Igual. Considerada. E digna de atentadas justificações.
A outra, que se não compreendeu pelo menos obedeceu, sentou-se à porta, sobre os quartos traseiros, o rabo a vasculhar e sacudir a areia do pátio, com o olhar pregado na oradora da retórica doméstica, quase risonho, ou simplesmente enigmático, tipo Gioconda expectante como similarmente sedutora, a cabeça levemente descambada para a esquerda, de quem pensa para consigo «mas o que é que esta quer agora!?...»
No interior, a vista contundida catrapiscando a penumbra, sentindo as agruras do repentino salto da luminosidade diurna para o crepúsculo dos cómodos, deparou contudo com o armário trancado, aferrolhado a cadeado, e angustiou-se sob o baque do coração pressagiador, qual órgão que jamais se abstém de meter o bedelho onde não é chamado e governar os pensamentos com as características palpitações, sobretudo se defrontamos a realidade adversa. «Um'assim!!... Mas onde é que aquele salsichão fora de prazo escondeu a chave?!...», refilou ela contrafeita, dando a mirada geral, a avaliar as perspectivas de resolução. «Ora, o pinante!»
Ajeitou a madeixa. O punho canhoto aperrado de quem se apresta a desferir um soco no destino acrescentava indignação contrastante ao pesar facial. Bateu com o pé direito no chão e inquiriu o espaço circundante; principalmente os frisos, nichos e cantos. Depois flectiu o dorso e gritou mentalmente para dentro de si: «Pensa Isadora!!! Estás parva ou quê?!?» - incitando-se, admoestando-se a continuar as buscas. «O que é que dizem na televisão acerca de proteger os pequenos dos venenos?... Acondicionados e fechados à chave. Pois bem: onde pôr esta de maneira a ficar disponível para todos excepto para as crianças? Num lugar alto, onde elas não cheguem, é claro. E como é que os adultos sabem onde procurá-la mesmo que ninguém lhes diga onde a puseram? Num local óbvio, seguro e prático. Qual é esse sítio dentro duma arrecadação? Pensa Isadora!... Pensa» e, congeminando hipóteses, deitando à cadela aquele fixar mudo de quem implora o milagre de uma solução para os seus males aos únicos que a não podem ter, nem nunca terão, à semelhança do que os demais mortais fazem com os seus deuses, deparou-se de relance com a entrada e deu uma palmada na testa. «Na porta! É isso... Só pode ser!» E dirigiu-se-lhe cabritando euforia.
Descerrou-a meiamente, desencostando-se da parede, ficando-lhe de esquina, tal e qual como veleiro na dobragem do Cabo das Tormentas: de um lado o motivo (a rafeira); do outro, a solução técnica – a chave. Porque é sempre entre a dor e a esperança que se navega… Vai-se de uma à outra num dobrar de lágrimas! Mesmo quando a chave não passa de mera hipótese dela, visão de desejo a que não é alheia o sonho. Portanto, atentou melhor e com demora. Ao cimo, à altura de dois metros e qualquer coisa, dependurada de um prego por retorcido arame de zinco, em jeito de asa curva, a lata cilíndrica avermelhada que em tempo de validade própria embalara tomate pelado de conserva, balançou quando tentou tocar-lhe com a ponta dos dedos, chocalhando metal e substanciando as suspeitas com consolidado alento. Então empertigou-se mais, em bicos de pés, e ferrou-lhe forte piparote que a atirou ao chão. Em resposta pelo trato, dela saiu de imediato uma argola de ferro, que à volta de si tinha diversas chaves de díspares tamanhos e feitios. «Eh, tantas!... Nem sei pra quê… Só preciso de uma!», gargalhou ela, deitando a língua de fora ao mamífero que, ainda que não percebendo patavina da novela que por ora ali se desenrolava, achou por bem dar meia dúzia de sacudidelas com a cauda, à laia de palmatoadas no chão, a fim de aplaudir a actuação da senhorita dos desaustinados pinotes.
O êxito inspirou-a a ponto de ousar escalar na tarimba artística, conquanto tentou subir nela, e de puladora sem trapézio alvitrou-se vedeta canora, pelo que se pôs a trautear as modinhas brejeiras dos estala bombas e romarias das redondezas. A cadelita arrebitou as orelhas para melhor apreciar os dotes da actriz cantadeira, que se manteve na ribalta do folguedo até escancarar as portadas ao embutido. E nas quatro prateleiras deste observou uma infinidade de frascos e frasquinhos, latas, latinhas, caixas e caixinhas, que assentavam praça alinhada nas fileiras compostas, sem qualquer preocupação de design, cor ou tamanho, excepto nas filas duplas, onde os mais pequenos e os maiores por trás, revelavam aprumos de indicação retratista, ou de quem tivesse alinhavado a coreografia para retrato de família ou recordação de equipa para efeméride do torneio. «Outro bico-de-obra!...», reconheceu, franzindo a tez na tentativa de se concentrar, melhorando a acuidade visual com o semblante de quem medita, ou acrescentando ao esforço a expressão esforçada, num reparado momento ascético de melhorar o conceito se lhe representarmos a sinalética adequada: «Calma… Que quanto maior é pressa, mais devagar se lá chega!» Seria?
Pesticidas, herbicidas, unguentos, alquimices diversas e sempre misteriosas; umas reconhecíveis, outras nem tanto, na variedade topo de gama costumeiro que a publicidade nos vai sublinhando para que o inconsciente se não alvitre delas… Enfim, feitiçarias próprias de entorpecer o ambiente com a ajuda do cérebro descuidado!
Mas após leitura sumária de títulos e rótulos, cujas parangonas pouco lhe diziam, tentando aliciar a vontade com a necessidade objectiva, quase desistiu, embora a sua famosa teimosia, que sempre a par andou da natureza dos entraves, lhe aconselhasse a persistência, a instigasse para a obstinada tempera, viu-se e desejou-se remoendo o peculiar «por mal, pior ainda» com que habitualmente brindava os circunstantes que por pirraça a contrariavam. «Seja: se querem “luta”, vão tê-la», e arregaçou as mangas da intenção, disposta a ler de cada um a informação disponível até encontrar algum que servisse. Há pessoas assim. E depois? São feitios!...
Por bem, tudo; por mal, nem a camisa… E daí? Há alguém disposto a fazer correr banhos para mudança futura?... Até que finalmente, três dos frascos obtiveram «satisfaz» na observância dos bonecos e literatura inclusa. Deslocou-se mais para a luz e, sobre o jorro desta, oriundo da entrada, leu-lhes o manifesto de intenções (ou posologia) como quem avalia um programa governamental, para o qual a validade é discutível conforme o que dele se espera, mas não lhe empresta credibilidade superior à funcionalidade momentânea. Um, porém, da aturada pesquisa, por sinal o menos legível, bastante deteriorado no rótulo enodado, onde a supor-se pelas letras que restavam do título (Pec...nol) lhe gerou tremedeira nas vísceras, levando-a a reclamar em prece «é este. Só pode ser este, meu deus» assim meio deslumbrada com tantos animais no bojo das resenhas, ovelhas, cães, gatos, pássaros, galinhas, que a modos de uma arca da Noé em marketing doutras bíblias se tratasse. E, afoita e decidida, ligeira e alvoraçada, não tem peneiras nem hesitações que a retenham, arrumando seguidamente os dois de sobra onde os encontrara, deixando tudo na mesma ordem, a fim de se não notar o arrombamento e invasão de cómodos, aos que ciosos ou prevenidos deles tivessem receada memória, consciência dos perigos e atitude preventiva. Principalmente o avô, que era quem na matéria lhe impunha ais respeito!...
Portanto, confirmada a utilidade e modo de usar do unguento viscoso e espesso, pardalitou entre selhas e tinas de onde tirou um alguidar de plástico, meio resinoso e desbotado no magenta sumido e surrado, que recordava ter visto nas mãos do velhote preferido quando em preparos de barrela para os caçadores da coutada se atinha, ou investia sobre o bardo, pocilgas e arribanas para pulverizar o pulguedo, formigas e similares devastadores da quietude bucólica que sonhava para o seu torrão, no bombear e aspergir cantos e recantos, fisgas e tufos onde lhe palpitassem as parasitárias presenças. Coscuvilhou por trapos um que lhe permitisse a esfrega, considerou o tamanho da cadela e de como enfiá-la quieta no alguidar, perscrutou a sombra da figueira para palco das operações e, ao transpor a ombreira deu uma piscadela de olho ao bicho, sorrindo cumplicidade matreira, num convite velado para que a seguisse, o que incentivado com determinado «anda daí» resultou às mil maravilhas, visto que a canina figura lhe foi no encalço, perseguindo-lhe e pisando-lhe a sombra dançarina. O que nem sequer estranhou, tal era o seu entusiasmo e azáfama, nem acrescentou qualquer mistério ao facto estarem sintonizadas na mesma frequência quando há tão pouco tempo se conheciam.
Depôs o recipiente sob a copa da figueira, alinhavou o plano de sedução, caprichou nos pormenores, questionou a educanda com um irónico «como prefere, alteza: morna, quentinha ou fria?» acerca da água, mas o convincente reparo de retorquir-se saiu-lhe sem demoras de «fria-friinha, que o clima também manda», uma vez que o calor canicular já se fazia sentir àquela matinal hora. A confirmar, assim a trouxe-mouxe que há deveras perguntas que nos fazemos a nós próprios, não para descortinar respostas, mas para nos aliviarmos da tensão ou garantirmos que as decisões tomadas por uma só das partes envolvidas está de acordo com ambas, a ganhar segurança no eco de nos escutarmos a consciência, dissolvendo dúvidas e inquietações entorpecentes da acção, fragilizantes dos motivos comummente acompanham o gesto. Como era o caso!
Debaixo da árvore, apetrechada de trapo e vara, uma cana seca de aproximadamente meio metro, para mexer a água, onde verteu duas tampas do líquido enfrascado, aprestou-se para repetir o que anteriormente vira fazer a seu pai e avô. A solução tornou-se de um colorido leitoso, a feder a creolina, espécie de anti-séptico extraído do alcatrão de hulha que tem um cheiro assaz intenso e activo, incomodante quase, e encaminhou a cadela para a improvisada banheira. Esta ainda regateou, fez questão de não entrar às primeiras, resistiu, sobretudo porque nestas coisas se deve sempre apresentar uma digna submissão, a registar o nosso veemente desacordo com a medida, e para que fique bem claro que acatamos a directiva mas contrariados. Exactamente. Sem tirar nem pôr.
Só que a crueldade de quem nos quer bem não conhece limites... E Isadora, não satisfeita e contente com a conquista da sua entrada no alguidar, foi ainda mais além, submetendo-a outras duras provas, obrigando-a a sentar-se dentro, ensopando-lhe o pêlo sob o qual a pele ardia aqui e ali, expulsando inflamações e picadas de carraças e pulgas, escoriações de matos ou escamas do coçar-se. Aquiesceu. Acima de tudo porque a pressão exercida pela lavadeira sobre o seu lombo, não lhe deixava alternativa, e ela se considerava demasiado fraca para andar a perder tempo contrariando disparates, caprichos de fedelhos impertinentes, de quem mal a conhecia, e nem por sombras sonhava quanto era responsável e audaz, mãe orgulhosa e esforçada, que três anos atrás parira e criara quatro filhotes sem ajuda de ninguém, que aleitara a poder de muita caçada, educara com esmero e autenticidade, até que alguém pouco escrupuloso lhos raptara, surripiara, subtraíra, durante uma ausência da toca, a fim de alimentar-se. Até chegou a esboçar um ladrar de dizer-lhe, ali na refrega o que lhe ia germinando nos tutanos, mas calou-se assim que se apercebeu que a desalmada escaroladora, indiferente ao seu tremelicar, insistia em ensopar-lhe a vestimenta com aquele caldo asséptico, provocando-lhe sérias contrariedades na compreensão do mundo, da vida e essencialmente desses seres estranhos e obtusos bípedes a que estava ligada irremediavelmente desde a sua cachorrice, indivíduos desconcertantes e imprevistos, que tanto a alimentaram e acarinharam, como lhe bateram, abandonaram ou aviltaram, sobre os quais testemunhava amiúde uma consciência controversa e de suspeitas intenções, que a levavam a urdir sobrelevados e filosóficos considerandos onde «não se pode gostar de ninguém… Olha para esta: confiei nela assim que a vi, e eis no que deu! É triste saber que aqueles de quem mais gostamos são sempre os que menos nos merecem!»
Por seu turno Isa, tomando cautelas para que o líquido não entrasse na boca e olhos do animal, ao mesmo tempo que redobrava as atenções sobre orelhas e cachaço, onde os parasitas quadruplicavam em número e actividade, por saberem ser-lhe difícil a remoção com o coçar de patas ou mordedura, não se impedia contudo de magicar numa maneira airosa de convencer a família a adoptar a sua nova amiga. Podia argumentar que os cães do avô não se prestavam a grandes correrias com ela e precisava de alguém que intimidasse os estranhos, evitando que se aproximassem demasiado, pois nunca se sabe ao que vêm… «podia! Mas ganhava o mesmo!... Todos sabem que no Monte há sempre alguém conhecido por perto ou ao alcance da vista» ainda que ocupados, considere-se, uma vez que domesticar a terra, dar-lhe formato de coisa produtiva e útil, se não apresta a divagações ociosas. Podia até aliciar o avô, fazer com que ele dissesse que precisava dela para a caça ou guardar o gado, mas com certeza estaria a entrar em terrenos movediços visto que «os meus cães são os melhores das redondezas. Num raio de 50 quilómetros não há outros como os meus, quer para coelhos, lebres, perdizes ou bicharada. E a maior parte dos vizinhos que caçam, vieram abastecer-se de cachorros aqui», como ele costumava afirmar, seria um pontapé muito baixo e puxado para o seu orgulho de criador, treinador e conservador de raça apurada, o que, como é óbvio, embora gostasse muito da neta não lhe daria convicta margem para manobra. Podia recorrer à mentira, que tinha sido «uma colega que me pediu para a guardar durante as férias, porque não tem onde a deixar. E como nós temos campo, e eu estou desocupada, até me dá jeito» mas adulto ainda não é sinónimo de tanso, e bastava olhar para ela para reconhecer que não era assim tão esbelta e amanhada para uma família que se preocupava em deixá-la segura e cuidada sempre que saía de casa. O certo, se certo havia numa questão destas, era que lhe dessem ordem para a entregar no canil municipal, onde seria abatida caso ninguém a reclamasse, do que não duvidava minimamente, pois se alguém houvesse no mundo com intenção de dela cuidar não a tinha abandonado antes. Podia comprometer-se a tirar as melhores notas da turma, tornar-se a marrona da classe se a deixassem ficar com a cadela. «Sim; é o que lhes vou dizer. E depois, se chumbar algum ano não me venham cá com coisas, porque eu avisei-os…» Mas em seguida lembrou-se das afrontas por que teria que passar a fim de cumprir o prometido e do que o pai costumava dizer acerca deste tipo de compromissos, citando invariavelmente um humorista português qualquer, que teve o desplante de escrever isso para a posteridade, resumindo-o numa tirada de «nunca te comprometas demasiado. O próprio Deus já não chega para as encomendas», como que a alertá-la para os inconvenientes das promessas que dificilmente cumpriremos, a não ser que Deus no ajude!
Por conseguinte, nada mais havendo a tratar, deu o acto por encerrado com o peculiar «a ver vamos, como diz o cego» das tarefas aziagas, empresas de futuro incerto e prognósticos impossíveis, escarolou a rafeira, teceu projectos de passeio pelos campos na tarde próxima, na intenção de gozar a companhia da outra enquanto pudesse, sem expectativas nem ilusões. Fez das tripas coração, arrancou raízes profundas, cerziu a malha das felicidades possíveis com as linhas da elasticidade e do que for soará, onde as antecipações, ainda que generosas, serão sempre de menor resolução e menos prazenteiras que o momento presente.
Findo o banho prendeu-a a secar, presa à porta do forno, onde não pudesse espojar-se na terra, e foi arrumar o quarto dela. Precisava daquele tempo de solidão ocupada para se desabituar da ideia de ficar com ela para sempre. O silêncio do Monte, algo que apenas constatava quando se sentia abocanhada pela necessidade de tomar decisões fundamentais, prescritas numa responsabilidade que (ainda) lhe não competiam, notava-se essencialmente se as galinhas cacarejavam, ou os pássaros sobre a nespereira junto à fonte trinavam a sua sede, sobrepondo o seu piar ocasional ao rumorejar constante da água a cair da bica. E foi quando ao sacudir dos lençóis à janela, reparando como o sol se espelhava no pêlo da cadela, que serena a fitava com a meiguice peculiar dos olhos de castanho melado que a caracterizavam, que se apercebeu do seu renascimento, como se daquela coisa enrolada, suja e amarfanhada que vira na beira do caminho, outro ser faiscasse renovado e repleto de singular encanto... Então, uma das muitas histórias malucas que o avô lhe contava, que impreterivelmente começavam por "Naquele tempo, quando os deuses ainda habitavam na Terra e conviviam com os homens no seu dia a dia..." veio-lhe de repente à memória, e tão clara e viva era, que parecia voltar a ouvi-la segundo cada palavra que ele lhe dissera. Falava de uma ave mitológica, denominada Fénix, que vivia infinitamente porque, segundo a lenda, ao queimarem-na tinha o condão de ressuscitar das próprias cinzas.
Sorriu perante o efeito duma tonteria assim, magicares que só mesmo duma cabeça complicada como a daquele avô desnorteado podiam surgir, e, com os cotovelos apoiados no parapeito, o gesto de sacudir a roupa da cama em suspensão de quem esqueceu o que estava fazendo, gritou-lhe: «Hei, Fénix! Fénix!...» Ao que a rafeira latiu como resposta, saracoteando a cauda, empinando-se nas patas traseiras, emprestando ao momento a afectuosa retribuição que o chamamento carecia. Retornou para dentro, a acabar de fazer a cama, mas os pensamentos esvoaçavam-lhe na ideia, como morcegos numa sala iluminada à procura de um recanto escuro onde pudessem esconder-se. Dirigiu-se novamente à janela e repetiu: «Fénix! Fénix!»
E obteve o latir igual, os mesmos pinotes, o reconhecido contentamento que anteriormente identificara. «Só pode ser... É este o teu nome», concluiu, deitando-lhe a língua de fora em retouçado descaramento. Pelo que se apressou, pois a caraiva da tarde já lhe formigava no corpo, na ansiedade de cumprir-se facto consumado de cada minuto.
***********
Noitinha já, regressara enfim, afogueada e faminta. A mãe punha a mesa para o jantar, o avô peganhou com ela com aqueles «'tão periquitita!... É até à noite na boa-vai-ela, não?», e o pai mandou-a lavar as mãos para comer. Da televisão sobre o frigorífico, onde todos a podiam observar enquanto comiam, escorriam sobre os cómodos da dependência do forno, utilizada como cozinha de fora, os arregougos musicais do indicativo para o telejornal. O avô recomendou ao pai um «não te esqueças de amanhã, lá no Grémio, comprar sementes de couve sete-semanas que está na altura de fazer os canteiros», ao que ele anuiu com «esteja descansado, que não esqueço», e a mãe mandou-os calar porque queria ouvir as notícias. Isa, ao aperceber-se disso, descansou dos receios, respirando solto e pensando para consigo aquele típico «nem lhes deu o cheiro!...» que acompanha as preocupações infundadas. Tinha prendido Fénix nas arribanas, por detrás de alguns fardos de palha, depois de lhe ter ajeitado como cama duas braçadas de troços de feno que sobravam da manjedoura da mula, onde a fidalga se enroscou lambendo-lhe a mão, em despedida. Comer a sopa, actividade sem mastiga que fazia com despacho, por mor das arrelias com que se deparava, demorou mais que o costume e valeu-lhe reparo materno de «vá depressa, lingrinhas, que quero servir o segundo», alertando-a do descuido, de que temeu consequências pelo olhar circunspecto e de estranheza que o pai e avô lhe deitaram, a sublinhar o propósito da mãe.
«Procura mas assobia, Isadora» recomendou-se mentalmente, «senão estes pelintras ainda te notam a tramóia!...», jogando soslaios em redor, buscando motivos que lhe encorajassem a confissão, porque essa coisa da mentira custava-lhe a praticar, tentando encontrar no acaso algo útil para resolver o problema. Cruzava e descruzava as pernas, balançava amiúde a cabeça, ginasticando o pescoço, na intenção de dissolver a tensão que a agitava. Sentia que devia agir, mas não lhe estava nada fácil fazê-lo. E os bichos carpinteiros não ajudavam nem um bocadinho!...
Mas foi então, que o pivot do noticiário lhe serviu a sobremesa: do Quénia, que nem sopa sobre mel, lhe relatava que uma cadela parida de fresco, enquanto caçava na floresta o sustento para poder amamentar os filhotes, tinha encontrado um recém-nascido humano abandonado, que transportara para junto da ninhada, onde o depusera como se de um filho seu se tratasse. A família, que parara de mastigar perante o ocorrido, em que o «um'assim?!...» do avô evidenciava o espanto geral, ganhou vida e entabulou consentânea conversa acerca do facto. À mãe impressionou sobretudo o sentimento maternal do bicho. O pai indignou-se com a circunstância de o animal também ser um daqueles aviltados a quem o dono fizera igualmente o que os progenitores da criança lhe haviam feito. E o avô reconhecia o impropério que era chamar animal a um ser que dera tamanha lição de humana maternidade aos homens.
Estava lançado o mote que tanto precisara! Daí que, comentando «chiça! Os cães são mesmo amigos das pessoas, não são? Isto é uma história de alto lá!», provavelmente querendo dizer na sua que o respeito por quem nos respeita a vida e ajuda deve ser mantido por ambas as partes, para encaminhar as águas prò se moinho, obrigou cada um a pronunciar-se acerca do caso, a ver se diziam o que esperava usar na demanda pessoal. O pai entusiasmou-se com «pois é! Esta gente que só vê os fins em desfavor dos meios, devia ter um pouco mais de atenção à maneira com se safa e sobrevive... Até porque uns sem os outros, conforme a natureza nos equilibrou, o futuro fica subtraído nas possibilidades de se concretizar: se todos fazendo falta na sua construção, plantas, animais e homens, também todos temos direito a fazer-lhe parte», numa tirada sentenciosa que certamente se coadunava com o feitio e sentido didáctico de educador que nunca descurava. A mãe sublinhou quanto «a fome da cadela, mesmo sob o imperativo de amamentar as suas crias, não foi o suficiente para esta esquecer o apelo de socorro maternal do bebé. Pelo contrário: adoptou-o como filho e levou-o para ao junto da sua ninhada, disposta a repartir com ele o seu leite. A dar-lhe o berço e idênticas condições de sobrevivência que não sonegava aos seus cachorros», como que a sustentar que a responsabilidade de qualquer adulto é cuidar da eternidade da vida, seja em que forma esta se manifeste, e de como a simbiose entre espécies diferentes se subjuga ao intento comum de a não deixar perecer. E o avô aproveitou para pôr as contas em dia pelos reparos e admoestações que lhe dirigiam por apaparicar tanto os seus animais, esclarecendo oportuno que «agora vamos a ver se param de se meter comigo por eu gastar um dinheirão com os meus cães! E de deixar de ir de férias com vocês para os não abandonar! Até porque não é só por eles que cá fico, é também pelas vossas coisas e criação...», lançando semente a fim de evitar acompanhá-los para o litoral durante a última quinzena de Agosto. Os pais olharam para ela, a pedir apoio, visto que se avizinhava o velhote estar prestes a levar a dele avante, mas ela fez que não viu, e antes aproveitou a deixa para abreviar a confissão partindo do pressuposto condicional como garantia de viabilidade: «Então, se não vai de férias connosco pode também tratar da Fénix, a minha cadela. Quem trata de seis trata de sete... Que a mim tanto me dá ir como ficar cá consigo, se for preciso!»
«Da tua cadela??!!!!....», exclamaram os três em uníssono, arregalando os olhos, perante a surpresa e forma como foi comunicada. «Mas...», ainda tentaram contrapor, só que ela não lhes deu tempo e acrescentou: «Pois. Vou buscá-la agora mesmo para verem como é bonita.» E saiu a correr, no dito-e-feito que a circunstância impunha e de que não abdicava. Ao regressar...
Bem: o que disseram na sua ausência e como reagiram, isso não sabemos. O que não há dúvida, é que quando viram o animal ficaram tão aparvalhados, que da canção preparada não trautearam mais que o refrão, posto que cada um o concebia diferente, embora almejasse significar o mesmo.
«Bonita?!?...», indignava-se o Albertinho das caçadas, fitando a neta e exemplar canino, com cara de quem acabasse de ouvir dizer que Deus é de pau.
«Mas!...», continuava a mãe, que embaçara na adversativa, que nem pinto em estopa e de mãos nos quadris tentava apanhar o fio à meada dos acontecimentos.
«Vamos lá a ver: tua como? Tua como? Tua como?», ripostava o pai, apresentando a sua melhor versão de vinil riscado, a rodar sob agulha romba. «Tua como? Tua como?»
Todavia, Isadora e Fénix, escorreitas no seu desplante, apenas serenas e divertidas, mantinham a postura descarada e airosa que infringe todas as desrazões que a razão conhece. O chefe de família, note-se, ainda tentou reverter a situação, adiantando um passo de oratório braço em riste... E só falhou na retórica, porque cometeu o erro de perscrutar a mulher, que perante o SOS dele, em vez de o incentivar ao argumento, enfim descolou a direita do quadril para pousar o dedo indicador sobre os lábios, de onde jorrava sibilino «pssschiu!» acompanhado na intenção de notório encolher de ombros.
Ao que Isa sem delongas, fez questão de legendar a coreografia: «Visto que são essa as únicas palavras e boas-vindas que têm para lhe dar, vou levá-la prà sua cama, que amanhã, bem cedinho, queremos bicicletar umas voltas pelo monte. E pela fresca, que não fizemos mal ninguém!»
Só que o avô, também quis botar discurso, para se refazer de umas conjecturas que andava a congeminar há muito, acerca desse hábito generalizado de se comer em frente ao aparelho: «Afinal, a televisão, ainda serve para qualquer coisa... Cá me parecia!» Outra guerra que vencera. Não há nada como a paciência para confirmar a hipótese da experiência cuja tese é tida por indesmentível. E ele sabia-o, que em política era mestre sem nunca ter lido Maquiavel!
Convite para partilhar caminhos de leitura e uma abertura para os mundos virtuais e virtuososos da escrita sem rede nem receios de censura. Ah, e não esquecer que os e-mails de serviço são osverdes.ptg@gmail.com ou castanhoster@gmail.com FORÇA!!! Digam de vossa justiça!
5.18.2005
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