6.07.2024

contrabandista (o)

 

O CONTRABANDISTA

 

1.     1. APELO DO CAMINHO

 

São gestos simples duma criança os pés

Os ombros, as mãos abertas.

Mesmo uma falripa sobre a testa

Um suspensório a arrastar na areia...

Uma pedra a bater na latada,

Um chamamento de mãe contrariada.

Ah, e o enigma da estrada

Que nunca termina na curva

Como fora previsto!

 

2.     2. CONTRABANDEIO

 

É essencial de mim, português

A navalha, o relógio, o isqueiro!

Por vezes, a caneta

Ind’assim me não esqueça

Daquilo que me vai na alma.

Seguem-se os dias aos dias

Na formação do ontem de amanhã

E há um povo que não se cansa

De afiar o ânimo no esmeril da solidão

De correr seca-e-meca à procura

De escorregar pelas ladeiras lamacentas da ilusão.

 

3.     3. TALEGO

 

Esse resto tão pouco...

Tão cintilante o sol

Capilar sobre a vereda

Abrigo da tarde

Entre pinheiros

Agudos sonidos dos cartaxos,

Os ombros vincados ambos

A bolsa no lamaçal das costas.

 

4.     3. RECRUTAMENTO

 

Revejo o adro. A tarde arde.

Posando em fila circular as botas ferradas

Esperam a fotografia imediata dum capataz.

Aos velhos e crianças apenas é concedido o número

E não o nome. Esses ficarão meia-lua perdida – olhos da calçada

Por suas bocas serem a jarra em que não há semente.

Arde a tarde e a esperança do corpo

Consumindo a fome que em casa se passa.

Arde o silêncio na competição dos olhos

Na ânsia de saber quem vai desta jornada.

Arde a silhueta do cavaleiro desembocado da rua

O matraquear dos cascos, o cintilar das esporas...

Chapéu no sobrolho, chicote apontado

Divide e escamoteia, joeira e não ouve:

“A jorna, já sabem. É pegar ou largar!“

«Mãe: não valho nada!!...» Ainda que quisesse

Pegar na foice e suar o que faltava, a cabeça curvada

Quem daria ao filho daquele que entre cavalos partiu

O sol a sol do pão, desde que o sonhasse ou soubesse?

Revejo-te adro. E àquele dia, mãe

Em que num ai, reconheceste também

Ser sempre o caminho do filho

Seguir as pegadas do pai!

 

5.     4. PRISÃO

 

Pela fresta da entreaberta porta soam ferraduras

Crinas nervosas agitam o medo, bater de cascos.

Um latido de cão sem coleira à porta da taberna...

As fitas mosqueiras que dedos ronceiros suspendem...

O suspeito ar de caso nas alvas fachadas...

Uma criança descalça atravessando o escaldante empedrado...

E um gesto de Agosto na supressão de mais uma boca.

 

6.     5. REFERENTE

 

A mesma criança do outro poema

Tenta passar de novo a rever-se

No espelho do sonho e surpresa.

Fecha o triângulo e surge

As guitas do pião escorrendo dos bolsos

Os gestos tímidos dum esgar de mel

Os olhos perdidos em tamanhas cores.

Adiará a infância para melhor tempo

Que a mãe já reclama a presença

De um Homem na casa.

 

Joaquim Maria Castanho


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