10.11.2012


CARNAVAL – 1910
Por Graciliano Ramos*


Eram três dias bem desagradáveis. Sujeitos precavidos fechavam-se, olhavam suspeitosos a rua, mas isto não os livrara de pesares: se se distraíam, inundavam-nos jatos de água suja. Iam mudar a roupa, furiosos. Avizinhavam-se depois das janelas, atentos aos moleques armados de bisnagas enormes de bambu. Além desses inimigos, havia os indivíduos que traziam, em mochilas, pacotes de alvaiade, zarcão, ocre, tintas de todas as cores, com que se pintavam os transeuntes.
Um doutor verboso declamava discursos irados nas esquinas, referia-se aos selvagens, aos tupinambás. Ninguém lhe dava importância – e a zanga esfriava. Bem, agora, molhado, não valia a pena recolher-se. O jeito que tinha era entrar na função, tornar-se também selvagem, vingar-se, provocar outras indignações e arrastar para a folia os amigos cautelosos.
Animavam-se todos e perdiam a compostura, acabavam achando aquilo interessante. Alguns viam perfeitamente que estavam fazendo maluqueira e desregravam-se com moderação, quase a pedir desculpas encabuladas à cidadezinha pacata. Homens graves, pais de família, tisnados, bebendo, aos gritos. Mau exemplo, doidice. Na quarta-feira retomariam a sisudez necessária.
Cadeiras nas calçadas. Meninas sérias e bicudas reprovando os excessos, onde se arrumavam os papelotes. Não se contaminavam, estavam livres de pintura, dos banhos, de atrações perigosas: comportavam-se direito, como se aguardassem a passagem da procissão. Rapazes ousados atiravam nelas esguichos de água de cheiro e eram mal recebidos. Muxoxos. Que assanhamento! Nada de confiança. Brincadeira com moça findava na igreja ou rendia pancada. Os desejos não se escondiam sob nuvens de confete, não se amarravam com serpentinas, não se excitavam com éter.
Ainda se desconhecia o automóvel. A gente escassa pisunhava nas barrocas do calçamento ruim, equilibrava-se nas pedras pontudas.
As negras se haviam tingido com papel vermelho molhado. E andavam tesas para não desmanchar os enfeites do pixaim1, branco de fiapos.
De longe em longe desfilavam grandes parafusos, tipos envoltos em numerosas anáguas que se iam encurtando. As de cima, perto do pescoço, eram camisas de crianças. Esses espantalhos andavam inchados por dentro e por fora pacholas, cobertos de renda engomada.
Papangus2 vagabundos enrolavam-se em sacos de estopa, sujos, as caras escondidas em fronhas, as mãos calçadas em meias.
Bobos de máscaras horríveis se esforçavam por aterrorizar os meninos. Gingavam, falavam rouco e fanhoso:
– Você me conhece?
Se não conseguiam disfarçar-se, recebiam vaia e ficavam arreliados.
O índio, de penacho e tanga, era personagem obrigatória e silenciosa.
Passava o cordão, levantando poeira, causando entusiasmo. Um frevo3 decente em redor do porta-bandeira. Repetiam-se cantigas de dez anos sem nenhuma alteração, muitas bem ensaiadas. As figuras marchavam na disciplina; o homem da maromba4 conduzia o bando, importante; papai velho exibia vaidoso a cabeleira de algodão e as longas barbas de espanador; o morcego, na frente, fazia piruetas, agitando as asas de guarda-chuva.
Mascarados solitários produziam hilaridade com pilhérias antigas e ditos grosseiros, inconvenientes. Outros, reunidos, firmavam as críticas, motivo de receios e alarmas5. Alusões a notáveis acontecimentos do lugar, comentários e fatos melindrosos e particulares, mexericos tolos, sem graça nenhuma. Criavam-se inimigos. E às vezes se liquidavam contas velhas.
Um cidadão espiava o morcego e o parafuso, de longe. Dois ou três embuçados musculosos entravam-lhe em casa, batiam-no a cacete. Berros, súplicas, sangue, apitos, sumiam-se na festa. Ninguém sabia donde vinham as pauladas – e era bom evitar opiniões. No ano seguinte as críticas seriam menos ofensivas.    
 

 * Graciliano Ramos nasceu em 1892, em Quebrângulo, no Estado de Alagoas. Foi na sua terra alagoana que Graciliano Ramos apanhou estes instantâneos tão expressivos de um carnaval antigo de província, com todos os seus aspetos peculiares, alguns já desaparecidos, outros já evoluídos e multiplicados.

1Pixaim – carapinha.
2Papangus – mascarados.
3Frevo – magote.
4Maromba – vara de equilibrista.
5Alarmas – sustos.

In ANTOLOGIA DE CARNAVAL, organizada por Wilson Louzada, com desenhos de Percy Deanne, Secção de Livros da empresa Gráfica “O Cruzeiro”, S.A. Rio de Janeiro, 1945

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