10.28.2004

AS COGITAÇÕES DE XERAZADE (1)

"As bombas vêm de fogo, e juntamente
As panelas sulfúreas, tão danosas;
Porém aos de Vulcano não consente
Que dêem fogo às bombardas temerosas;
Porque o generoso ânimo e valente,
Entre gentes tão poucas e medrosas,
Não mostra quanto pode; e com razão:
Que é fraqueza entre ovelhas ser leão
."
(Luís Vaz e Camões, in OS LUSÍADAS)

É cada vez mais notória a influência que os políticos tiveram na ideia de instrumentalização dos órgãos de comunicação: popularizou-se em termos perniciosos e geniais. Agora, toda a gente pensa que é legítimo servir-se desta sempre que precisa dela para mostrar a sua argumentação contra as injustiças, embora ninguém se deixe ver quando está em causa. Foi assim em Coimbra, quando os estudantes estavam a levar solha da polícia, que os envolvidos chamaram a atenção das televisões para os factos, mas depois tentaram tapar as câmaras com jornais e mãos na altura da libertação do estudante preso e/ou agredido. Seguiu-se o mesmo, mas de forma inversa, em que o sargento da GNR nunca se manifestou até à altura em que foi sentenciado, após o que, intencional e propositadamente, se dirigiu às televisões presentes para passar o recado da sua inocência aos pais. Idem no caso do 1º ministro quando quis falar à nação acerca de tudo e nada, e principalmente demonstrar o seu incómodo perante o caso Marcelo Rebelo de Sousa, de que se manifestou vítima absoluta, comentador que a usou quanto achou por bem, e todavia alimentou tabu desde a sua demissão da TVI até ontem, quarta-feira expectante, a gozar em pleno as cinzentas cinzas duma tempestade anunciada.
Não se sabe ao certo onde se chegará, com a relativa apetência pelos mass media, mas é de supor que não voltaremos a descobrir o caminho marítimo (e de progresso tecnológico) para as Índias, ou sociedade do conhecimento, porquanto de há muito outros valores se "alevantaram". Até porque prevista no roteiro está a dimensão europeia, com o seu tratado constitutivo e moderato modus vivendi social, apetrechado por todos os compromissos de convergência e legislação que a suporta. Algo anda realmente mal no reino das comarcas, e muito dificilmente se passará esponja conciliadora sobre o pó da memória de suas recentes intervenções, decisões e (in)consequências. Além do que suas majestades, os políticos do status quo vigente, agarrados que estão ao baronato, se não apercebem que estão debaixo da mirada dos eleitores, que não andam assim tão distraídos como aparentam e que se não se manifestam é somente porque reconhecem a enorme fragilidade do poder, dando-lhe corda para se enforcar, sobretudo a classe média arrolada como principal pagadora das crises, e que mantém em pena suspensa os últimos desmandos governamentais: taxas moderadoras, lei das rendas, colocação de professores, distribuição arbitrária da verba orçamental, que lesa substancialmente os sectores da educação, saúde, trabalho e segurança social, atirando para o saco sem fundo do desperdício algumas reformas em curso sem terem chegado ao fim, e, por conseguinte, não colmataram ou resolveram os problemas que as geraram.
Hoje, quando me levantei, ainda os cães da madrugada ladravam. Indistintos os reflexos da aurora, ditavam, pouco a pouco, que a pressão censória dos grupos económicos, dos partidos políticos e dos corpos colegiais de algumas instituições do Estado, é indesmentivelmente eficaz sobre os fazedores de opinião, e que esta é um obstáculo (facilmente removível, ao que parece) para a consolidação de estratégias de promiscuidade entre os governos, entidades financeiras e as administrações da maioria dos órgãos de comunicação portugueses. Que o presidente da nossa república sabia o que se estava a passar, mas preferiu honrar o compromisso de sigilo duma conversa que tivera em privado, e fechar-se em copas, preferindo assistir de camarote ao desenrolar dos acontecimentos, ou a garantir que uma instituição de Abril, a Liberdade de Expressão, se mantivesse intacta. Que o Parlamento pode ser instrumentalizado por grupos económicos exteriores consoante as suas necessidades de financiamento, e que as cabalas involuntárias são uma ficção paranóide susceptível de activar a capacidade e precisão afirmativa do criancismo ministerial. Que Santana Lopes não acertou à primeira, e que se prepara para recuar, fazendo uma remodelação do governo, mas agora tarde, a más horas e à semelhança do que o seu antecessor (Durão Barroso) terá feito em Estrasburgo, embora que por motivos diversos, pois que enquanto o presidente político da Europa o faz para evitar dissabores, o primeiro ministro será para remediar e limpar o serviço que fez. Que as pessoas, principalmente os gestores e presidentes administrativos, deixam de o ser logo que não estejam nas instalações das empresas e institutos que gerem, mesmo que estejam a jantar com amigos num hotel qualquer e durante essa refeição não falem de outra coisa senão da actividade da empresa, dos seus negócios, estratégias, dificuldades, fundamentos e objectivos. Que tudo aquilo que é pode ser e não ser ao mesmo tempo, segundo a nova lógica da sociedade de comunicação. E que se os jornalistas se andaram a formar para fazer bem o seu serviço, parvos foram eles, visto que a única regra deontológica que rege a sua actividade é a visão que o proprietário tem de órgão de comunicação, assim como das suas estratégias administrativas pontuais.
Ou seja: não é de admirar que qualquer borra-botas popular se ache no direito de determinar o que é ou não é noticiável, exigir das câmaras e dos jornalistas que lhe sirvam os argumentos, interesses, propaganda, jocosidade lamechas, receios e recados, visto que toda a gente com responsabilidades políticas, económicas, religiosas, empresariais, financeiras, de reitorias, associações de estudantes, dirigentes de clubes de futebol, da coisa e da ordem pública, criminalidade e quejandos, instalados nos meandros do poder de decisão, considera que é para isso mesmo (e só isso) que eles servem: para os convocarem e acorrerem lestos, sorridentes e prazenteiros, sempre que algum deles está com o rabiosque às bufas! Para os aliviar nas exigentes tarefas da hegemonia e ajudar a construir o seu imperiosinho napoleóptico! Enfim, para ouvir as preces, de quem até já a Fátima foi, e não obteve milagre... Principalmente porque sabem, que se lhe acenarem com parangonas e chavões, eles caem, e aos saltinhos eles vão; pois como diziam Camões, entre ovelhas, santos, santinhos e madonas, é grande fraqueza ser-se leão!

AS COGITAÇÕES DE XERAZADE (2)

Sem dúvida estaremos a construir a nossa desgraça, com a benfazeja acomodação às agendas capitais, oriundas do parlamento, governo, presidência e tribunais, e a embarcar no mesmo jogo alienatório que sustentou a vida à filha do grã-vizir que, não obstante saber do juramento do sultão em se não deitar mais do que uma noite com a mesma mulher, para lhe tirar a vida no dia seguinte, preferiu usufruir as honras do seu leito, arriscando a existência por um capricho da esperança e elevado crédito nas qualidades da narrativa. No entanto, é sobejamente conhecido, que o risco é uma profissão segura para quem supõe que o presente não passa de um futuro a fazer-se ontem, com os sobressaltos correspondentes, as arrelias concomitantes e os desaforos que o tempo (relógio) biológico nos tem de há muito reservados. Por isso, em pleito do tem que ser, adiantemos mais um capítulo, antes que o capitular se nos imponha.
E por diversas razões, mas sobretudo por uma. Porque de igual modo nos pode acontecer o que ao Orlando Cardoso (OC), de Pombal, sucedeu; que o apagaram do mapa on line, o despediram do emprego, e lhe queimaram a reputação, a fim de que mais ninguém o admita ao seu serviço, com receio de quantas sevícias lhe reservem pela ousadia. Ali, no coração de Portugal, à beirinha do pinhal de Leiria!
Segundo reza o mail que o próprio emitiu, na sequência do caso Marcelo, tinha OC um blog, que administrava com perícia e desenvoltura tamanha que nos dois meses de existência abichara 6 700 visitas, além da entrada na ordem do dia em conversas e comentários pé de esquina, o que o tornara incómodo para a edilidade local. Ora, tendo a empresa em que o bloguista trabalhava negócios com a autarquia, o edil visado não esteve com meias medidas e pressionou o empresário a despedir o energúmeno, o terrorista, o franco-atirador, o escolho, o Cheguevara do Litoral, o ferrabrás, o agitador, que lhe empecilhava os mandos municipais, denunciando-os como desmandos. É claro que o facto deste ter dois filhos para criar e cuidar, mulher desempregada, e letras para pagar, o não demoveu de caciquismos obsoletos e antidemocráticos, mas antes, pelo contrário, o inspirou tamanha fragilidade do incauto comunicador, para fazer-se valer da sua posição de autarca e político do partido da governação, logo de peso e apoiado parlamentarmente, e assim remover o obstáculo que lhe obstruía as vias narcísicas à sua napoleidade. O que considera legítimo e praticável, porquanto vê como enorme injustiça o ser-se ameaçado um imperador no seu próprio império, agravada ainda esta com a possibilidade de lho altercarem e subtraírem... Até porque segundo a engenharia maquiavélica da sua mente possessa, não pode haver imperador sem império, nem trono sem chibata!(Aliás, ideia comungada pela maioria dos (pseudo) empresários da comunicação, ao considerar os comentadores, analistas, opinion makers, simples e insignificantes assalariados ao seu dispor, mão-de-obra barata para faltas, quedas nos rankings e quebras de audiência, testas-de-ferro para intimidar políticos, críticos e concorrência, cabos de guerra com título de "amigos", carne para canhão e propriedade sua, utensílios de arremesso para as demandas pessoais, estratégicas e de tráfico e influências. Que sustenta que um órgão é um órgão do seu corpo capital, e não qualquer instância de caridade de onde a prática do bem, das boas maneiras, falas e intenções, lá por ter já gerado um primeiro ministro e um secretário geral do principal partido da oposição, não quer com isso dizer que se arrisque na repetição da manobra, assim de borla e ingenuamente, em produzir também um presidente da república - ainda que dos bananas!... Porque dono é dono, mesmo que só do feijão preto que lhe meteram no cu, para aprender a andar sem deixar cair tudo quanto tem e seu - pelo menos consoante o que diz o povo, clarificando sabiamente que "se dermos dez tostões a um pobre, criaremos um soberbo" -, e os donos da comunicação social, directores, proprietários e editores, acham absolutamente normal puxar as orelhas aos comentadores, chamar-lhes a atenção para o que dizem, como o fazem e sobre quem, ou despedi-los desde que suspeitem estarem a ameaçar-lhes os negócios e/ou prestígio.)
Agora, o curioso da questão, é que este caso, além de inscrito na linha de crimes contra a Liberdade de Expressão no nosso país, leva-nos para um outro campo, que é o da credibilidade do suporte electrónico e da validade legal dos documentos emitidos ou recebidos por esta via. Ou seja: nenhum político, empresário, legalista, gestor, reconhece como válidas as comunicações (electrónicas) de natureza digital, equiparadas nos efeitos com aquilo que se atribui a uma carta registada ou fax, de notificação, rescisão de contratos, prova factual, mas é passível de validade e reconhecida eficácia na divulgação de conhecimentos científicos e didácticos, de publicidade e negócio, de propaganda e promoção divina, territorial e cultural.

(CONTINUA...)

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