1.14.2011


Da Culpa Colectiva e da Melancolia Poética (quase) Ancestral
O Nosso Mundo

Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos,
Como um divino vinho de Falerno!
Pousando em ti o meu amor eterno
Como pousam as folhas sobre os lagos…

Os meus sonhos agora são mais vagos…
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno…
E a Vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e pressagos!

A Vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas, hemos de bebê-la!

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor!... As nossas bocas juntas!...

In Livro de Soror Saudade, Florbela Espanca


Mais ou menos de acordo com as irregularidades documentadas pelas instituições públicas, nomeadamente as que mais devem às utilizações externas e seus utilizadores, estamos todos de acordo: elas não prestam, estão em contínuo abuso de poderes, abordam as suas funções como se fizessem favores pessoais, afugentam aqueles com quem antipatizam e adulam os seus correligionários, nomeadamente os indivíduos da mesma cor política, do mesmo clube de quadrilhice, que frequentam a mesma paróquia ou com quem estabeleceram afinidades sexuais mais ou menos explícitas. É indubitável. Porém, depois com aquele tipo de descaramento que nem já os ciganos exibiam, no tempo em que o seu principal desporto era fazerem ciganices, vêm-nos pedir os votos, a colaboração, os pareceres e “aventuras” estatísticas, justificando a opção pelo programa e intenção de purgresso. São uma boa cambada, essa é que é essa, se dirá e dirão todos quantos não mamam da mesma teta, ou mamando sabem muito bem que isso é um roubo que estão a fazer aos demais, sejam eles seus conterrâneos, seus concidadãos, seus compatriotas, seus familiares, ou simplesmente seres da mesma espécie, dita humana, pese embora a animalidade grasse nela como em bem poucas outras espécies desse reino – o animal.
Portugal já passou por uma crise idêntica, em 83, dizem agora aqueles que querem branquear a situação degradante em que nos encontramos. Mentira, afirmam quantos não se deixam enganar pela intenção ilusionista e malfazeja dos mamões desta man/mada orçamental, escrita por linhas PEC. E ainda mal começámos a remover as frutas podres, as reinetas ronhosas, os elementos prejudiciais, os oportunistas e anibalistas do nosso infortúnio, eis que os usuais detentores da razão imaculada se levantam proclamando injustiça social, descriminação sobre quem é esperto e expedito, vociferando que o mal não está em ser-se rico, mas no contrário; nem em ser amigo do alheio, sobretudo se esse alheio estiver totalmente alheio das suas responsabilidades, consciência cívica, maturidade e participação democrática. Pois bem, o mal não está em sermos um país de ricos, mas num país de ricos que fizeram fortuna à custa dos seus concidadãos, normalmente defraudando-os, humilhando-os e difamando-os – os pobres. É por isso que falar de FMI e FEE os incomoda tanto? Lérias! E Medina Carreira que o diga, se não é verdade que desde 1960 que andamos de candeias às avessas sob o signo económico da torna baldia…
Portanto, não há quem se admire da utilização dada à crise: serve para despedir quantos ainda se mantinham a trabalhar, embora fizessem qualquer coisa útil, ou até produzissem bens e serviços vários – e necessários. Os outros podem ficar, esclarecem as administrações locais, regionais e centrais. Não fazem nada de jeito mas fazem número, o que dá sempre jeito, incluindo nas manifestações do regime. Servem o défice, estimulam a incompetência dos gestores públicos e governantes, desculpabilizam as más políticas quando acertam na aplicação e a boas quando falham na execução. E trazem os sindicatos, bares circundantes e restaurantes adjacentes bem-dispostos.
Do outro lado da barricada – ou será gralha… terá o cronista querido dizer “burricada”’? – há ainda quem se insurja contra a carestia. “Que está tudo a aumentar, que não pode ser, que não é comportável", e demais atoardas similares. Parece que é a primeira vez que isso acontece, pela admiração geral e trejeitos complementares… Não, não é! Talvez seja a primeira vez que obriga alguns a pensarem nisso, pois que era coisa que só acontecia aos outros, aos mais desfavorecidos, contudo foi o pão nosso de cada dia desde há muito tempo. Alguns não conheceram mesmo dias melhores. Andaram sempre em empregos de caca, OTJ e OTL, os POC e cursinhos da formação profissional, sem jamais saírem da cepa torta da precariedade. E não contam, esses? Contam. Pelo menos para quem sabe contar sem ser pelos dedos de carteirista por conta do Estado.
Portugal é assim, portanto, algo que se nos entranhou no mais recôndito da dúvida, que estranhamos, como à Coca-Cola do Fernando, mas a que não conseguimos pôr cobro. É uma doença crónica com oito séculos de História… E como Florbela, os seus sonhos, esses monumentais e instigadores de dar novos mundos ao mundo, são agora mais vagos, quais fantasmas tristes e pressagos, onde a antigas naus pousam como folhas sobre os lagos, muito distantes dos oceanos feéricos e desconhecidos, tenebrosos e habitados por aventesmas, mostrengos e Adamastores.
Os nossos maiores medos hoje estão entre nós, dentro de nós, não vêm de fora nem do nosso desconhecimento acerca do mundo, convivem connosco e ensombram-nos de desgraça: são a injustiça e a corrupção, a instabilidade financeira e a sabotagem estrutural, nomeadamente a que diz respeito ao desenvolvimento humano. Já nos desacreditámos tantas vezes que nem quando nos mentimos deixamos de ter esperança. Sabemos que nos estamos iludir, que nos mentimos descaradamente, sem remorso nem pudor, porém mantemo-nos fixos naquela fisga de aventura e ousadia onde tudo é alucinação. É como um vício, um vício de jogador que quase sempre perde, que perdeu todos os seus bens e valores, mas continua a jogar quanto lhe resta porque acha que a sorte lhe baterá à porta, na derradeira esperança, e então recuperará tudo quanto perdeu, aos poucos, de uma só vez. Enfim, será resgatado. Ele sabe que isso não existe. Nós sabemos que isso é impossível. Todavia, não nos submetemos à realidade e continuamos a acreditar. Pode ser num milagre, num salvador, num encoberto e desejado, chamado Sebastião ou não, que o que importa não está à vista mas nas profundidades recônditas e inauditas da alma – e da gesta lusitana. É a lusitania, ou mania de ser lusitano…
É uma melancolia colectiva, subscrita desde a ancestralidade afonsina, no alcantilado da história. Da História, que a letra grande enaltece a gesta… Talvez a rematar mais uma dinastia, um período sem modelo patriarcal, nem geração ínclita, propensa ao desgaste dos recursos como dos valores patrióticos. Em que essa geração, posta em sossego no aconchego do poder e benesses da corte, quer perpetuar os seus privilégios, ainda que sacrifique o futuro, aniquile o sentido de sustentabilidade do restante povo.
Devemos esperar o quê de uma situação nacional deste cariz? Nada. E porquê? Porque já chegámos ao nosso mundo, esse que também era o de Florbela, cheio de bocas unidas por uma língua líquida, a verter-se em ondas no acidulado oceano em que já naufragaram quase todas as soberanias.

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