6.12.2020

TER OU NÃO TER JUÍZO




  TER OU NÃO TER JUÍZO


Se vires chegar a gaivota com o bico aloirado de sol, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires o pôr-do-sol raiado de violetas e uma brisa que vem do sul, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires uma criança descalça e desnuda correndo pela relva do Jardim do Palácio, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires algum velho sem-abrigo lambiscando a beata nos dedos amarelados, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o louco profeta de barbas despenteadas e sujas discursando contra o consumismo exagerado, a energia nuclear, os Trumps e Bolsonaros na nossa COVID 19, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o cão esquelético e faminto como pool de todos os abandonados do mundo, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires um papiro esvoaçando sobre a multidão mecanizada, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires cair da janela anónima uma fotografia rasgada, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires os teus olhos brilharem numa noite de luar, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires um sorriso urgente num rosto desconhecido, não estranhes; é a minha forma de estar contigo.
E depois de eu ter chegado
Muito depois do ainda não
E muito antes do já de volta
Finge que me desconheces
Faz gestos de negativa revolta
Faz negaças de comiseração
Faz traquinices e benesses
E dá o sonho por acabado.

Mas depois de eu implorar
De pedir um pouco de atenção
Inventa nomes que me trocam
Inventa partidas que te preguei
Inventa razões de negação
Inventa ditos que te adulam
Inventa actos que não pensei
E belisca-me para acordar.

E então, depois, se acordando
Ajoelhar a teus pés, indeciso
Apenas pra te pedir um sorriso
Diz-me, seca, fria, rezingando
«Ora, que é isso? Por favor... Tem juízo!»

E se então vires voltar ao nada uma fotografia, um papiro, um louco, um velho, uma criança, um pôr-do-sol, uma gaivota, um sem-abrigo, um cão, um sorriso, não entristeças, nem estranhes; é tudo o que fui, que está de partida. É a nova era que principia!

Joaquim Maria Castanho


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