ALMA
Manuel Alegre
(1995)
A paródia de formação é um típico cervantino de estilo,
autêntico romance de cavalaria de quem atravessa a infância montado no cavalo
de pau da família considerada, honrada, por bastos pergaminhos justificada, e
generosa, do establishment provinciano. É aquele olhar distante sobre a guerra
de 42-45, mas interessado, aproveitado politicamente pelos clientes da Loja,
que fisicamente tanto é o estabelecimento comercial e de convívio, como
igualmente o centro espiritual da república, ou da sua laicizidade maçónica e
da resistência clandestina. Confirmação de como Quixote deambulou por cá
deixando geração apreciada. E uma breve história da sonegada participação com
os situacionistas do Manholas, aos botas-de-elástico e aos solas Ceilão, que
iam sustentando o regime à custa do atraso e do medianismo supersticioso
aldeão.
Romance numa só voz para o adolescer em Alma, reflete
contudo nela a expressão e peculiaridades das gerações de 50/60, assentes nos
pilares da família, escola, loja e retouça com a natureza, também esta
repartida por quantos elementos a compõem (rios, caça, pesca, pássaros, como
natureza humana: política, esotérica, sexual, bélica, desportiva e relações de
amizade), que perfizeram um homem e seus valores, implantando nele o respeito
pelos demais, a necessidade de alterar a ordem, principalmente quando ela está
errada, no apreço pela justiça, liberdade e democracia, sempre inspirada nos
itens da solidariedade e coesão social para despeito da caridadezinha
regimental e canasteira.
Embora raramente me convençam os textos literários dos
rabequistas, sobretudo se saídos da filarmonia partidária e/ou ideológica, o
que é certo é que esta novela não se atém a ser aquilo que parece. Daí que me
sinta na obrigação de a ressaltar como exceção, considerando que o seu autor,
além de poeta combatente, democrata de torna-viagem pelo 25-A depois de ter
exercido significativa ação revolucionária no exílio, emprestando dedicação e
voz a veículos de comunicação, nomeadamente na Rádio Argel, foi (quer dizer: é)
também escribalista, conforme a definição de escribalismo que aqui se sustenta,
não obstante o seu campo de ficção se estenda para lá da estrita conjugação narrativa,
prolongando-se nele enquanto modo de intervenção social.
Porque exceção justificada, além de obra que carece de
atenção cuidadosa e destacada, não obstante esse jeito de contrabandear deus e
demais obscuridades relativas através da tonalidade dos provençais e
gentis-homens que povoaram o universo cavalheiresco em contos, romances,
cantigas e novelas, na formação de quase todos os aspirantes a principezinhos
deserdados da monarquia, que alimentava a fadação com que as mães predestinavam
seus filhos para arautos da esperança, anexando-lhe sempre a distinta marca dos
eleitos para missões superiores, nobres, semelhantes às que inspiraram os
cavaleiros do ciclo arturiano, combatentes do bem e da justiça que, sob o
pendão da cruz, defenderam o santo sepulcro ou se amuralharam em Malta, de onde
demandaram o pronunciamento da uma nova ordem terrena.
Acima de tudo por ser Alma o lugar inicial para o cúmplice
entrosamento na grande loja que é o mundo. Este e o outro, se o houver. Pois
nunca o homem acontecerá neles por acaso. Que normalmente isso, a humanidade e
humanismo que forjam o indivíduo, são atributos de pelejada conquista, frutos
por poda tida nos anos antecedentes à formação académica, que aliás a
prepararam, por mais completa e importante para a sobrevivência da pessoa que
esta se venha a revelar vida fora. Há quem prefira usar o termo podar
trocando-o pelo seu eufemismo de educar, na esperança de dar aquela
pincelada de civilização em algo tão vegetativo, como o processo de
aprendizagem; porém, em termos de Alma tal equivaleria a desvirtuar por
ró-có-quismo maneirista a formação de qualquer personagem tão empenhadamente
perto da natureza ancestral humanista ou humanitária.
Portanto, este livro é a visão adulta, avaliada,
perspetivada, parodiada de uma poda que resultou bem, prescindindo de enxertias
extemporâneas a fim de manter entroncada a genealogia da geração que se
empenhou em sobrevier ajustando a realidade aos seus ideais, promovendo e
multiplicando as possibilidades de vida em liberdade aos seus vindouros, sob a
interpretação de alguém que deveras lhe pertenceu, mas sempre, incluindo quando
nela participou ativamente, a viu, a observou, se lhe apresentou
predestinadamente distanciado. Quem provavelmente melhor saberá os porquês de
tal postura e atitude, anda à hora por paragens alheias ao mundo, e talvez se
mantenha absorto falando de caça com entusiasmo ou apontando a mira a alguma
lebre celestial ou perdiz astral, que se lhe levantem na frente, quiçá na
companhia de Aquilino Ribeiro, que também se perdia acostumadamente nesse
género de miragens calcorreando as fragas e serranias, sem receio de vender a
Alma por quaisquer cinco réis e gente.
Precisamente porque depois da Alma visitada mais fácil se
torna compreender a estirpe dos homens que a edificaram na rústica pedra, a
teceram nos vilares da transformação operativa, tal qual as terras do despertar
fizeram e onde tudo o que lhes acontece também nos acontece, pelo como e porque
nelas participamos ou a elas vemos, e nos marca para sempre, de forma
definitiva, balizando com datas inesquecíveis, interregnos de tempo a partir
dos quais nunca mais voltaríamos a ser apenas "aquilo" ou aqueles que
antes éramos.
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