A SINISTRA
Entre o arvoredo da alameda do solar dos Tocados, uma sombra esgueirou-se. Lesta, furtiva. De silhueta feminil, coberta por gabardina creme. Sabia-se abrigada das vistas indiscretas dos comensais. Mas ao dispor de quem a observasse de fora do gradeamento. E tal incomodava-a sobremaneira.
Viera ao entardecer, por julgar assim mais fácil de despistar qualquer semelhança com Vitória, que lhe desmascarasse o parentesco. Preferia ficar incógnita. Pelo menos até poder encontrar-se com ela a sós e explicar-lhe, dum modo credível, primeiro a sua presença, e depois as razões por que a abandonara tão pequenina, no santuário, aos braços dum desconhecido. Mas a tarefa avizinhava-se-lhe de incalculável dificuldade.
Chegara na camioneta da tarde, por volta das cinco, quase sem bagagem, só com um saco de plástico onde trazia o pijama, duas mudas de roupa interior, escova e pasta de dentes. E uma mala de cabedal a tiracolo, em castanho desbotado que nunca largava. O telemóvel, algum dinheiro em nota e moeda trocada, cartão de crédito e agenda electrónica. Para não levantar curiosidades, nem suspeitas. Demais a mais, que chovia e fazia frio, o que lhe possibilitou recorrer de um lenço de cabeça de seda castanha, a condizer com a sacola de cabedal.
Não dera nas vistas, e assim queria manter-se – em anonimato. E se em verdade Vitória a não conhecia, ela tinha-a acompanhado mais ou menos discretamente nos momentos importantes, como passagens de ano e classe, visitas de estudo e férias, viagem de finalista, recebimento de diploma e exame para a carta de condução. Ao princípio receosa, numa timidez e sentimento de culpa que a atabalhoavam, mas evoluindo lentamente em à-vontade, ousadia e maquiavelismo. Até que ganhara coragem e decidira abrir o jogo. Primeiro por iniciativa própria, todavia no presente por temor. Medo por ela, ou do que lhe pudesse via a acontecer se o seu pai biológico descobrisse o paradeiro, agora que já tinha conhecimento da existência duma filha que nunca quisera e jurara matar. O que sem dúvida faria, e para tanto puseram diversos dos seus caninos pisteiros na peugada.
Tinha que avisá-la do perigo que corria. Tal como igualmente carecia de justificar-se e receber o seu perdão pelo abandono. Porque dum momento para o outro podia tornar-se tarde demais. E a cada hora, cada minuto, mais perigoso se tornava aproximar-se dela. Alguém lhe montaria guarda para a eventualidade, embora remota, de ela lhe desvendar o seu paradeiro. Uma ponta solta, que poderia transformar-se no fim daquela por quem tanto sofrera para salvar.
Se como ela Vitória era ruiva e de olhos verdes, rosto oval pintalgado de sardas minúsculas, que atribuíam um ponteado de trama gráfica ao aveludado da pele rosada, quem a não tivesse conhecido anteriormente, dificilmente lhe atribuiria semelhança por essa via, pois que pintara o cabelo de preto azeviche e pusera umas lentes de contacto que lhe alteravam a cor da íris para castanho-escuro, quase negros, e que aliás complementara com intensivo bronzeado artificial. Contudo, há traços que dificilmente se apagam, sem plásticas radicais ou deformações acidentais. E esses, como a testa abaloada e alta, as arcadas supraciliares de fundo e marcado relevo, o pescoço esguio, o queixo levemente arrebitado e o nariz cleópatro, o jeito de andar e os trejeitos de ave assustada que lhes eram comuns, mantinham-se visíveis e detectáveis a qualquer observador avisado. Mas o pior era que, se algum dos farejadores que o pai pusera em sua perseguição, aportasse a Casal Parado com uma fotografia dela da época em que engravidara, cuja idade seria idêntica à que a filha teria actualmente, por volta dos 23 anos, e a mostrasse aos habitantes, inclusive aqueles que jamais haviam privado no solar, todos seriam unânimes em afirmar que a da foto outra não seria senão Vitória. O que representava uma enorme derrota para o seu esforço.
Então decidiu-se. Contornou a ala direita do palacete dos Tocados, sempre ao abrigo da vegetação, e experimentou a porta das traseiras, a da cozinha, que a debalde tentou abrir. Fez o mesmo à janela, dando-lhe breves mas convictos safanões, e esta cedeu. Cedeu e ruidou, num guincho de dobradiças com falta de óleo. Esperou que algum barulho ou presença afectassem tê-la denunciado, em imobilidade de estátua de feira, e só depois de certa que não tinha sido notada, é que ousou escalar ao parapeito com o auxílio duma caixa de cerveja vazia. Saltou para o interior e aquietou-se, não apenas para se habituar à escuridão da dependência, mas também para melhor escutar de onde e em que qualidade eram os ruídos de presença, que se faziam ouvir ora em surdina, ora com desenvoltura e fundo musical.
Afoitou-se à porta de ligação com o bar, entreabrindo-a, e espreitou, tentando ver ao máximo sem ser vista. Descortinou dois homens de perfil posterior, sentados a uma mesa comprida, que emborcavam cerveja enquanto olhavam a televisão, e de cuja eram os sons que escutara ao saltar para o interior. E uma mulher, de porte senhoril, xaile traçado e semblante sereno e altivo, que os imitava, embora que mais visível porque de lado. Retraiu-se, atentando para não fazer barulho, e cuidadosamente descalçou os sapatos, que meteu nos bolsos da gabardina, enquanto ginasticava os dedos dos pés, ao aperceber-se do frio das lajes do chão. Um arrepio percorre-lhe o corpo, mas que não adicionou importância maior.
Ao seu lado direito, entre a escadaria para o piso superior e o balcão, uma pilha de caixas de refrigerantes, a que Tony Emanuel subtraía de tempos a tempos uma, que tudo indicava ir depositar na despensa, encobri-la-ia dos olhares, e o pilar central permitir-lhe-ia alcançar daí a escadaria sem ser detectada, se fosse ligeira e silenciosa no q. b. que a operação requeria. Assim, mal o troca bilhas se apoderou duma grade, correu na sua retaguarda, agachou-se ao abrigo das restantes, e em dois pulos alcançou as escada, que subiu a quatro membros, sob a protecção da murada de corrimão. Mas se não foi vista por ninguém, o facto não se deve tanto à sua ligeireza e instrução de guerrilha, quanto à hora e momento, que providenciara a transmissão televisiva da telenovela diária.
Finalmente a recato, ergueu-se bípede como no princípio, em verbo de busca da sua doce, inocente e ingénua filha. Sabia encontrá-la aí, sobretudo porque a observara da rua, a umas das janelas sacudindo um tapete felpudo. Percorreu a penumbra do corredor, até uma das altas portas, por cuja rasteira fresta se escoava ténue esguicho de luz. Encostou-se-lhe como quem se masturba na maçaneta, espalmando-se nela, tentando escutar o máximo através dela, dado ser-lhe impossível ver por ela com igual resultado. E em seguida rodou o fecho de uma vez, empurrou para cima, içando a porta para que não rojasse no chão, e entrou decidida. Se o pior ainda estivesse para vir, ali estava para o receber de frente e faces abertas. Ânimo leve e busto erguido.
Vitória estava de cu para o ar, vasculhando na última gaveta da cómoda por um par de cuecas lavadas. O tou-tou arregaçado, as nádegas vermelhuscas e húmidas da recente esfregadela, a púbis perlada de cristalinas gotas de água. Angelical e incauta, nem se apercebera da entrada da outra. Esta tossiu, para fazer-se notada.
«Deixa, não te preocupes: sou tua mãe.»
A surpreendida surpreendeu-se ao ouvir a voz duma estranha, mas não se sentiu com moral nem posição para gritar. À progenitora também as expectativas tinham saído goradas: é que não fora essa a situação que idealizara para lhe revelar o segredo da maternidade. Um momento sonhado anos a fio, sublimado e antevisto, quase sempre intensamente reforçado pelos finais dos filmes da TVI. Principalmente porque sabia que nunca seria possível uma aproximação mais populista, em formato Ponto de Encontro com souvenir, beijos e abraços, acompanhados à palmatoada e comovidos acordes. Mas a vida é o que é, e raramente são os protagonistas a escrever o guião.
«Quem é você?» Foi a única frase que lhe ocorreu dizer. Os braços suspensos, num movimento interrompido, o queixo quase a tocar o ombro esquerdo, os olhos num viés de esbugalhante irritação.
«Sou tua mãe, querida», repetiu a aparição. «Maria da Conceição do Imaculado, tua mãe.» Insistiu, apresentando-se.
“Provavelmente é piada”, teria a soberana pensado se ao momento estivesse em posição de o fazer. Contudo ergueu-se, baixou o tou-tou de tafetetá, que aliás nem era dela, pois fora Rebeca que lho emprestara para ela mais de acordo com a coreografia doméstica fazer a limpeza do quarto, alisou-lhe os folhos e experimentou enfrentar a intrusa dentro dos parâmetros duma igualdade possível.
«Muito prazer. Vitória Emanuel Tocado», retribuiu ela, apresentando-se também. «Como entrou aqui?»
«Pela porta, depois de ter subido as escadas» de gatas, apeteceu-lhe adiantar, a fim de se justificar, tal como de noticiar como à breves minutos atrás também se vira em indecorosa pose. Mas não o fez e preferiu explicar-lhe o móbil da incursão. «Estou aqui porque sou tua mãe, e o teu pai já sabe que existes.»
«Pois sabe. Foi ele quem me criou», sublinhou com desdém a sublimada, referindo-se a Tony do achamento.
«Não, esse não é teu pai», afivelou Maria o raciocínio, para melhor apresentar a exposição dos factos. «Esse apenas te recolheu com um dia de vida.»
«Mas não morreu. Como sabia que ele estava doente? Que os médicos lhe tinham dado nem mais um dia?» Cepticou a jovem.
«Não sabia. Tu é que tinhas um dia», esclareceu a da concepção. «Nasceste nos arredores, na Quinta de Santa Clara onde passei seis meses refugiada, em turismo rural de habitação. Temia que teu pai me fizesse abortar. Ou pior ainda: me limpasse o sarampo.»
«Ah, então é por isso que fiquei toda pintalgada e sardenta... Ainda por cima estavas doente!» Lamentou-se a desafortunada. «E como temias que eu te morresse no colo, meteste-me nos braços do primeiro que apareceu!...»
«Não, filha; não», implorou Maria aflita pelo rumo que a conversa estava a tomar. «Senta-te, querida. Deixa-me explicar. Eu conto-te tudo.»
E sentaram-se ambas sobre a cama. Maria, segurando umas das mãos de Vitória entre as suas, e a emoção embargando-lhe o desembaraço da voz.
CAPÍTULO UM
(...) Não perca! Já está pronto a servir; basta você encomendar, para cair bem quentinho!...
Convite para partilhar caminhos de leitura e uma abertura para os mundos virtuais e virtuososos da escrita sem rede nem receios de censura. Ah, e não esquecer que os e-mails de serviço são osverdes.ptg@gmail.com ou castanhoster@gmail.com FORÇA!!! Digam de vossa justiça!
5.25.2005
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