5.25.2015

ANTÓNIO BOTTO: REAL E IMAGINÁRIO




António Botto: Real e Imaginário
António Augusto Sales
256 Páginas

Canção Mutilada

A tarde cai amaciando a terra,
E enchendo-a de miragens tentadoras
Enquanto o sol,
Nos últimos alentos,
Se prende nos galhos de um arbusto
Que, ressequido, à beira de uma ermida,
Parece o próprio símbolo da Vida.

De enxada ao ombro, alguns trabalhadores,
Pisam o pó e as pedras dos caminhos
– Como bandeiras humanas
Movidas pelo infortúnio,
Sem alegria, sórdidos, curvados
Mas enormes no seu frémito de luta!

Ah!, nem a morte quer os homens
Quando eles são desgraçados!
As estrelas lá, no alto,
Riscam cintilantes brilhos.

E em bandos –
Os maltrapilhos,
Silenciosos e ateus,
Zombam do Amor
E até de Deus!
A miséria
Quando atola
O homem nos seus negros labirintos,
Dá-lhe, também, a loucura
Dos mais trágicos instintos...

Agora, neste momento,
A noite –
É  uma imensa realidade...

E eu julguei ver a Justiça
Afundar-se na penumbra
Da sua inútil realidade.
                                       (Poema de António Botto, que encerra o livro de contos Imagens do Alentejo, de Henriques Zarco, nº 2 da Colecção Amanhã, edição da Imprensa Artística, Lda., em 1936. )

António Botto era homossexual assumido, gay praticante e maricas confesso, não obstante ser casado com uma inteligente e linda senhora. Aliás, o primeiro de uma plêiade de "travestidos" sexuais que ainda hoje prolifera no universo das artes e letras nacionais, europeias ou mundiais, e em grande parte tem feito delas o ninho das tendências marginais. No entanto, é inegável que também era um genial poeta, um extraordinário fabulador e maravilhoso contista, um exemplar dramaturgo, um tradutor sofrível, um letrista respeitável, e um espetacular fadista, arrebatado declamador e convicto versejador, quer no dizer pausado, quer no improviso. Escritor de canções, colaborador dos jornais, boémio e dandy da Alfama bairrista da primeira metade do século passado, que se vangloriava de ser o primeiro pederasta lusitano com reconhecimento oficial, chegando mesmo a mandar imprimir cartões-de-visita com tal "classificação", foi por muitos considerado o Frederico García Lorca português, mas sem a morte, embora não menos trágica, nem iguais preocupações, na vertente sociopolítica, que as do celebérrimo granadino da Geração de 27. E nesta obra se tenta situar, definir, o espaço-quando por que o circunvagou, a que pertenceu, assim como especificar-lhe a faceta e perfil, os relacionamentos, as paixões, fraquezas, limitações e obra, sem cair nas vulgaridades e clichés que tantas vezes entorpecem o género biográfico.
Companheiro de tertúlia e protegido de Fernando Pessoa, conhecido de Régio e amigo de Vilarett e Beatriz Costa, "disse" poemas e declamou como mais ninguém (daquele tempo), aproveitando as nuanças da voz, o efeito das inflexões, a musicalidade do ritmo, num jeito próprio que fez escola, sem que jamais se sentisse incomodado pelo facto de, na Lisboa do seu dia-a-dia, as pessoas continuarem descalças, cultivando e conservando hábitos, tão socializados, educados e ribeirinhos, como o de estender a roupa encharcada à janela, gotejando torrencialmente sobre os transeuntes, ou de escarrar para a rua sem sequer averiguar se alguém vai a passar nesse ínterim. Espírito de irreverente quadrilheiro, pregoeiro de boatos e vingativo nos desamores, praticou o exercício da má-língua tão vorazmente que o batizaram de A Serpente, tal era argúcia e mordacidade de sua feminidade venenosa, consolidando o cosmopolitismo de Álvaro de Campos, e o que levou "alguns" a considerarem-no, de certo modo e justificadamente, também mais um, ou outro heterónimo do poeta da Mensagem, na medida em que Pessoa se reviu e realizou igualmente na poesia dele, além de na vida que a ela correspondeu. Enfim um contista que escreveu sonetos nos guardanapos das mesas de café, cantou o fado nas tascas severinas e marialvas, solitário frequentador do Martinho da Arcada, visitou diariamente as capelinhas livreiras do Chiado (Bertrand, Sá da Costa e Portugal), e que borboleteando vagueou entre as prostitutas e gigolôs, as bailarinas, pintores, escritores, jornalistas, atores e demais refugiados, na capital, do provincianismo e moral do seu tempo.

Joaquim Castanho


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