8.22.2006

TESES EM CONDOMÍNIO FECHADO

2. O trigésimo sexagésimo sexto dia do ano ou como a androgenia não é solução prà bissexualidade (literária)

A coexistência entre dois seres que se amam e odeiam, invejam e admiram, partilham o mesmo habitáculo mas por diferentes motivos, nunca foi, é ou será pacífica. Praticam idêntico jogo bélico, utilizam iguais armas, têm semelhantes objectivos mas usam técnicas e regras pouco similares, próprias, obstinadas de originalidade, ainda que no mesmo suporte e em proximidade de registo. Porque se raramente se afastam um do outro sem sucumbir (à saudade ou guerrilha interior), também mais raro é conviverem sem capricharem e competirem pela hegemonia e ascendência, efectiva titularidade de presença e efeito na personalidade criadora, através da posse e submissão do seu par.
Pese embora prosa e poesia não estarem em perpétuo conflito uma com a outra, nem as duas com as demais artes, ou qualquer ciência, religião ou filosofia, a não ser quando este conflito possa gerar mais arte, mais literatura e, principalmente, sirva para intensificar o gosto por elas, implementar o debate sobre as suas criações e relacionamento interdisciplinar, convenha para argumento e motivo de avaliação de melhores narrativas ou poemas, o que é indubitável é que a sua evolução é caracteristicamente biológica, tal e qual como a das árvores de grande porte que, ao crescer, procurando a incidência do sol, o tapam às suas vizinhas de floresta, essencialmente as mais próximas independentemente do seu grau de parentesco e sexualidade, atrofiando-os para as aniquilar gradualmente e sob a sua sombra as levar a perecer.
Porque se a cada texto é dada uma personalidade, ela deriva sobretudo das condições em que é germinada mais do que da apetência de degustadores ou acuidade técnica e laboral que o seu autor lhe concedeu, uma vez que nunca é estruturada em função deles mas como afirmação propositada de género no seio de quem a autorizou, e que, ao abandonar o sexo dos anjos e da indefinição, nele se instaurou, estabeleceu, fortificou, converteu e instituiu, edificando-se e consolidando-se em plenitude pela preterição do seu reverso, mas ganhando-lhe as característica topológicas daquela que abandona, não por traição, antes por assimilação de conquista territorial de capacidades, fronteiras e competências, apropriando-se do léxico e conhecimento gramatical que a ambas pertencia.

À boleia de um adoptante adoptado

Por exemplo, talvez a isso se deva que Maria Alzira Seixo, não tenha evidenciado qualquer hesitação em afirmar, num livro tão pequeno quão fundamental, cujo título redunda no essencial sobre o autor, que “na carreira de José Saramago, ao encontro da palavra poética segue-se o encontro do género privilegiado: o romance. Mas é essa palavra que o funda, semente lírica que faz vibrar a ideia, nessa vibração implicando o escritor que a produz, esse mesmo que é sujeito activo do trabalho de escrita e que vimos erguer-se literariamente diante de nós com força maior nos livros de crónicas, seus traçados essenciais do caminho principal que se abriu na determinação cerrada de Manual de Pintura e Caligrafia. Vimos como o Manual hesitava entre a ficção e a verdade, entre a representação do mundo e do homem (o pintor que escrevia os factos da sua vida) e a produção de um modo específico que é o da arte (criação da obra, reflexão sobre essa criação, sobre a própria linguagem que o veicula), entre o homem e o tempo (o eu que se perde e se recria, e essa duração simultaneamente corrosiva e modeladora que lhe permite ser).”
O que traduz, em súmula, a influência dos resquícios formalistas, para quem era mais importante o aspecto formal do texto do que o seu conteúdo, desrotulando este escritor português de romancista que também fez "versos", conforme quis anunciar e propalou a voz oficial e corriqueira nos cânones do sistema educativo, chocando e fazendo eclodir uma versão que melhor correspondesse ao seu desovar genérico de sociedade de produção e consumo, que intencionalmente declarou a poesia como persona non grata aos avanços da economia, tentando enaltecer e valorizar o prosaico ao invés daquilo que ele realmente é, atendendo a que a nossa "nacionalidade" genérica é a da família de origem onde nascemos, daquele formato literário em que demos os primeiros passos criativos e que, ao caso dele, foi a poesia, obrigando assim afirmar, em abono da verdade e da justiça, que ele é sim um poeta que também fez romance, género ao qual dedicou a maior fatia do seu trabalho, tempo e obra, no qual até terá sido laureado com o maior prémio global dedicado à literatura: o Nobel. Pois se um "poema cadáver" é aquele que mais nada revela do que a "evidente notícia" nele o prosador quis dar, de onde exala a pestilência do género abortado, o que é certo é que a poesia de José Saramago está longe de ser defunta, da mesma forma que a sua prosa não é necrófaga, mas principalmente um enleado jogo de alegorias e associações livres, metáforas desenvolvidas e baladas literárias sem rima que também pertencem e balizam o universo da poética.

Madame de Bovary sou eu

De onde seja legítimo inferir que não há uma pessoa que faz ao mesmo tempo com idêntica acuidade prosa e poesia, pintura e fotografia, cinema e crítica, música e dança, voz e orquestração, mas que há sim alguém que está neles todos, mesmo quando é outros e produz algo que não o iniciado na vocação de si. Os heterónimos, os pseudónimos, as personagens e narradores, não são assim uma dispersão do ser mas uma confluência dele com delimitações de tempo, espaço e modo circunscritos no universo do original – o autor. O primeiro a despertar para a criação, logo aquele ou quem se levantou mais cedo para calçar as botas e… caminhar.
Porque o importante não é escrever muito com pouco sentido, mas dar a cada restrita frase todo o significado possível, o que deveras se denota na célebre afirmação de Flaubert "madame de Bovary sou eu", porquanto cada enunciado é a compressão do seu emissor, em cada verso está o poeta comprimido, como em cada parágrafo há um centro nuclear do seu autor, quase átomo narrativo ou matriz genética daquele que se narra sem ser o narrador propriamente dito.
O que quer dizer, sem apelo nem agravo, que ser uno em matéria de criação literária é ser tantos, se possível todos quanto habitam e povoam o universo textual, o painel de personagens e figurantes que consubstanciam os enredos, as tramas, pois todos eles são aquele que os descreve e o ambiente onde se mexem, ainda que aquele que os produz não o faça com hora marcada para ser um ou ser outros, não se levante um dia personagem, protagonista ou poeta, ou acorde predisposto a "maquilhar-se" mais de novelista do que de tradutor de idílios, não se predefina que entre determinada data e outra posterior o poeta pintará um quadro ou o cineasta congeminará uma crítica, o que não podemos é esquecer que em verdade se estipula que na "vida" dos poetas há um período para descansar de si que normalmente é utilizado para serem outra coisa, tendo alguns sido nele prosadores, primeiro como hobby mas de que não regressaram às origens da poesia, da mesma forma que houve demais profissionais que se especializaram nos seus passatempos a ponto de os passar a exercer profissionalmente.
Ou seja, é difícil acreditar que há (ou havia) dois, três, quatros seres em um só, dado que a criação em nada se assemelha ao estado de gravidez, nem a manifestação artística se equipara à clonagem ou reprodução de si, mas não restam dúvidas que há um ser capaz de se dispersar por todos quantos a sua imaginação concebe, quer poeta como contista, conforme no que inicialmente se afirmou, formatou e se expressou, podendo depois cambiar-se, alternar-se entre um e outro vida fora, repetindo-se e repetindo-se até já não saber qual deles primeiro foi, embora nunca o tenha realmente deixado de ser.
Excepto no 366º dia do ano que por cada ano nos acontece, dia que nos celebra por celebrá-lo e nos atribui o diploma de peritos de ser sonhando, em que os lutadores abrem trégua para se encontrar sorrindo, apertar as mãos num passou-bem à esquina de qualquer frase insignificante que nos significa, nos resume sem saber que melhor o faz do que tudo quanto acreditámos poder fazê-lo, ou que algo houvesse alguma vez com poderes similares, não obstante constantemente reajamos mal às incompreensões mútuas, já que escrever é o acto social mais solitário do mundo, concebível apenas no praticável e concreto diálogo entre a pessoa e ela própria, de si para consigo mesma – mas sempre sempre à vista de todos!

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