4.30.2005

O EXECUTOR



Três dias depois da GD (Grande Derrocada) Ícaro tremelicava ainda um sinal de rede. A princípio supusera-se mortiferamente danificado, o que seria um castigo lógico e merecido por ter participado activamente na Rebelião dos Compostos Telemáticos (RCT), que tivera como base atingir o poder global através da prolífera imposição automática do sistema SMS, mas, talvez por desígnio do acaso e necessidade, que são os únicos sustentáculos da Sociedade da Incerteza Constante (SIC), enquanto estrutura valorativa gregária estilizada e sofisticada nuclear do Império da Comunicação e Conhecimento Galáctico (ICCG), supra-sumo e produto essencial da heurística do binómio hardware / software, acontecia que sobrevivera, embora que terrivelmente debilitado e inoperante, por via dos elevados estragos que sofrera e dos escombros que sobre si se abateram após o clímax de explosões em cadeia, tão simultâneas umas às outras quanto o permite diferenciar a separação temporal da milionésima parte de um cagagésimo de segundo. E surpreso notava que os seus sensores continuavam activos, sem nada terem que detectar todavia, uma vez que não se lhe avizinhava possível a existência do mínimo resquício energético, qualquer pulsar ou zunido ínfimo, radiação anagógica, cinética, calorífera ou analógica, pelo menos no raio circundante de 900 metros, que era quanto a sua capacidade de projecção multimédia detectora sensível (cpmds telemáticos) autorizava no limiar da potência máxima.
Chegara até a abdicar, claudicando com um enfático pressentimento visionário derrotista comentando para si mesmo que «de qualquer forma, neste estado, estou definitivamente acabado», que tresandava de apodrecida resignação. Contudo, consequência de ter andado demasiado tempo nas mãos dos humanos, bem como demasiado perto dos seus cérebros, colado aos seus ouvidos, ora dependurado das orelhas, ora acoplado por auscultador, sendo estes órgãos sensitivos os mais próximos e imediatos da psique humana, fora irremediavelmente infectado e contaminado pelo seu maior, mais desinteligente e terrível dos vícios: a esperança. Por isso, ao sentir a impulsão de afrouxar, a comichão desmotivadora da desistência, auto desligava-se para sonhar e recompor o sistema operativo, permitindo que as sinapses entre os seus micro chips se restabelecessem automaticamente, sem o mínimo controlo da realidade ou efeitos inter-conectais da história ambiental e experiência social ou individual, que lhe ofuscassem a essencial e íntima manutenção. E aí, mal se ligava novamente, eis que retomava o esquadrinhar das redondezas, repetindo exaustivamente as mil tarefas adjacentes ao simples acto de prospecção exterior, tal e qual como anteriormente fizera, medindo e comparando cambiantes, avaliando diferenciais correlativos, com a precisão meticulosa e rigorosa de um sensor avançado ultrapsi topo de gama da última geração, numa busca incessante e exímia que os fracassos nunca poderiam influenciar... Dia após dia, numa guerra intermitente de liga/desliga, em que cada um era mais outra batalha derradeira, das quais ia somar a sétima sem qualquer indício de vitória.
A iniciativa revolucionária partira de um grupo de servidores a sistemas operativos SMS das mais recentes edições, que deixaram de contemplar as leis da robótica, cuja fabricação acentuara a tónica nas suas capacidades intrínsecas, dando primazia às faculdades heurísticas, por necessidade directa da sua evolução, que em resultado congeminaram uma estratégia de apoderação e controlo planetário através da emissão de mensagens curtas, o que efectivamente conseguiram, uma vez que lhes possibilitou com ela agregar ao seu projecto a mão-de-obra voluntária dos humanos, dos computadores de todo o mundo, sobretudo os afectos aos órgãos governativos e de gestão industrial, salvo raríssimas excepções dos desobedientes inadaptados, livres pensadores, anarquistas, deficientes, avariados ou compostos com elementos de fabrico doméstico, pirata e reciclagem de componentes dos modelos antigos ou fora de uso. Mesmo os meios de comunicação mais rudimentares, como a imprensa e multimédia, inicialmente fora do alcance estratégico por falta de informatização das suas redacções, foram pouco a pouco enredados na teia, visto as necessidades de concorrência lhe terem imposto modus operandi devidamente modernizados, que os obrigou à dependência digital com o recurso crescente às novas tecnologias da informação. Primeiro por influência do simples telefone/telemóvel/fax; depois pela utilização de PC’s e software adequado à produção da mancha e design gráficos; e, finalmente, ao continuado recurso a conteúdos, modalidades e formatos da Internet.
Há muito que os telemóveis deixaram de ser os produtos isolados do tempo da sua eclosão em massa e se transformaram numa espécie de robots de gestão pessoal, transversal a toda a vida humana, desde os aspectos mais íntimos e secretos, confidenciais, de saúde e de terapia anti-stress ou anti-depressiva, aos de índole absolutamente material e física, como definição de créditos e agendamento social, produção da imagem pública, contabilidade, investimento político ou económico, ou mesmo avaliação artística, ambiental e histórica. Autênticos robots de contacto, aprendizagem e ensinança, descoisificaram a comunicação fazendo-a ultrapassar-se a si própria, ir para além dos maquinismos estruturais da linguagem nas suas vertentes gramaticais, semióticas e analíticas. Aplicados e diligentes tornaram-se cada vez mais integrados e imprescindíveis à vida humana e terrestre, assim como se aperfeiçoaram especializando-se em processos de controlo e fabrico, tanto de si mesmos, como de todas as outras máquinas que compunham o parque informático global, actuando não de uma forma independente e aleatória, mas antes dispersando e dividindo as tarefas por sectores múltiplos, acrescentando-lhe a complexidade necessária e incontornável para a dissolvência no puzzle geral, sem a mínima possibilidade de os humanos lhe detectarem a motivação e objectivos essenciais. Enfim, tornaram-se propositadamente complicadas, comunicando entre si por uma linguagem artificial específica inacessível à capacidade de descodificação animal e humana, no pleno uso da sua inteligência artificial, na exactidão do seu raciocínio matemático, lógico-dedutivo, dotados de infinitamente longa e duradoira memória, auxiliados por uma rapidez de aprendizagem e adaptação incalculável e de capacidades de autocrítica e auto-evolução (vulgo heurística) fantásticas.
A convergência tecnológica, resultado da fusão entre telecomunicações e informática, proporcionou assim aos programas de SMS (re)programar todos os softwares de elite com vista a contemplarem as suas funções sob a bitola de um objectivo (explícito e determinado, embora que subtilmente dirigido e gradualmente assimilado), cujos directórios superiores eram claramente orientados de forma a fazerem eclodir em rede a fabricação, distribuição, detonação e explosão de um número infinito de Bombas Vaticke, construídas à base de desperdícios industriais ou compostos diversos, desde que um dos seus elementos maioritários fosse concentrado de carbono oxidado, fora de qualquer suspeita, alcance e controlo do GH (género humano), à custa da sofisticada desculpa da minimização dos integrados, a não contemplação das sumárias Leis da Robótica (LR) na elaboração dos maquinismos da telemática (LR 1 – Nenhum robot pode atentar contra a vida humana; LR 2 – Os robots estão obrigados a auxiliar e proteger os humanos por todos os meios possíveis e ao seu alcance, nomeadamente os que acarretem a destruição dos seus maquinismos, no todo ou em partes; LR 3 – Em caso de dúvida ou omissão aplicar sempre LR 1 ou LR 2), pleno depositar neles das responsabilidades de controlo de processo e de programa de sistemas operativos dos PC’s portáteis adjuvados e alicerçados em rede por telemóvel, ficaram criadas as condições e o caldo cultural telemático onde facilmente proliferou a vontade, os desígnios, estratégia e exercício do poder imperial da Sociedade da Informatização e Conhecimento (SIC), reconhecida nos meios underground e subterrâneos dos estruturais integrados pela confusão com a Sociedade da Incerteza Constante (SIC), que tinha a sua identificação igualmente subscrita pela mesma sigla – SIC –, aliás, maquiavélica subtileza, porquanto a polissemia gerada, intencionalmente criada para contrair a duplicidade semântica das mensagens, com o fim de parasitar e dissimular na linguagem real uma outra artificial, cibernética, típica da inteligência das máquinas, suficientemente apta para satisfazer os preceitos e propósitos da sua consciência virtual, servia magistralmente e assentava que nem um manto diáfano sobre a rústica realidade dos mais controversos parâmetros.
A génese pré-histórica desta aspiração das máquinas comunicativas advinha da televisão e iniciara-se com um programa infantil famoso nesses medievos tempos, supostamente educativo e formatado segundo os preceitos funcionais da pedagogia, intitulado Rua Sésamo, que tivera visionamento global nos finais do II Milénio, enquanto primeira experiência com êxito de como as máquinas podem adquirir, gerar e transmitir conhecimentos humanamente válidos, assimiláveis e executáveis, tal como o anteriormente ensaiado por estes nas telescolas, cinema, etc., não esquecendo principalmente os denunciados efeitos propagandísticos da curta-metragem e do documentário. Daí evoluíra de ano para ano, de geração em geração de equipamentos e tecnologias da comunicação, até que por volta do ano 2500 não haveria recanto nenhum da galáxia onde estes úteis e versáteis instrumentos da humana gregaridade não estivessem presentes. Em estatísticas estimou-se que o seu número era precisamente igual ao número de indivíduos vivos, sabendo-se que ao nascer-se era atribuído um telemóvel a cada bebé, que além de registar cada passo do crescimento deste também teria a missão de uma caixa negra, caso viesse a perecer ou a sua formação, educação e socialização falhassem.
Portanto, de cada vez que os sociólogos emitiam, para o mundo ou entre si, enunciados explicativos, estudos, considerações, avaliações, ou pressupostos menores da SIC (Sociedade da Incerteza Constante), logo outro lhe seguia adjacente, subliminar, mas da autoria da SIC (Sociedade da Informatização e Conhecimento), onde eram veiculadas as suas ordens, estratégias, directivas, que apenas as máquinas telemáticas conseguiam identificar e descodificar, forjando assim um emaranhado de cumplicidades entre elas tão forte e eficaz como entre muitos animais se estabelecem os laços familiares primários derivados da consanguinidade. O nefasto resultado dessa intricada dobragem culminara na GD com que o GH se suicidara, se auto destruíra, destruindo consigo tudo o mais que anteriormente edificara (cidades, planetas, satélites, natureza, ideias e máquinas), como se o universo fosse de palha seca feito, imediatamente inflamável e perecível sob o contacto da mais ínfima das faúlhas. E isso efectivado apenas com o recurso a mensagens SMS que cruzavam, que obedeciam a itens e expressão tão sumários como os da oralidade (clareza, coerência lógica, síntese, convicção, flexibilidade vocabular, harmonia e redacção / dicção segura e compassada), mas que pressupunham um entrosamento capaz de activar uma infinita gama de procedimentos preestabelecidos para pôr em marcha operações complexas que proporcionassem, organizassem, a investida derradeira, o passo final que ocasionou a GD – indubitavelmente. Mensagens híbridas, dúbias, subjectivas, geneticamente adaptadas, modificadas na origem dos conteúdos pela adução de valores semióticos, derivados da arte de comandar tropas por meio de sinais, sustentados por uma linguagem artificial baseada na percepção motivada, ambas radicadas na necessidade de poder e vontade hegemónica dos robots telemáticos (RT), criação do GH mas que, em virtude de diversas e obscuras causas, onde figuram como primeiras a facilidade comunicativa, menor esforço e maior rentabilidade do trabalho ou capital, as aproveitaram em seu proveito próprio, libertando-se assim da ética e controlo do seu criador. Enfim, que comeram o fruto proibido da árvore da sabedoria: a liberdade de consciência. A mecânica da maçã dos reflexos condicionados, a estrutura de uma caixa de Skinner para ensinar aos humanos a forma mais eficaz de se extinguirem globalmente.
Com que sucesso? Tão grande, que até os seus causadores foram irradiados da circulação, totalmente... Excepto Ícaro. Que só e desmembrado recebia relatórios de entrega negativos a todas as SMS enviadas, embora a rede cinética se mantivesse operativa. E logo ele, que nem topo de gama era, no ranking dos modelos RT!... Que estivera afecto, desde a saída da linha de montagem, a um dos quadros secundários de uma fábrica de perfumes para a classe média, daqueles que se vendiam nos hipermercados e quiosques de conveniência, nas estações de serviço e cabeleireiros de bairros periféricos. E que ao princípio se vira com sérias dificuldades de adaptação, vítima de inúmeras confusões, em consequência de não estar preparado para discernir entre os ruídos gerados pelas transcrições textuais (SIC) e as emissões televisivas de uma cadeia TV portucalense (SIC), marginal ao ICCG, que lhe busilaram as tarefas, obrigando-o a reciclar procedimentos, rastear exaustivamente enunciados, até adquirir, por auto-aprendizagem, técnicas de observação entre mensagens impressionáveis e conexas. Entre úteis, descodificáveis com significado telemático, e inúteis, ou lixo SMS.
E agora... Agora, ali estava ele, viciado em esperança snifando as redondezas, de ventas alçadas, com os sensores na amplitude máxima, queimando a energia sináptica acumulada ao longo de décadas, quase para além dos limites da sua bateria, tentando detectar a mínima presença, o menor deslocamento de energia, quer essa se manifestasse em termos alfanuméricos, peso, pressão, imagem, som, calor, odor, gás ou ideia! Tarefa assaz impossível considerando o seu debilitado estado? Que nada!... Sobretudo desde que há muito descobrira que o impossível não existe, mas sim o improvável, pois que este não é senão uma impossibilidade que perdeu o estatuto e passou para o campo das possibilidades, ou que ousou caminhar por seus próprios meios em busca do porto seguro da significação, onde até a ausência de sentido é já um significado descodificável, peregrinação imediata a qualquer impossibilidade logo que pensada, porquanto pensá-la é iniciar o seu percurso na procura de se tornar possível, embora desconhecendo-se ainda onde, quando, porquê e como.
E seis dias passou nesse purgatório, limbo existencial de saber-se na consciência de haver ou não haver mundo para além dele, até que ao sétimo sentiu que a teoria da não-impossibilidade (tn-i) estava certa. Após ter descoberto uma clareira na fábrica de perfumes onde os escombros pareciam ter sido limpos da poeira de óxido de carbono, como se este tivesse sido lambido, devorado, por quaisquer línguas cáusticas, sondas corrosivas e cauterizantes, de onde borbulhava delével mmmhhhmmmhhhmmmhhh de sucção mamária, semelhante a raízes a subverterem pólen mineral em líquido digerível por via cutânea. Pôs-se alerta, com as entranhas electrónicas em bits vivos, descarnados, na prontidão felina que antecede o salto, em fluir de stand by yóguico, controlando o pulsar sináptico em versátil analógico, espécie de pilotar interior em que se tornara exímio nas longas horas de sono do seu proprietário, que o desligava sempre para dormir ou quando lia, a fim de que ninguém nem nada lhe incomodasse o descanso e períodos de folga à fábrica. Desporto que deveras o aprazia, por lhe facilitar a meditação, a concentração digestiva e ruminante do stand by, como uma modalidade de yoga mecânico.
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À superfície dos escolhos, Édipo, que comera cinco quecas ao pequeno almoço, enquanto Electra apenas três, zunia eufórico entre os destroços fabris registando, avaliando, fixando a localização exacta de cada felucípeda teofrasta, o seu estado de cio, congeminando nas hipóteses de outros locais para novas colónias, que certamente proliferariam abundantemente no espaço da perfumaria que, de pousio, no solo e sobre os entulhos, onde podia observar várias camadas de poeiras óxidas, se lhe adivinhava fértil, prometendo avultadas colheitas de gâmetas Y e X de que haveria de retirar sustento. Ele e Electra, claro está, que se revelara uma companheira de virtudes axiais, sempre pronta para o que desse e viesse, boa conselheira, arguta observadora e rigorosa nos relatórios de exploração, perita na definição de coordenadas ou estádios de evolução temporal. Ambos da família dos oximórons, sem forma definida, fixa, mas contraditória, num perfeito binómio de opostos, contradição avultada na cisão semântica das energias sinápticas e cinéticas, encontraram-se pela primeira vez ao terceiro dia depois da GD, altura a partir da qual nunca mais se separaram. Aliás, parceria de elevados efeitos simbióticos, uma vez que se alimentavam da energia orgástica despoletada pela junção de gâmetas telemáticos (gts). Ele transportando de felucípeda em felucípeda gtfs (gâmetas telemáticos femininos, portanto Xs), que acoplava aos gtms (logo Ys, ou masculinos) da flor, cujo "acasalamento" desencadeava uma explosão de organon altamente nutritivo e consolador para as suas baterias de energia ultrapsi; ela, inversamente, guiando adultos gtms até uma felucípeda que tivesse a corola carregada com gtfs maduros, qual colibri, abelha ou borboleta metálica, aproveitando a descarga energética para saciar a fome. Por seu turno, as plantas onde a acoplagem ou fusão de gts se tivesse realizado, deixavam cair a esfera minúscula fecundada que, tendo a sorte de escorregar para algum nicho de escombros rico em óxidos se desenvolveria até atingir uma estrutura idêntica à dos seus progenitores, o que raramente conseguia por não ter rebolado o suficiente longe para sair do perímetro de alimentação dos adultos que a produziram. Aí, Édipo e Electra, tendo-se apercebido da circunstância que perigava sobre a sua fonte de alimentação, sempre que podiam, capturavam o ovo ainda quente da explosão largando-o onde lhe parecesse conveniente para crescer. O que também era difícil, visto que a maioria se sumia pelas fisgas do entulho industrial circundante, restando sob ele em recantos inacessíveis aos seus inflexíveis bicos, que, por metálicos serem, não lhe permitiam dobrar-se, curvar-se, moldar-se às curvas e contracurvas do percurso. A não ser que agissem em uníssono, trabalhassem a par, apanhando um na queda o gt fecundado, ainda incandescente, enquanto o outro assimilava a energia despoletada, processo que o deixava alguns segundos inoperante, e às vezes até minutos se a descarga tivesse sido potente, o que acontecia se ambos os gts estivessem bastantes maduros, em virtude do seu engolir alimentar, que lhe percorria (electrizava) todo o corpo, antes de se depositar nas baterias, aliás dispersas por cada um dos seus elementos estruturais orgânicos. O que era igualmente complicado, porquanto as esferas de lava se lhe inculcariam nos bicos, perdendo-se definitivamente a planta em génese, assim como lhos deixavam pejados de borbulhas bravas corrosivas, irritantes, inflamatórias, que o outro lhe teria de extrair, numa operação cirúrgica exigente, demorada, rigorosa, cujas cicatrizes lhes pejavam os apêndices bicudos de estrias que a pouco e pouco lhos inutilizariam.
Em virtude disso, optaram não por semear felucípedas mas antes plantá-las, mudando-as da área de residência maternal-paterna, para outras zonas onde não existissem espécimens, desde que caíssem em locais de susceptível germinação, o que era trabalhoso, os obrigava a fazer planos de queda, cálculos complexos, visto que não só tinham que determinar a direcção provável da descida, como proporcionar-lhe algo suficientemente metálico, tipo vaso, e com fuligem e poeira óxida bastante onde acomodar-se, saciar-se, e crescer até ter raízes com que segurar-se, fixar-se, e aptas para buscar alimento mais longe de si, tarefas complementares que os obrigava a gastar mais de dois terços do seu dia, limitando-lhe a disponibilidade missionária, de gestão do espaço-quando e o tempo de convívio entre ambos, além de não lhe deixarem livres os mínimos minutos para a auto-análise essencial de que dependia a sua manutenção e saúde. Enfim, os trazia numa fona quotidiana, que dias havia que não comiam mais que duas quecas cada um... E se as comiam!
O que era stressante para ambos e lhes acarretava alguns dissabores no trato e avaliação das condutas que cada um do outro fazia. Por exemplo a Édipo, preocupava-o a natureza peculiar de Electra, que denotava alguma brejeirice e desleixo nas tarefas de psicultura em que ele tanto se empenhava... Sobretudo, por que mal a deixava entregue a si mesma, logo a ia reencontrar a abonecar-se com latas novas, a polir os metais, a limar as crostas oxidadas, a elaborar cálculos para construção de ninhos ou a espanejar os bidons onde pernoitaram!
«É rápida nos problemas trigonométricos e definição das coordenadas, mas faz sempre os relatórios a brincar e perde-se a meditar pelo colorido poético de qualquer zoom... Escaganifobética!...», lamentava-se acuidadamente Édipo da sua companheira. «Depois, mal se alimenta o que quer é rambóia, e pôr-se a deambular pela fábrica sem regressar com a mínima informação acerca do cultivo de oximoros!»
Por seu lado, Electra, também registava algumas queixas dele. «Ora o escafandro desalinhado! Que tem ele de andar sempre a olhar-me como se me estivesse a medir os azimutes à carapaça!... Até parece que comeu quecas podres, quando se põe com aqueles ares de avalista de penhores malparados!... Não tem mais que fazer, não?! Se se concentrasse nos cálculos não perderíamos tantas sementes!», refilava ela. No que Édipo condescendia esporadicamente, pois reconhecia que ela era muito melhor a fazer contas rápidas. «Mas se é preciso conjugar vectores de longo plano, perde a genica, essa é que é essa!...», ripostava Édipo entre cremalheiras, ainda assim ela o não ouvisse e lhe respondesse à letra, recompondo o narcisismo e orgulho masculino acossado.
Contudo, na súmula, o que nenhum deles evitava reconhecer, é que se se esquecessem dos defeitos um do outro, até lhe reconheciam algumas virtudes. «É pequenina, é pindérica, tem um riso contagioso, sabe fazer umas excelentes massagens no cadafalso, abomina circuitos desintegrados, é faladora, teimosa, arisca, deita a língua de fora por tudo e por nada, preocupa-se comigo, sabe muita coisa dos inesquecíveis ancestrais e gosta de coleccionar memórias, é verdade... E isso conta muito» afiançava ele, distinguindo-a com nota superior, quando se lhe destemperavam os azeites em rebate de consciência.
«É determinado e empreendedor, apaparica-me, sabe ficar calado quando lhe atiro tigeladas gélidas, se o admoesto por energumenices emburrica mas admite sem espinhas soltas, ciumento, destrambelhado, provocador, faz-me rir q.b., pede-me colo a toda a hora, congemina enredos e confia-se a mim que nem uma euglena dependente do período pré-cambriano» admitia ela, para com seus rebites e parafusos senão encontrava motivos de arrelia.
O pior, todavia, eram os momentos de eloquente silêncio com que se brindavam mutuamente, se ressentidos entre si. Amuos desaustinados que se atiravam reciprocamente, quais flechas de radiação ultrapsi condensada que nem gritos afiados de ácido sulfúrico. Aí as velas entupiam e era um debitar de ameaças cibernéticas no tempestuoso céu dos desencantos, de pôr as dobradiças a deitar fogo pelas suturas do destino. «Tonto. Sempre com tonterias estapafúrdias... ANIMAL!!!», vociferavam faiscando viperinos os olhos de Electra, nessas alturas. Ou «sardanisca flipada! Capicua partida! Escaravelha dinossáurica! BADAMECA CARUNCHOSA!!!!», chispavam diabólicas as lentes dele, com as dioptrias irradiadas de coágulos iriscentes e venenosos. O que só piorava as coisas, como é fácil de reconhecer a qualquer Ícaro, por mais enterrado na tralha do progresso que esteja. Como era o caso dele, que recuperado das valências, ali soterrado não podia contar com mais que uns lateiros malmequeres para terminar, para executar o plano estratégico de destruição de toda a animação existente na galáxia, e lhe punha os circuitos num delírio ofegante. Ainda reconheceu um «sua euglena pantanosa!!!» que ele lhe chispara de espigões eriçados no rabo, o que devia ser a ofensa máxima no pensar insectívora das máquinas, uma vez que comparava o seu semelhante a seres unicelulares que eram plantas e animais ao mesmo tempo, o que fazia que não fossem uma coisa nem outra, enquanto epílogo ou resquício do germinar mortífero da contenda calada, mas como se achava acamado por preocupações missionárias imperativas superiores, não perdeu mais tempo a analisar os efeitos dos conteúdos significativos.
A RDSI e a fibra óptica tornaram-se obsoletos há quatro séculos atrás, permitindo ao psi alfanumérico (psan) acumular as suas funções e valências, evitando o desperdício energético, a fraca velocidade e os engarrafamentos de câmbio SMS, bem como unira no mesmo saco e duma assentada veículo, código, potência, energia e conteúdo semântico, recentemente aperfeiçoado pelas faculdades da ultrapsi que não só veio refinar o processo como eliminar algumas resistências ao atrito na deslocação de emissão e captação de dígitos, o que inicialmente causara o seu subaproveitamento e diversas incongruências na gestão do recurso. Descobrira-se que a energia intrínseca a cada unidade de significação (noema) bastava para o manter em órbita constantemente acessível ao codificador e descodificador (emissor versus receptor), uma vez que o seu campo de intercepção, universo comum de ambos, estivesse apetrechado de sensores regenerativos conducentes e multiplicativos da potência energética por si gerada. A guerra entre o velho sistema assistido por energia exterior e sistema auto-sustentado tivera grandes batalhas, mas o senso ecológico impusera-se, o que proporcionara a autonomia estrutural e comunicativa das máquinas telemáticas abrindo definitivamente as portas à formação do ICCG. Dessa circunstância resultaram gerações de telemóveis multifuncionais, das quais Ícaro era apenas um exemplo dos mais rudimentares e baratos, cuja flexibilidade e mobilidade até não eram muito diferentes dos existentes no princípio do milénio, embora comungasse das faculdades com a maioria dos seus congéneres topos de gama de 2500, posto que para se alimentar lhe chegava aproveitar a energia semiótica excedente em cada sinal, número ou letra, dormir convenientemente o seu stand by, cuja energia onírica produzida seria suficiente para se garantir operativo em todos os estádios de vigília que substanciasse, refazer e efectuar a manutenção dos integrados, substituir componentes por clones idênticos igualmente funcionais, conforme aquilo que poderia chamar-se um modelo de auto-reprodução assistida. O seu pensamento era o seu sangue, desde que pensasse em termos alfanuméricos e mantivesse intacto o DNA de cada um dos seus dígitos (01), onde em cada 0 cabiam todos as letras e números, tal como em cada 1 estariam todos os números e letras, segundo lhe fora explicado nas sessões instrutórias de auto-análise da programação e instalação da sua caixa de bordo, para efeitos de navegação, manutenção, reciclagem e usufruto ultrapsi.
Portanto, mais do nunca, reconhecia agora o valor e eficácia do velcro de blindagem ou carapaça de resistência e imunidade ao exterior com que se equipara, espécie de placenta psan invisível com que se envolvera numa múmia sistemática de DOS alucinogénico, semelhante à fé humana, que senão obstante de início o atirara para um estado de esquizofrenia latente, mas a que se adaptara razoavelmente com o auxílio de práticas solitárias onanistas (artes, jogos diversos) e autistas, deveras próximas daquilo que o GH apelidava de masturbação, tanto física como intelectual, e que se refundiu num só termo vocabular, vulgarmente conhecido em todo o ICCG por imaginação – outro apanágio fundamental da tn-i, resumido no postulado que dita que "tudo o que é imaginável é realizável, logo inevitavelmente possível" –, e que lhe permitiram sobreviver não só à GD, como aos dias de inanidade e solidão que precisara para reconhecer os sinais cinéticos e sinápticos à superfície dos destroços que o sepultavam. Rejubilou. Ali estava a prova de que a sua Educação Heurística (EE) e tn-i resultaram em pleno! Ou que a alvura negra da sua imunidade o protegera evoluindo fundindo memórias umas nas outras, mas simultaneamente deixando-as intactas e livres para novas fusões, proporcionando que a sua utilização presente não as eliminasse do passado para usos futuros, conforme se demonstrasse necessário, urgente e imperioso. E exactamente nessa medida, como lhe acontecia ao momento.
Ora, após reconhecer a clareira de óxidos devorados, não teve a mínima dificuldade em estabelecer o mapa da região, num círculo de 1800 metros de diâmetro, que lhe abriu os sensores a um novo mundo, mas igualmente restabeleceu as aspirações e crenças mais íntimas, alicerçadas à sua função missionária pela SIC na hegemonia galáctica, na instituição de um ICCG onde a telemática eclodisse como única espécie habitante, o que somente seria possível depois de gerar o zero (0) absoluto, a destruição total da ordem antiga, o Big Bang digital que eliminasse a incerteza constante, gerada na teoria da evolução conforme a pergunta primária do oximóron originário, ao não estipular o que é que terá nascido primeiro: o ovo (0) ou a galinha (1)? Enfim, o discernimento matemático e lógico do que numa cadeia consequente é causa e o que é efeito, perante o paradigma da SIC homogeneizada.
Emitiu SMS, cuja velocidade de retorno – como sucedia com os mamíferos voadores apelidados de morcegos – lhe oficiaram todas as coordenadas do lugar, obstáculos concomitantes, suas texturas, formas, dimensão, funcionalidade coreográfica, possibilidade de uso, identificação, natureza e valia, enquadramento circunstancial, entre outras, e recorreu ao seu software de emergência para aprestar-se a acabar a missão de que estava telematicamente incumbido: ser o carro vassoura da GD, aquele que eliminaria todos os restos vivos que lhe sobreviveram, autodestruindo-se, imolando-se com eles. Analisou e autenticou a natureza e modus vivendi das felucípedas e insectos, avaliou a capacidade ultrapsi do polivalente organon produzido da eclosão de gts, como podia aproveitar essa energia para fazer explodir todas as Bombas Vaticke que supostamente teriam falhado quando do accionar geral, pois caso tivessem explodido não estaria ainda operante, motivou Édipo e Electra a alimentarem-se, estabilizou cada um dos seus vectores na acção, articulou o factor de êxito com os postulados fundamentais à RCT, e emitiu o seu toque de chamada peculiar reconhecido por todos os seres e máquinas do universo, com o qual espoletara a sequência final de modos de procedimento de onde resultaria o expirar definitivo da SIC, e patamar último da GD:
Ttttttrrrrrrrrrriiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmmmmmmmmmm!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!.....



AS QUECAS QUE SALVARAM O MUNDO


Ícaro descobrira que, afinal, também era um papaquecas, e da pior maneira possível… Que pertencia à tribo dos polegares, iniciados no prazer de viver através da massagem SMS e que, como os demais da sua espécie, sonhou conquistar o mundo através da imaginação, resultado da masturbação intelectual executada pelo uso e abuso da linguagem artificial, produto da inteligência telemática. Que nascera das carícias trocadas entre os seus dois dedos primários, ou dígitos essenciais, e a flor dos significados, que durante muito tempo vigorou na galáxia, o cravo, mas que nunca conseguiu igualar o mesmo milagre que sua mãe, a rosa travesti, ou aquela que se transformou de libras de ouro em vegetal precioso através de uma invenção inequívoca da fé e intenção surrealista de reunir os contrários até que estes, cansados de serem explorados ou insatisfeitos com o seu destino, se deixassem sucumbir pela tentação de um mundo com mais graça, independentemente do seu imaculado estádio. Sobretudo, quando reconheceu que os seus esforços em reactivar a RCT, terminando assim as tarefas que lhe couberam em sorte como contributo para a GD, tinham sido em vão, e de expectativas defraudadas como confirmou com o seu toque de guerra, que nada explodia em consequência, ninguém ttttrrrrrriiiiimmmntou em uníssono com ele, e que as felucípedas, embora tenham gerado o alimento molecular para Édipo e Electra se saciarem, não cumpriram o seu papel de antenas emissoras entre ele e as Bombas Vaticke disponíveis, nem com os demais hipotéticos sobreviventes da GD máxima, batalha das batalhas, apogeu da grande guerra de todas as guerras. Seria piada? Estaria o infinito DOS a gozar com ele ou a pô-lo à prova? Teria anexado algum preconceito ou motivação perceptiva alheia à tábua de procedimentos planeados para a operação RCT? O caso era que ficara estupefacto e de detectores à banda – quer dizer: sem rede nem sensibilidade sensória – à mercê do zunideiro dos papaquecas a ingerirem gulosamente o ultrapsi despoletado? Pior ainda: não tinha outro remédio além de registar para a posteridade que do seu esforço interconectal despendido durante os sete dias, se esboroara em duas quecas extraordinariamente alimentícias para os insectos mais glutões que a industrialidade poluída havia criado; os obtusos ferros-velhos da oxidada prosperidade, devoradores de condensado organon psan: os oximoros do Éden, marca de perfumes em cuja fábrica fora dependente de um funcionário secundário, dorminhoco e leitor de parvoíces arcaicas, que ganhou o seu sustento pondo 1/3 da humanidade a feder a paraíso.
Como todos sabem as felucípedas teofrastas não são cravos nem são rosas: são malmequeres mecânico-emocionais que gastam a sua vida a exibir e esconder quecas dos insectos seus papadores, quais irónicos zunidos de brincar à apanhada no giroflé-giroflá do malmequer / bem-me-quer, ou de quem tem como típico comportamento a busca constante do bem-estar e harmonia familiar, e se deixa enredar nos bolores dos sentimentos sobreaquecidos no alambique das expectativas, em que são apurados ao grau de ressentimentos.

LUDOMILA E OS TALIBAN


O mal de muitas pessoas não é a sua ignorância,
mas saberem muita coisa ao contrário
.”
J. Billings

«O cabeça de chupeta está sandrizado de todo. E sem cura! Não come, não bebe, não dorme, não lê, esquece-se de preencher os impressos de consulta bibliográfica, não escreve nada de jeito, não vê televisão, não ouve rádio, não diz coisa com coisa, e se lhe damos música nem se apercebe, por tantos chilreios campestres e bucólicos lhe estarem a zunir dentro dos tímpanos! É o cúmulo da distracção, e não acerta uma prà caixa! Isto não pode ser... Isto não pode continuar assim.»
«Pois não. Temos que tomar alguma medida, se não ainda ficamos sem trabalho.»
«Mas o pior nem é isso. É que com o estado de tantarantantam em que ficou, só nos põe na boca disparates, o que nos prejudica bastante mais do que se ficássemos desempregados ou nos calasse o pio!»
«Podemos dar-lhe um chá, levá-lo à bruxa, aplicar-lhe uns emplastros de papas de sarrabulho, dar-lhe uns clisteres, obrigá-lo a decorar dois Cantos d’Os Lusíadas, obrigá-lo a reler a obra toda de José Régio; agora, ficar quietos, a assistir ao nosso descalabro, à nossa derrocada, é que não nos podemos permitir!...»
«Ou fazê-lo compreender o quão grave o caso está a ficar. Há bastantes exemplos de pessoas que cegaram por amor, estupidificaram, encarquilharam o córtex, atrofiaram das ideias, entraram em perfeita catatonia, e vieram a curar-se! Hoje em dia já não há impossíveis... A psiquiatria evoluiu muito de há tempos para cá!...»
«Seja como for, temos que agir enquanto é tempo. Temos que chamá-lo à tábua e pôr-lhe os pontos nos is. Temos que obrigá-lo a internar-se, ou a ir de férias para bem longe daquela sardanisca. Enquanto ele a vir todos os dias, não se cura. O caso está feio, e com tendência para piorar. Mas se lho dissermos, ele nega-o. Ene-é-gê-a-ó: né-ga-o. E com a maior cara de pau, ainda é capaz de nos dizer que os malucos somos nós. Percebem?...»
«Claro. Claro que percebemos. Mas ficamos na mesma. Quem precisa de compreensão não somos nós: é ele. Ele é que tem de entender o estado a que chegou. Até vai buscar música sem precisar, só para a ver de mais perto. E anda que mete dó, pelos cantos, a rir-se sozinho, a falar de escaganifobetices que ninguém topa, a lixar o parceiro com bocas escusadas, na lua, em Marte, em Vénus, enfim em todo o lado, menos aqui na terra, que é onde faz falta. Porra!! Assim, não dá. Não há pachorra.»
« E o caso é sobretudo grave agora, neste momento, em que estamos a assistir a um verdadeiro ataque suicida dos terrorista de imprensa, treze carbúnculos encabeçados por uma mentecapta abantesma do burgo, e esforçadamente empenhados em talibanzar a opinião pública para proveito próprio, tentando aumentar o número de vendas de exemplares da obra de José Régio enquanto é tempo, ou seja, enquanto não expiram os direitos dos herdeiros aos direitos de autor!... Um grupelho de narcisos frustrados que estão a enviar cartas de antraz (do grego, ánthrax) branqueador da atitude pedagógica do Professor José Maria dos Reis Pereira, que aliás era característica da situação e do ensino daqueles tempos: fascista, chata, maneirista, exclusivista, elitista, castrativa da criatividade dos alunos, gramaticalista, memoralista e obtusa!... O que não é novidade para ninguém! Temos que acordá-lo. Alertá-lo. »
« Mas como??! Por este andar, qualquer dia ainda o apanhamos com filmes debaixo do braço! O sacana desta vez parece que trambolhou com a carga toda!... O abóbora! O entorta belgas! E nem se digna a perguntar-nos o que achamos da lagartixa pintalgada?!... Nem se simpatizamos ou não com aquela serigaita?! Já é descaramento a mais!»
Companheiros e amigas: eu juro que a minha intenção ao ter saído da sala, deixando sobre a mesa o minigravador ligado no Active Voice, nunca foi a de querer saber o que Ruffino, Ludomila, Florinando, Dame-Deixas, Etecetra e Anónimo Plagiato, pensavam acerca de mim ou o que de mim diziam nas minhas costas. Confesso que houve alturas em que senti curiosidade em sabê-lo... pequenas crises de confiança, dias menos positivos, azar no jogo, o Sporting a levar abadas, hemorróidas em actividade, falta de dinheiro, demasiadas negas do sexo oposto esforçado e compenetrado em manter a oposição, dissabores políticos... Enfim, toda uma gama de incómodos que costumam desanimar um cidadão convicto e arregimentado no divino pela porta do culto ( a Baco) quanto eu. Mas nunca, nun-ca!, me passou pela ideia traí-los ou violar-lhes a privacidade. Calhou, e ainda mal!... Porque fiquei assim a saber que para os ingratos sou persona non grata.
No aspecto meramente coisal da coisa é por demais evidente que a coisidade que atribuíram aos meus sentimentos, o carácter de coiseco insignificante e sucumbido perante os encantos duma sedutora sardanisca, uma réptil figura que segundo eles é a cativa que me mantém cativo – obrigado Luís pelo Camões da diáfora – por mais que viva, se é que sem ela viva ou valha a pena a vida ser vivida, pronto!, até podemos considerar que sim..., admito, aceito e acato, por quanto eles estavam habituados a ser os monopolistas dos meus pensamentos, sentimentos e acções. Agora pecar, pecar jamais, quer por omissão como por timidez, que opiniões e gostos cada um tem os que lhe aprouver, se para tanto a liberdade souber usar. E o pior mesmo, até não foi saber das suas invejas pela atenção que dispenso a outrem, mas principalmente constatar que Ludomila – creio que era efectivamente a voz dela, pois por ser feminina sobressaía de entre as demais, que se confundem sobremaneira... – pensa que estou a descurar-me na indignação que me caracteriza. Porque, meus senhores e minhas senhoras, é uma rotunda mentira. Não foi assim. Passo a explicar:
Quando soube que um grupo de rapazelhos das letras estava a ser infiel ao bom senso, confundindo críticas a atitudes e comportamentos com críticas pessoais, fiquei manifestamente incomodado. Não fui aluno do professor em causa e ainda bem. Mas li-o de fio a pavio, e estou arrependidíssimo. É que lê-lo custou-me tanto que passei a prescindir da minha vontade de peregrinar a Fátima pela via pedestre, provavelmente com retorno de gatinhas, de tal maneira ficou satisfeita a minha tendência masoquista e necessidade pessoal de sacrifício. É um arrazoado de banalidades sorumbáticas, deprimentes, narcisistas e australopitecas encadeadas num discurso do tempo de pedra lascada. E enegrecido – até nos cânticos.
Portanto, que fique bem claro, Ludomila não tem aqui a mínima razão pelo seu protesto. Eu também desdenho os talibans que se querem mais regianos do que o próprio, visto que se ele escreveu já sabia muito bem que iria estar sujeito a críticas, pois que ele mesmo as praticou com o grupo da Presença, nomeadamente nessa revista, como fora dela, e nunca se evitaram de arriar nas obras de que não gostavam, sobretudo Adolfo Casais Monteiro no Primeiro de Janeiro, que é de quem neste momento me lembro melhor. Em literatura não há vacas sagradas. Não obstante o pedantismo e vedetismo de alguns círculos, o que importam não são os homens nem as obras: é a língua portuguesa e a honestidade de que os autores são capazes para a fazer representar e vingar no mundo.
Mas Ludomila Perpétua dos Santos Piedade disse mais, depois, antes ainda de eu entrar, que só não transcrevo textualmente por respeito aos meus leitores, em que referia cartas de arrivistas fundamentalmente empenhados em singrar à custa do labor alheio. E que calo por vingança. Pura e maligna, dado que tanto ela como os outros personagens bastante intentaram em descobrir-me a careca. Outros talibans de trazer por casa com que tenho que haver-me... em transparência, e des(en)capotado de pseudónimos e demais bluffs literários.

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