O CONTRABANDISTA
1.
APELO DO CAMINHO
São gestos simples duma criança os pés
Os ombros, as mãos abertas.
Mesmo uma falripa sobre a testa
Um suspensório a arrastar na areia...
Uma pedra a bater na latada,
Um chamamento de mãe contrariada.
Ah, e o enigma da estrada
Que nunca termina na curva
Como fora previsto!
2.
CONTRABANDEIO
É essencial de mim, português
A navalha, o relógio, o isqueiro!
Por vezes, a caneta
Ind’assim me não esqueça
Daquilo que me vai na alma.
Seguem-se os dias aos dias
Na formação do ontem de amanhã
E há um povo que não se cansa
De afiar o ânimo no esmeril da solidão
De correr seca-e-meca à procura
De escorregar pelas ladeiras lamacentas da ilusão.
3.
TALEGO
Esse resto tão pouco...
Tão cintilante o sol
Capilar sobre a vereda
Abrigo da tarde
Entre pinheiros
Agudos sonidos dos cartaxos,
Os ombros vincados ambos
A bolsa no lamaçal das costas.
4.
RECRUTAMENTO
Revejo o adro. A tarde arde.
Posando em fila circular as botas ferradas
Esperam a fotografia imediata dum capataz.
Aos velhos e crianças apenas é concedido o número
E não o nome. Esses ficarão meia-lua perdida – olhos da calçada
Por suas bocas serem a jarra em que não há semente.
Arde a tarde e a esperança do corpo
Consumindo a fome que em casa se passa.
Arde o silêncio na competição dos olhos
Na ânsia de saber quem vai desta jornada.
Arde a silhueta do cavaleiro desembocado da rua
O matraquear dos cascos, o cintilar das esporas...
Chapéu no sobrolho, chicote apontado
Divide e escamoteia, joeira e não ouve:
“A jorna, já sabem. É pegar ou largar!“
«Mãe: não valho nada!!...» Ainda que quisesse
Pegar na foice e suar o que faltava, a cabeça curvada
Quem daria ao filho daquele que entre cavalos partiu
O sol a sol do pão, desde que o sonhasse ou soubesse?
Revejo-te adro. E àquele dia, mãe
Em que num ai, reconheceste também
Ser sempre o caminho do filho
Seguir as pegadas do pai!
5.
PRISÃO
Pela fresta da entreaberta porta soam ferraduras
Crinas nervosas agitam o medo, bater de cascos.
Um latido de cão sem coleira à porta da taberna...
As fitas mosqueiras que dedos ronceiros suspendem...
O suspeito ar de caso nas alvas fachadas...
Uma criança descalça atravessando o escaldante empedrado...
E um gesto de Agosto na supressão de mais uma boca.
6.
REFERENTE
A mesma criança do outro poema
Tenta passar de novo a rever-se
No espelho do sonho e surpresa.
Fecha o triângulo e surge
As guitas do pião escorrendo dos bolsos
Os gestos tímidos dum esgar de mel
Os olhos perdidos em tamanhas cores.
Adiará a infância para melhor tempo
Que a mãe já reclama a presença
De um Homem na casa.
Joaquim Maria Castanho
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