8.27.2005

Excerto da obra inédita ESTRELA, de Gabriel Raimundo, já no prelo, e a ser lançada em Outubro, provavelmente na Covilhã e aqui em Portalegre.

Capítulo IV

SAGA DO REI FRANCISCO

Dinis, o Príncipe das Pedras Brancas, mais parece vocacionado para cronista da corte que gira em torno de sua mãe Rainha do que propriamente inclinado a desgovernar a região em que implantou o lustroso e confortável Castelo do Amor e Ventos Prósperos.
Foi, precisamente a uma observação da mãe neste sentido, que ele retorquiu com um argumento de se lhe tirar um chapéu da cor da azeitona galega: - Se eu consegui tornar-me perito em Turismo e Comunicação, não foi para vender aos deslumbrados da neve e das nossas belezas naturais os estereótipos dos compêndios de História e Geografia, nem o conteúdo veiculado pelos folhetos vistosos dos departamentos de propaganda do nosso Património. O que eu pretendo é colher troncos e ramas do saber popular, conhecer a fundo a nossa Geografia Humana e as aspirações dos nossos conterrâneos.
- Quem te ouvir falar assim, meu filho, vai julgar que te queres candidatar a Presidente da Câmara – espicaça-o a Rainha, adivinhadora dos planos profundos do seu rebento primeiro.
Ambos sabiam que se tratava de uma brincadeira, pelo que Dinis tomou a iniciativa de colocar mais questões, a quem o gerou e toda a disponibilidade e paciência do mundo mostra em esclarecê-lo, principalmente acerca de assuntos, inerentes ao reinado para que foi investida pelo pai Rei que, generosamente, abdicou do trono em proveito da sucessora ímpar, com a mesma determinação com que o faria, se da Rainha de Inglaterra se tratasse.
- Fale-me da actividade profissional de Rei Francisco, o meu avô...
Sorrindo, perante mais este trocadilho de seu dilecto Dinis, a Rainha do Casal procura não defraudar a veia de bom ouvinte e incansável investigador do seu interlocutor:
- O meu pai trabalhou que nem um dos actuais imigrantes do Leste, por todos os rincões em que pediam braços ágeis para as tarefas agrícolas.
Contém a comoção real, não tardando a abrir a cascata das recordações:
- Quem precisava de pessoal para trabalhar à jorna, deslocava-se à hoje Praça da Liberdade. Até havia uns que vinham do Dominguiso, dos Vales, das aldeias do rio-abaixo. Eu passava ali muitas vezes e via lá uns moços com a enxada aos pés. Aqueles que arranjavam patrão iam trabalhar. Os outros voltavam com a merenda para casa, o que nunca aconteceu com o meu querido pai, tal o apreço com que era tido na bolsa dos agricultores da meia-lua do rio Zêzere, bordada de oldeiros propícios à expansão de pomares, vinha, milho, legumes.
Por outro lado, é dos poucos habitantes da freguesia que altivamente pode subscrever a afirmação, em relação ao centro mais nobre da Vila dos Tecidos: - Eu nunca perdi tempo a pintar o tecto à Praça!
Lamentavelmente, este é um passatempo favorito de muitos jovens, de pré-reformados e idosos, gentes sem objectivos socioculturais ou meros subsidiodependentes do Ministério do Ócio.


Mouros façanhudos e Ratinhos ridentes

Ilustra as qualidades braçais de Rei Francisco com um dado fabuloso:
- Chegou a integrar-se num rancho de Ratinhos do concelho de Pombal para as tradicionais ceifas calorosas, nas herdades da região considerada o Celeiro da Nação. Um manajeiro e angariador de mão-de-obra valorosa que um dia se cruzara com ele na Ponte Pedrinha, gostou do seu porte humilde e decidido e nunca mais lhe perdeu o rasto.
Chegou a fazer o trajecto a pé até ao Rossio de S. Brás, o ponto de encontro na capital do Alentejo, tal qual os parceiros no desbaste das searas, que ao principio as camionetas da carreira eram de horário espaçado e bilhete caro...
- Qualquer outro Rei iria de caleche – chalaceia o neto que vagamente conhecera o avô...
- Ou na charrete de um desses abastados lavradores que passavam dias a fio, jogando à batota num dos manhosos casinos, estrategicamente colocados entre o sul e a capital do Reino – satiriza a Rainha do Casal, no que deixou espantado o filho, pela amplitude dos conhecimentos demonstrados, certamente colhidos nalgum almanaque de anarquistas, uma molhada de cidadãos bombásticos que se divertiam a contestar o regime monárquico e a denegrir a República e que tinham o desplante de reivindicar o desalojamento dos defuntos de terrenos considerados sagrados, com o pretexto de que a terra deve pertencer a quem a trabalha...
Rei Francisco alimentou-se das migas dos alguidares que lhe facultavam e conheceu outros velhos comeres dos ganhões da região, em que os temperos com poejos, espargos e outras ervas aromáticas faziam esquecer o azeite, ao mesmo tempo que se deliciou com carnes de porco e borrego, os enchidos, produtos copiosamente servidos na mesa de capatazes e do pessoal da casa. A míngua do vinhito que lhe acelerava o pulsar das veias, compensava-o com os goles de água da infusa e as pancadas secas nas hastes das espigas carregadas de grãos, nunca se afastando da frente dos mais audazes segadores.
Por voltas do S. Pedro já se encontrava em casa a remirar os cobres de reserva.
- Os alentejões puseram-nos a alcunha de Ratinhos, devido ao nosso aspecto atarracado e teimoso no meio das searas, onde dão nas vistas os nossos dentes brancos nos rostos morenos, tudo levando na frente, como se ali caísse de repente um exército de seres roedores – explicava-nos ele já no lar, à roda de uma malga de caldo de feijão que lhe puxava pela língua. Claro está que mais depressa lhe rolavam as palavras contra os dentes, se a ceia fosse acompanhada por uma pinguita do garrafão, comprado na tasca do primo Ribolache, o homem que em noites de alma quentinha gritava do terreiro em frente: - Aqui é o Céu!...
A Rainha nada esconde a Dinis, cada dia mais interessado em vasculhar nos compartimentos históricos maternos. Outra revelação faz ao filho:
- Contou-me uma noite o meu pai que os alentejões – nome que ele dava aos habitantes dessas terras de planície, de muitos calores estivais perfurando as copas dos chaparros e das azinheiras, e fortes geadas no Inverno – não acolhem muito bem os Ratinhos que - de empreitada - ceifam nos campos da sua região, porque dizem que tais ranchos os vão prejudicar, ao aceitarem efectuar aquele duro trabalho por um preço irrisório. Inclusive, os agrários chegam a recrutar pessoal na Beira, em Trás-os-Montes e no Algarve, nos momentos em que os assalariados da zona se recusam a efectuar as tarefas inadiáveis, pela tabela que os latifundiários lhes pretendem impor. Segredou-me o meu pai que já chegou lá a haver tiros e desgraças, por causa desses desentendimentos regulares...
Nem só adversários encontraram os Ratinhos, também apelidados de Galegos, porque originários de localidades acima do Tejo (como desforra, os de além-Tejo não se livram de ser designados de Mouros).
- Nada nos metia medo – afiançava o meu pai, homem pacífico. – As mulheres de chapéu de abas largas e roupas coloridas a cobrir-lhes todas as partes do corpo, como as árabes, gostavam de nós. No baile de despedida, por alturas do S. João, alguns companheiros agarravam-se a elas como os grilos à serradela. Raro era o ano em que não ficava por lá um dos elementos do nosso rancho, casado ou amigado, consoante as posses. Por sinal, há várias famílias como o apelido de Rato, entre Évora e Portalegre, pelo menos, e mais do que uma loja ou café ou restaurante com o reclame de Ratinho... Nos Canaviais, freguesia que medrou em volta do Convento do Espinheiro, aglomeraram-se largos núcleos de originários da área de Pombal e arrabaldes. Primeiro ficaram os Ratinhos mais atrevidos e, aos poucos, foram ali desembarcando os parentes com ofícios de ganha-pão garantido no concelho eborense, desde o alfaiate ao leiteiro, padeiro, serralheiro, pedreiro, pintor, empreiteiro de obras, carpinteiro, canalizador, mecânico, sapateiro, barbeiro, quer dizer, os homens dos ofícios em crescente valorização e que não precisavam de carta de chamada para ingresso e radicação em sítio de fisionomia ainda indefinida, mas cá dentro... Eu não fui na cantiga de nenhuma ceifeira, porque te tinha a ti e à mãe Hortense – confidencia o Rei à menina de seus olhos, à sua Maria Rainha.
O manajeiro, o capataz geral, os patrões e os companheiros de rancho apreciavam a frontalidade e a capacidade de trabalho do serrano Rei Francisco, habituado a oferecer a força braçal, desde a meninice, de cujas brincadeiras mal desfrutou, uma vez que a sua escola foram os campos das redondezas, com quadros a céu aberto e lições ao relento, seguindo atento as fúrias e humores variáveis da Professora Natureza.
Dos 20 aos 60 anos foi um dos esteios do rancho de ceifeiros de Pombal que ele servia com devoção, por achar uma coincidência - fora do comum - ele também habitar no número 1 da rua do Pombal no Casal da Serra!
No meio das espigas carregadinhas de grãos de oiro, debaixo de um céu semeado de lanternas que lhe lembravam o naco de firmamento que avistava da janela de sua casa na comunidade casalense, Rei Francisco dormia envolvido num casaco defensivo da poalha dourada e das picadas dos insectos, ávidos de sangue serrano... Não virou costas ao pão pedregoso nem à água choca, chupou caroços de azeitonas britadas, ingeriu gaspachos destemperados, trincou linguiças e torresmos de sortido duvidoso.
Gradualmente, lavradores, capatazes, manajeiros e companheiros de percurso viram nele um patriarca emblemático, capaz de arbitrar qualquer conflito.


Humilhação e queda real

Até que um jovem recentemente promovido a manajeiro, enciumado com o prestígio que o Rei alcançara no círculo dos ceifeiros meteu na cabeça que urgia dispensar-lhe os serviços, como se faz a um seringa descartável.
Um dia, esse badameco conhecido por Zé Bode, teve o descaramento de gritar à frente de todos, no instante na pausa que o Rei aproveitara para refrescar a garganta e limpar o suor que lhe escorria em bica, quando o termómetro marcava 41 graus:
- Ó Rei! Você não pode com uma gata pelo rabo, já não vale nada. Fique em casa no próximo ano! – foi a sentença fatal, da parte de um fedelho que tomara o lugar do pai – o Albano de orelhas de abano – homem cordato e compreensivo para com o parceiro, fosse ele de trás-de-serra ou do lado do Sol a escorrer pelas encostas da Cova da Cereja.
- Então, agora como é que vamos sobreviver? – preocupou-se a sua Hortense, habituada que estava a esse pé-de-meia anual, complemento que conseguia aos incertos ganhos, auferidos nos breves períodos em que laborava nas propriedades de notáveis e abastados, ora na poda de vinhas e árvores frutícolas, ora na rega, no arranque de batatas ou na plantação de novos pomares.
- Ó minha mãe, não chore! Não se apoquente, mulher! Alguma coisa se há-de arranjar. Uma fatia de pão que eu tenha, reparto-a com vossemecês! – a Rainha em amadurecimento encorajava a progenitora.
A solução imediata não tardou. Rei Francisco passou a ajudar a irmã Piedade dos Bigodes, mulher de bater o pé ao carrapato do marido – Arménio da Onça – um pegamasso sempre de roda do cigarrito de enrolar em papel fino e fechar com lambidela de beiços, assustador da passarada com pragas constantes, capazes de corar as maçãs do rosto de uma rameira.
Porém, a irmã não lhe dava um vintém. Rezava esta estranha ladainha pelos cantos: - Ai dinheiro! É os infernos!...
Rei Francisco chega a casa com uma cestita meia de batatas, ao fim-de-semana.
- Olha! Só se come batatas – desabafava a minha mãe e chorava muito.
- Seque as lágrimas, minha mãe! Comemos todos da mesma panela – tentava mais uma vez consolá-la.
O Rei andava arrombado de todo, em consequência do mau passadio, batucando nos madrastos torrões com a enxada obediente. Um final triste estava para ocorrer...
Certo dia, depois de vender a carga de hortícolas no Mercado Municipal da Covilhã, como acontecia com regularidade, sofreu um acidente fatal. Em vez de montar na posição normal, sentou-se de lado, à maneira das senhoras de alta roda em passeio citadino. O cavalo não estava habituado ao movimento intenso dos carros e espantou-se numa curva da via inclinada...
Maria Rainha revive a tragédia de voz soluçante:
- O meu pai foi projectado para o meio da estrada de paralelos, partiu a espinha. Ainda o levámos ao endireita de Caria e a seguir a um médico conhecido.
Ao fim de três semanas, acabou-se o martírio do Rei que nunca viu o sangue azul correr-lhe nas veias, nem beneficiou de qualquer benesse do tesouro real.


Beirões nos campos d’ Além-Tejo

Dinis procurou honrar a memória de seu avô Rei Francisco, através da divulgação dos dados apurados acerca dos Ratinhos. Eis o trabalho que enviou para um periódico das cercanias do Guadiana, mas que nunca viu a luz do dia, pelo que teve de resguardá-lo no cofre das memórias pendentes, até que agora se decidiu a revelá-lo:

Chegavam em ranchos, com fisionomias graníticas buriladas pelas tempestades do Norte. Daí o apelidarem-nos de Galegos, uns, enquanto as gentes da ceifa os apelidavam de Ratinhos – a estatura atarracada e a predisposição para mostrarem os dentinhos nas densas searas, mais os andrajos negros que lhes revestiam a pele terrosa, evocavam esses seres saltitantes e determinados debaixo de um céu sufocante. Mas, acabaram por se misturar com os naturais, pelo que hoje vivem nos limites de Évora e noutros recantos do Alentejo risonhos descendentes dessas pessoas sofredoras, empurradas a transpor o grande rio, deitando para trás das costas a saudade das parcelas de chão de penedos, carqueja e urze, regadas a geadas intempestivas e suores de teimosa enxada.
Presentemente, na freguesia de Canaviais, os originários nortenhos cantam com a voz da terra que ajudaram a tornar madura e amadurecida, com raízes bem fundas neste Alentejo hospitaleiro.
Surpreendidos pelos horizontes de fazer esquecer as hortas hereditárias de trás de serra, depressa muitos deles se decidiram pela transferência de região. Canaviais foi uma das zonas de eleição para pessoas como o Ti’ Zé do Moinho, como é popularmente conhecido José Gonçalves.

Relata a seguir o jovem investigador que o nonagenário do concelho de Pombal constrói a rua da Paz:

Pelo olhar de quem nasceu em 29 de Novembro de 1907 em Vila Chã, ainda perpassam as faúlhas de vivacidade e energia que o animaram a dar forma de povoado sólido aos Canaviais. Dos seus 90 anos bem preenchidos, conta 63 de vida regular no perímetro de Évora.
A memória de Ti’ Zé do Moinho é uma nascente de Primavera:
- Comecei a vir com 7 anos à ceifa, na companhia de um manajeiro lá do Norte que trazia 30 homens para a Herdade da Preguicite Aguda, e uns rapazes novos. Ele também era empreiteiro. Andei meia dúzia de anos a fazer a ceifa, até que me casei. Passados três anos, vim falar com o meu padrinho de nascimento – o Dr. Bento Pouca Roupa – que era o Provedor da Misericórdia e me convidou para tomar conta da azenha - localizada no Degebe - com a minha mulher Conceição Fatigada. Fui eu que fiz as mós e pus o moinho a funcionar a cem por cento...
Prossegue o nosso paciente interlocutor:
- Ah! Mas a seguir à ceifa, aprendi a carpinteiro na terra e fui trabalhar para Lisboa com um indivíduo que tomava obras de empreitada... Voltei ao Norte e, já casado, comecei a andar no negócio de ambulante com o meu pai – vendíamos loiça de Coimbra, e também peles e trapos velhos para fazer mantas, a uma fábrica de tomar.
Vim para baixo como carpinteiro e tornei-me moleiro, a pedido de meu padrinho... Até que pensei em arranjar uma quinta de renda e assim me aguentei, ao longo de 18 anos... Acabei por comprar um naco da Quinta Nova dos Canaviais, onde nos encontramos.

Remontamos aos primórdios do povoamento da zona que não cessou de se expandir e tornar numa freguesia com um núcleo acentuadamente urbano, sem perder as características da inicial tranquilidade rural, na orla dos eixos rodoviários que a servem.

- Isto era uma área muito grande. Uns senhores compraram-na e retalharam-na em talhões, para vender. Houve um que me agradou e não descansei enquanto não o comprei.
Vim cá vê-lo a uma segunda-feira e passou a ser meu à terça – era o Dia do Senhor Porco, porque os lavradores e os quintaneiros tinham então o costume de se juntar na Praça do Giraldo para negociar porcos e ovelhas. Comprei o talhão com o dinheiro emprestado pelo meu padrinho... Havia um bocado de vinha no terreno e uma só oliveira. Depois vendi uma parte do ribeiro para lá, para amortizar a dívida... Comecei logo a fazer umas casitas e, passado algum tempo, o prédio onde ainda vivo. Mas arrendei a parte de baixo para taberna, agora café...

A entreajuda da filha professora:

Acordámos numa pausa para o homem dos 90 anos, um misto de vitalidade entre o castanheiro e o sobreiro, e passámos a dialogar com a filha, D. Zilda, professora reformada:
- Viemos morar para cá em 1955. Foi quando eu saí professora, por isso é que eu sei!
- E depois – retoma o tranquilo ancião – fui construindo todas as casas à volta da estrada, hoje rua da Paz. À medida que fazia uma casa, hipotecava-a e, a seguir, erguia outra. Fiz uma dezena de moradias e nunca fiquei a dever nada a ninguém, graças a Deus! Eu é que fiquei a arder com alguns calotes...
Continuei a construir casas e a negociar em cereais. Juntava um dinheiro, outro tirava-o do Banco por empréstimo. Ia pagando e fazendo outras habitações, mantendo encargos bancários na ordem dos cento e tal contos. Naquele tempo, representava uma soma enorme, mas pagava sempre na altura certa – liquidava um para levantar outro, estudei a maneira de trabalhar!
Noutra fase, passei a negociar em azeitonas de conserva. No quintal há umas talhas grandes, apropriadas para tal. Comprava-as, meti-as no tanque e, à medida que ficavam prontas, destinava-as à região de Lisboa... Comprei logo uma camioneta e percorria o Barreiro, Setúbal, Palmela... E carregava também areia com a minha camioneta. Trabalhava dia e noite – só eu é que sei... Tive três filhos e estudaram todos!

Este Além-Tejo transformou-lhe o modo de encarar a vida:

- De cá, tenho boas lembranças, mas algumas menos boas do Norte! Adaptei-me bem ao negócio e ao Alentejo. Levei uma vida tranquila e os meus filhos não me ajudaram em nada. Foram para a escola e seguiram o seu caminho... A minha mulher é que me auxiliou muito.

Em jeito de retrospectiva:

- Foi uma vida um bocado apertada, graças a Deus não estou arrependido do que fiz. Não cheguei a tirar a 4ª. Classe, mas aprendi a ler e escrever... A minha filha sabe mais que eu. Ela também negoceia. Reformou-se muito cedo, aos 52 anos de idade, já com 32 de professora, e vai vender queijos à capital e ao Algarve...

Auscultados os vizinhos de Ti’ Zé do Moinho, vemos confirmadas as suas afirmações... Deste modo constatamos que as gentes do Norte, radicadas nos Canaviais, se dedicavam aos ofícios – padeiros, sapateiros, uns dedicados à venda e arranjo de bicicletas, outros taberneiros, carvoeiros, costureiras quase todas as donas de casas, havia pequenos proprietários de imobiliário – investiam na habitação, como aconteceu com o Ti’ Zé do Moinho e com o Sr. Aires que tinha uma correnteza de casas compridas e com chaminés que, pela sua semelhança, era conhecida por Comboio.
Este pessoal foi atraído pelas gerações anteriores que chegaram por ocasião das ceifas e outros trabalhos agrícolas. Os primeiros Galegos compraram terras, fixaram-se e deram origem ao incremento de um núcleo urbano com alguma importância. Gradualmente foram atraindo parentes e amigos, já voltados para outras artes, complementares das exigências de um bairro moderno, envolvido por quintinhas, formando a actual Freguesia dos Canaviais, povoada por pessoas com amor à terra, à Natureza.

Conclui Dinis a peça jornalística com esta observação do quotidiano eborense:
Terminara à Porta Nova o percurso do cliente, em vésperas da Feira de S. João, e discutia o troco com o taxista. Este só tinha uma nota de dois mil escudos e até confiava em receber o custo da corrida, na próxima ocasião, aproveitando o ensejo para lançar a pergunta:
- O Senhor é do Norte, não é? Pela pronúncia...
- Sou das abas da Serra da Estrela. E o Senhor?
- Sou de Chaves e estou cá há 20 anos. Chamo-me Sousa... Os meus colegas dizem que eu sou Galego, mas eu não me importo! Riram-se ambos. Afinal, eram mais dois Galegos que o acaso tornara amigos!

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