2.09.2005

UM MILHÃO DE SOLIDÕES


O camponês na cidade
fica desorientado:
mesmo as cabeças de gado
que guardava na herdade
do patrão
tinham mais sensibilidade
que a gente a correr que passa
e o afasta de empurrão.

Tantas casas, gente a rodos!
E o camponês às aranhas
para dizer «Bom dia» a todos...

Manuel Montez

1.

O povo corre em canais
como água que embebe a terra
dos campos do Faraó...

Gotinhas todas iguais,
umas menos, outras
mais, de bigode farfalhudo
ou c'uma perna bonita,

mas gotas
todas
iguais.

As mós dos arranha-céus
fabricam
co'a a voz dos Eus
concentrado de tomate.

2.

Nos autocarros à pinha
homens de boné e velhas
com papos
funcionários de jeans (RICA LEVI'S

- PARA VIVER LIVRE
)

falam de ordenados
mensais
de recordações
as velhas fotografias
das férias esta
juventude está perdida.


3.

A cidade vive
cada vez mais gorda
os peões - zero
um, zero dois

- são já instrumentos
de precisão metálica.

Mas -
ALERTA À POPULAÇÃO ATENÇÃO
ATENÇÃO PARAFUSOS!...
-

A guerra ainda
Não acabou:
algumas carcaças
ainda
r e s p i r a m.

4.

Fitamo-nos
eu e ele
ela e eu
na rua que rola
que nos arrasta
a subúrbios diferentes.

Os olhos pegam-se...
empedramos o rosto
e seguimos em frente.

Mas por detrás do véu
todos nós sabemos
que os olhos ficaram
com fome.

5.

Nunca nos tínhamos
visto antes,
mas saudámo-nos...

Graciosamente!

NA GRANDE FÁBRICA DO MUNDO

Na grande fábrica do mundo
toda a gente marca passo.

E a alma? A alma...
A alma é um boato virulento
da infame reacção; é coisa
que não existe,
proclama o século vinte e um
com razão: foram os engenheiros
que a levaram
à morte por asfixia.

Na grande fábrica do mundo
não há homens,
só formigas.

INCITAMENTO AO SONHO

Parece-me que ainda não acordei
do sonho da noite passada
mas vejo muito bem as pessoas
que falam de dinheiro e enfrentam a cidade

como gente ajuizada
deixando-se suavemente transportar
sobre carris nas vidas de segunda
classe
oh os malandros dos poetas que bebem
garrafas e garrafas de segundos
e apanham bebedeiras intangíveis
para os que olham a vida com
olhos assustados
tão receosos de cometer qualquer loucura
e ignoram o singular impulso de virar
a realidade de pantanas
porque eles só podem sonhar
enquanto ressonam
e não sabem que são vítimas
de uma grande conspiração
que os persuadiu sub-repticiamente
a viver só de noite um pouco
às vezes
e a sobreviver de dia e eles
já estão tão bem treinados que desligam
o canal da fantasia
logo ao primeiro toque
do despertador
mas os poetas esses
ninguém os consegue fazer parar de delirar
mesmo nas horas do expediente
e nunca prestam para os cargos
de responsabilidade

parece-me que ainda não acordei
do sonho da noite passada:
razão tinha o meu avô que já
há duzentos anos dizia
que se passavam estranhos fenómenos
de refracção na minha cabeça
e que nela se moviam roldanas
de mecanismos completamente inúteis
que não convinha pôr em marcha
de modo nenhum.
A doença dos poetas nem sequer
é altamente contagiosa
mas os afectados os afectados
esses começam a sofrer visões
de Santidade
e não conseguem nunca opor-se
ao avanço em tropel dos
desejos fortes galopantes:
oh, viajar por todo o mundo
e ser tudo! Os momentos
formidáveis de ser o D. Juan sonhado
o astronauta de chapéu de palha do asceta ideal
o rebelde perfeito
e arquitectar como o Jeová genésico
o mundo ao sabor da fantasia
ser o Touro
e o Leão
e o Homem e a Ave de Rapina
e o Equilíbrio sim
equilíbrio que era o que eu ainda
mais gostava porque sou um desequilibrado
um desequilibrado felizmente porque os outros
que já nascem com a balança certa
esses coitadinhos não se mexem.

Parece-me que ainda não acordei
do sonho da noite passada,
parece-me que ainda não acordei
do sonho da noite passada!

NO CAFÉ

Os meninos estão no café.
Os meninos já são
uns homenzinhos.
Conversam e riem
apreciam especialmente
contar anedotas
mas por vezes a língua
cansada recusa mover-se
e o vazio é tão "chato"!

E um menino levanta-se
e dá uma voltinha. Passados
alguns círculos de saudável
exercício dos sapatos
volta a descansar os pés fumegantes
enquanto coze a fogo lento
a férrea cadeira pintada.

E os sons sem alento
caem no chão sonolento
como húmida seradura.

É deles feito o papel
em que eu escrevo
palavras que soam
como a lixa do carpinteiro.

OS POETAS AGORA

Belas paisagens de campos verdes e dourados,
riachos, alces, árvores antigas
nos deu Poe,
Jack London mostrou-nos os lobos,
os gelos eternos, as terras selvagens
onde os peitos solitários podem respirar
enfim.
E as visões amadas que deles bebemos
são mais actuais que nunca:
mais vivas agora,
agora que sonhamos com a natureza
libertada;
agora que vemos a alucinação
do desejo profundo de um novo mundo
de puros traços;
agora que já não existem
para nosso deleite e elevação
da alma
nem rios azuis
nem vivendas Landor
senão para quem tem muito dinheiro;
nem bosques sagrados onde sábios
druidas façam os seus conciliábulos.
Agora que para pasto da
imaginação clorótica dos novos poetas
só existem plantações industriais
de batateiras alinhadas;
caixotes de lixo espalhados
pelos cantos das ruas transversais
de madrugada
céus enlutados de óxido de chumbo;
águas turvas onde flutua a trampa!
Bairros económicos de solidões caseiras!

E o espírito diz: Morte.
E o espirito avisa: Desolação.
E o espírito vê: Armagedon!

Mas, na esplanada amena,
veraneantes sorvem a sua Coca-Cola
despreocupada
mente.

Lúcio Castanho

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