O MITO E A CRIAÇÃO
Pode parecer absurdo, contudo para quem se habituou a viver antes de se habituar a pensar, há nisto uma clarividência inegável: «A pétala de rosa, o marco quilométrico ou a mão humana, têm tanta importância como o amor, o desejo ou as leis da gravitação. Pensar já não é unificar, tornar familiar a aparência sob a face de um grande princípio. Pensar é reaprender a ver, a ser atento, é dirigir a consciência, é fazer de cada ideia e de cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado. O que justifica o pensamento é a sua extrema consciência*», como refere Albert Camus.
«Criar é viver duas vezes**», dar uma outra expressão àquilo que pretendemos se venha a repetir com maior frequência enquanto congeminamos acerca das razões do mundo, porque «a expressão começa onde o pensamento termina**», e se concretiza, rumo à criação que «tem do amor o deslumbramento inicial e a ruminação fecunda***», tornando-a indubitavelmente romance, ou narrativa, expressão romanceada da sua constatação que nos liberta para de seguida nos prender a ela, uma vez que o nosso olhar e entendimento sobre o mundo e sobre as coisas passa a ser diferente do que antes tínhamos.
É dessa repetição absurda mas contínua que nascem os mitos. Incluindo o de Sísifo, a reiterada e eterna repetição duma lembrança voltada para o futuro, que nos fará correr atrás dos mesmos anseios que tivemos como objetivos anteriores, as pedras da felicidade, por exemplo, que levámos para o cume da montanha durante o sonho, mas que transportamos novamente para o sopé do quotidiano a fim de que as possamos devolver ao alto da montanha ao adormecer na noite seguinte.
Joaquim Maria Castanho
O MITO DE SÍSIFO
Albert Camus
Trad. Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas
Edição «Livros do Brasil»
Págs. 39*, 113**, e 126***
Sem comentários:
Enviar um comentário