A SEBENTA
In illo tempore – No tempo em que eu andava
em Coimbra, ainda a boa e imortal sebenta reinava em todo o seu esplendor! Eu
nem fazia sequer ideia, ao chegar a Coimbra, do que vinha ser isso da sebenta;
– mas industriado logo a tal respeito, vim a saber que era uma espécie de
folhinha litografada, formato 8.º, que saía todos os dias compendiando a
explicação do lente; que se chamava sebenteiro o que a redigia;
que custava sete tostões por mês cada uma; que eram sempre três em cada ano,
visto as cadeiras em cada ano serem três; e, finalmente, que, enquanto o lente
explicava a lição para o dia seguinte, só o sebenteiro ouvia o lente, e que os
mais, todos, e eu portanto, podiam muito bem ler o seu romance, fazer o seu
bilhetinho e passá-lo, ou comentar os que vinham dos outros, – ou então, se
preferíssemos, dormir ou fazer versos!
Não havia nada melhor!
Além disso, algumas metiam também as suas piadas; outras davam caricaturas; – e
sebenteiro havia que amenizava por tal forma aquela estopada, que até dava
versos para o fado no fim da sebenta, e convocava os condiscípulos, em
anúncios, para troupes* aos caloiros, ou outras pândegas!
As sebentas tinham em
geral oito páginas, e cada um ia pelas suas ao cair da noite, e eram duas por
noite; – mas, se o lente se tinha alargado na prelecção, ou o sebenteiro era
maçador, às tais oito páginas acresciam outras, – e a esse suplemento, que era
sempre amaldiçoado, chamava-se o resto!
(...)
Está pois a ver-se que a
sebenta era uma instituição universitária; – mas ainda assim, coisa curiosa,
cheirava sempre a contrabando; e tudo quanto de mais difícil podia desafiar na
aula a habilidade de um cábula, se era chamado à lição, cifrava-se em manejar
a sebenta com habilidade, de modo a que o lente a não visse... Ele bem
sabia que ela estava lá; mas, enfim, era preciso esconder essa impostura, – e
isso era um trabalhinho de prestidigitação, em que, se alguns eram eminentes,
outros, coitados, eram uma lástima!
Bom estudante, em geral,
era, pois, o que manejava a sebenta com habilidade, – e alguns havia de tal
modo peritos que a sugavam sem lhe deixar uma gota, e o lente nem percebia...
Olho na sebenta, olho no lente, passando-a através do livro se
era preciso voltar as folhas, parecia até que nem tinha sebenta; e os outros
menos habilidosos, esses, ou a extractavam em pedacinhos de papel onde só
figura de apontamentos, ou então, resumiam nas margens o texto
das páginas, e, deixando as margens fora de um livro, ou em geral de um folheto
qualquer que se pudesse enrolar em forma de batuta, cantavam a
sebenta como uns papagaios, – e ia-se a ver não sabiam palavra!
... Por me dizia uma vez
o Manuel do Marco da Feira, dono de uma litografia, ao ouvir a Cabra tocar
para as aulas no dia seguinte, que era o primeiro dia do ano lectivo:
– «Bem! Começa-se a
estudar amanhã a maneira de se não estudar!»
* Caloiro,
propriamente, é o estudante de preparatórios; mas também se dá este nome ao novato,
isto é, ao estudante do 1º ano de qualquer Faculdade. Os novatos cortam o
cabelo e fazem troça dos caloiros; e os do 2º ano (estes principalmente) fazem
o mesmo aos novatos, e também aos caloiros. O novato repetente não é
troçado nem troça.
A brincadeira das troupes
é muito estúpida, e eu em poucas entrei. A mim cortou-me uma o cabelo à Porta
de Minerva, uma vez que eu ia para casa ao anoitecer e não levava lunetas
porque se me tinham partido esse dia no Seminário, numa refrega com os formigões
(seminaristas) – e por isso só a vi quando lhe estava nas unhas, e o tesourão
em cima da minha cabeça e à roda de mim a malta silenciosa dos embuçados, todos
de moca para se eu resistisse.
(...) (...)
in TRINDADE COELHO, In
Illo Tempore, pág. 145 e segs.
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