10.20.2015

O PALIMPSESTO, de CHARLES BAUDELAIRE




CHARLES BAUDELAIRE
Paraísos Artificiais


O PALIMPSESTO

«Que é o cérebro humano senão um palimpsesto imenso e natural? O meu cérebro é um palimpsesto e o vosso também, leitor. Inúmeras camadas de ideias, de imagens, de sentimentos caíram sucessivamente sobre o vosso cérebro, tão suavemente como a luz. Cada uma parecia sepultar a anterior. Mas, na realidade, nenhuma pereceu.» Todavia, entre o palimpsesto que se apresenta, sobrepostas uma na outra, uma tragédia grega, uma lenda monástica e uma história de cavalaria, e o palimpsesto divino criado por Deus, que é a nossa incomensurável memória, há a diferença de que no primeiro existe como que um caos fantástico, grotesco, uma colisão entre elementos heterogéneos, ao passo que no segundo a fatalidade do temperamento põe forçosamente uma harmonia entre os elementos mais díspares. Por mais incoerente que seja uma existência, a unidade humana não é perturbada. Todos os ecos da memória, se se pudessem acordar simultaneamente, formariam um concerto, agradável ou doloroso, mas lógico e sem dissonâncias. 
Muitas vezes, viram acender-se no cérebro todo o teatro da sua vida passada. O tempo foi aniquilado, e alguns segundos bastaram para conter uma quantidade de sentimentos e imagens equivalentes a anos. E o que há de mais singular nesta experiência, que o acaso preparou mais de uma vez, não é a simultaneidade de tantos elementos que foram sucessivos, é a reaparição de tudo o que o próprio ser já não conhecia, mas que é no entanto obrigado a RECONHECER como seu. O esquecimento é apenas momentâneo; e em tais circunstâncias solenes, na morte talvez, e pelo ópio, todo o imenso e complicado palimpsesto da memória se desenrola de uma só vez, com todas as suas camadas sobrepostas de sentimentos defuntos, misteriosamente embalsamados naquilo a que chamamos esquecimento. 
Um homem de génio, melancólico, misantropo, querendo vingar-se da injustiça do seu século, lança um dia ao lume todas as suas obras ainda manuscritas. E como lhe censurassem este terrível holocausto feito ao ódio, que, aliás, era o sacrifício de todas as suas próprias esperanças, respondeu: «Que importa? O que era importante, era que estas coisas fossem CRIADAS; foram criadas, logo SÃO.» Atribuía a toda a coisa criada um caráter indestrutível. Como esta ideia se aplica, mais evidentemente ainda, a todos os nossos pensamentos, a todas as nossas ações, boas ou más! E se nesta crença há qualquer coisa de infinitamente consolador, no caso em que o nosso espírito se volta para essa parte de nós próprios que podemos contemplar com complacência, não há também qualquer coisa de infinitamente terrível, no caso futuro, inevitável, que o nosso espírito se voltará para essa parte de nós próprios que só podemos enfrentar com horror? No espiritual, tal como no material, nada se perde. Do mesmo modo que toda a ação, lançada no turbilhão da ação universal, é em si irrevogável, abstraindo dos seus resultados possíveis, todo o pensamento é inapagável. O palimpsesto da memória é indestrutível. 
«Sim, leitor, inúmeros são os poemas de alegria ou de desgosto que se gravaram sucessivamente no palimpsesto do vosso cérebro, e como as folhas das florestas virgens, como as neves indissolúveis do Himalaia, como a luz que cai sobre a luz, as suas camadas incessantes acumularam-se e, cada uma de sua vez, são recobertas de esquecimento. Mas à hora da morte, ou na febre, ou nas indagações do ópio, todos esses poemas podem reganhar vida e força. Não estão mortos, dormem. Crê-se que a tragédia grega foi expulsa e substituída pela lenda do monge, e a lenda do monge pelo romance de cavalaria; mas não é assim. À medida que o ser humano avança na vida, o romance que, mancebo, o deslumbrava, a lenda fabulosa que, criança, o seduzia, murcham e obscurecem por si mesmos. Mas as profundas tragédias da infância – braços de crianças arrancados para sempre dos pescoços das mães, lábios de criança separados para sempre dos beijos das irmãs, – vivem sempre escondidas, sob as outras lendas do palimpsesto. A paixão e a doença não têm química com poder bastante para queimar essas imortais impressões.»           

CHARLES BAUDELAIRE
Paraísos Artificiais
Trad. José Saramago
(Págs. 154/5/6)
Capítulo VIII 
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