8.10.2006

TESES EM CONDOMÍNIO FECHADO

1. Quando o escribalismo é confessado pelos seus escribalistas

Poucos conhecerão o prodigioso efeito que uma esferográfica pode ter na mente perversa e alucinada de um poeta… Alguns, para melhor usufruírem dela e a manobrarem conforme o seu prazer e argúcia, até fizeram prosa!
Entre a corrupção e a heresia apenas existe a esbatida fronteira da materialidade profana. Porque dos rituais, tanto de uma como da outra, também chamados de analogias e anáforas, não rezam destrinças de maior. As mais das vezes, nenhumas mesmo. Se nos pomos de contar, raramente conseguimos evitar que a alegoria salte por’í arriba, suba como seiva humedecendo a caligrafia, invada de insistente esperança cada nervura das pincolhas e pendericos, até à vírgula mais distante das folhinhas ternurentas. Altivas. Góticas. Onde moram os botões de florir e cabritar com as cores do arco-íris.
Motivação, arma e corpo de delito, são os três pilares essenciais do homicídio. Definir quem o praticou, é a tarefa fundamental do crítico, do detective, do teórico literário. Se o poeta se aperceber a tempo das intenções assassinas do prosador pode inverter os resultados matando o matador, atraindo-o com a sua entrega, de sedução em sedução, insinuando-se gentilmente, enleando-o em seus fios de metáfora, de imagem, numa teia de estilo; manietando-o primeiro, para em seguida o devorar. E, nesse caso, o argumento de legítima defesa poderá iludir bastante o grau de justiça dos leitores… Sobretudo dos mais expeditos e viciados em polissemia!
No entanto, não é por muitas das testemunhas serem coniventes e cúmplices na negação, que um crime deixa de ser crime. O jogo de ilusão, a artimanha, a rasteira, foram diluídos, os rastos apagados, pela subjectividade dos contornos, imprecisão da luz e relevos do lugar, a "ponta-e-mola" escondida nas bainhas dos recônditos avessos, é certo, mas o cadáver é indesmentível. Está lá. Sem remissão e impossível de tresler, ainda que por linhas tortas. Inexoravelmente. Porque quando a prosa cheira a poeta morto ou a poesia exala o odor do narrador defunto, eis que nos deparamos com uma estesia moribunda à procura do jazigo semântico onde possa repousar em paz. Definitivamente e sem rebuço de frase morta. De texto caído na vala do anonimato e esquecimento, entre as paredes frias e lisas da memória marmorínea.
Sancho e Quixote acompanham-se para melhor se vigiarem (mutuamente). Espiam-se na busca incessante da oportunidade de ouro para desferir o golpe fatal e de inocência garantida. (Não há quem melhor se inocentei do que o crédulo injuriado, o néscio seduzido, o idealista confrontado, o utópico contradito; o narciso ignorado, o moralista demitido, o sonhador defraudado, o político desmentido...) Quais escanções do sublime, como Romeu e Julieta que provocaram a morte mútua, o duplo homicídio, em que a vítima conduz o seu afortunado ao suicídio, demonstrando que embora o crime tenha sido perfeito, para se cometer se tem forçosamente que arriscar a vida muito para além do que é sensato e admissível fazer, conforme qualquer viciado ou toxicodependente sabe bem, palmilham a península enredando tramas, tecendo censuras e sentenças, aglutinando passados de cavalaria em nome de futuros enganos, ou ludibriantes idiotias românticas. Xerazade e Harun Al Rachid. Tristão e Isolda. Pedro e Inês. Dante e Beatriz. Bonnie and Clide. Dr. Jekill e Mr. Hyde. Álvaro de Campos e Bernardo Soares. Pessoas e Ofélias. E demais indeiscências duma lista que se desenrola para o eterno.
Essa crónica de morte que os íntimos exacerbam com a técnica do esgrima, usando o florete sentimental com a rigorosa precisão do bisturi, teve tão caricatos quão exagerados modelos de denominador comum em conquistadores e serial killers, D. Juans e Jacques Estripadores, Isadoras Ducan e Virgínias Wolf, Hemingwais e Anais Nins, sem conto na quotidianidade das artes e letras com sua vasta panóplia de suportes, arquétipos, correntes e eclosões na germinação da vontade de poder e eternidade; essa crónica (anunciada ou não, tanto faz) do percurso das vítimas até ao seu carrasco, agredidos que também são agressores e agressores que são igualmente vítimas, quer de si como das suas presas, que caminham lado a lado até ao desfecho final, onde definitivamente se separarão ficando irremediavelmente ligados, jungidos e incluídos um no outro; essa contínua peregrinação entre este e essoutro que recorrem à técnica da intercepção para ganhar a hegemonia na palavra que já é sua, e apenas sua, até à ocupação definitiva, capitular, que transforma o autor em colónia de si, território perseguido e possuído muito para além dos limites e fronteiras da razão admissível, na mútua subjugação total pela perspectiva de um orgasmo incandescente de glória e fama, qual Big Bang extra-sensorial, do outro mundo, que lhe desoculte o ser, marque o indício da genialidade, catapulte o seu virtuosismo de executante, imprima a pegada de arte no calcário amolecido da História, testemunhe seu esmero e empenho, enquanto ritual de sacrifício de que o assassino se socorreu para cometer o seu mister; esse desespero das canções apaixonadas, trovas e coplas a que a interpretação semiótica oferece a semântica da fusão em branco, é certamente o grito de quem já não fere mas prefere na morte de tudo ou nada, a câmara escura onde somente o ultravioleta das vozes uníssonas não queima a película dos sonhos andromedais, e o irradie da mistologia genérica onde cada obra mais não é do que um tratado sobre a vida espiritual (e contemplativa) do seu autor, conforme pensa a mole dos críticos ingénuos e humanistas naif, que confunde invariavelmente a feitura com o feitor ou justifica, explica, compreende e avalia apenas do acto a emotiva (ante)mão que o desfere.
Enfim, essa sina de rixa sem cisão, que em Portugal é particularmente masculina, igualmente testemunhada no percurso de escritores como Júlio Dinis, José Régio, José Gomes Ferreira, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Fernando Pessoa, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira, José Saramago, Eugénio de Andrade, etc., que se a uns trouxe a voz da poesia e o eco da prosa, noutros o vice-versa, independentemente da ancestralidade que neles vingou, se a do bardo, se a do contista, se a do trovador, se a do repórter, que não acarretou nem dela adveio mal maior ao mundo senão o terem eles arriscado perder um para "salvar" o outro, embora quase nunca tenha evidenciado esse thriller de morte por asfixia, servindo-se dele como tema principal dos seus enredos, o que é certo é que muito se viu espelhado e reflectido nas suas teorias da literatura, nas crenças que nela alimentaram, nas conjecturas que dela fizeram, cuja redundância caiu sempre e por atacado na ideia de que escrever não é sinónimo de criar mitos, mas antes um esforço para os esmoronar, cruzando géneros e artes diversas, esbarrondá-los avulso atribuindo-lhe novas sinapses de ligação às díspares vertentes do real, eliminar-lhe os socalcos da significação, os rituais, litanias, limites, pré-ocupações, feudalismos de corrente e palimpsestos, até que em nenhum deles fique vestígio de fé, muralha de palavra sobre palavra, pedra em pé que se corporize, nada que sobressalte a estesia de quem nela se anula e esta, se torne missionária sem "boa nova" por seu turno, se faça indefinível e indissociável do universo onde habita e que a habita, nele se funda como ele em si se fundiu, dilua a culpa que transpira o verbo dos "romancistas" que abortaram os poetas que lhe nasceram dentro, ou os aedos que sepultaram a fome de contar na sede do canto, como quem se demonstra indigno de representar quem foi, quem é, por saber-se um ser erguido sobre o esqueleto de outrem. Ou, resumindo, autorizando o sonho para lá do acutenáculo em que o acondicionou, incubou, transportou e permitiu reproduzir-se em infinitas agulhas (significantes aguçados, afiados), adagas de transfusão, quais estiletes perfurantes em que a sua cotovia interior se despenhasse cravando o peito. O que nem precisa de ser entendido pela via do que está escrito mas pode (e deve) ser inventando conforme as tendências de cada um... Todavia, de ressaltar, após a escolha entre o texto e subtexto, somente um sobreviverá. O gesto será todo vosso e sereis julgados por ele. A cada assassino a sua culpa!
(JC)

Sem comentários:

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

Arquivo do blogue

Acerca de mim

A minha foto
Escribalistas é órgão de comunicação oficial de Joaquim Maria Castanho, mentor do escribalismo português