ERROS
MEUS, VÃO SABER, CALAR QUE MENTE
"Tente dar a
impressão de que tudo o que diz foi cuidadosamente pensado: vai ver que o
disparate mais banal pode parecer inteligente e profundo."
In JIM HANKINSON, O Especialista Instantâneo em Filosofia,
tradução de Desidério Murcho, Gradiva, p. 64. Lisboa, 1996
Há alguns anos atrás, um engenheiro de papas e
achocolatados, viajado e arteiro, meio aruá que cargoseou diversas pessoas do
convívio comum, puxou os galões de cosmopolita desenrascado, expedito e sabido,
e, durante uma conversa entre bicas mornas e cigarradas de filtro molhado,
corrigiu-me a fala duas vezes duma assentada, mas a que não dei importância de
maior. Recentemente, num jantar social, daqueles em que a humildade e
subserviência é vista como requinte de sublimada astúcia, outra pessoa que não
esse embusteiro das pantalhas a retalho, nem com ele minimamente parecida,
repetiu a proeza, não a insurreta façanha de afirmar o contrário daquilo que
estava dizendo, corrigindo as minhas palavras, mas sim a de cometer os
mesmíssimos erros que o dito-cujo engenheiro tinha cometido, ao sublinhar
saberes certos e afiançados quando me emendou a "dizedura", e ainda
com aquele vitorioso ar de satisfação que invariavelmente acompanha os grandes
e abnegados feitos.
Os dois enunciados corrigidos, e presentemente em questão, tinham
a ver, por um lado, por eu ter empregado o termo "reticente" para
expressar que sentia reservas e algumas reticências quanto às qualidades de tal
livro, salvo erro O Prisioneiro, de
Erico Veríssimo, pois me parecia estar ele muito próximo do, por outro lado, de
André Malraux, intitulado A Condição
Humana. Mais coisa, menos coisa, que as palavras a esta distância, no
tempo, tendem sempre, e irremediavelmente, a transfigurar-se...
E que o aspa-torta corrigiu com superior desplante,
afirmando não ser o por mim nomeado título de André Malraux, mas de Smorset
Maugham, bem como se não devia dizer "reticente" mas sim
"retinente". Na altura dei-lhe um «pois, 'tá bem» à Dennis McShade, e
continuei prego a fundo na defesa do meu ponto de vista, prosseguindo na mira
da consumação da tese que então me propusera, e que não devia ser de genial
quilate, porquanto por maior esforço e empenho que aplique dela me não lembra
absolutamente nada. Coisa que podia ter ficado por aqui, não fosse a palestra
de outro arauto nas aficionadas lides da rés literária (-e cultural), por
sinal, deveras diferente do primeiro, quer em grau (académico), como em género
(de pessoa), num banquete entre gente remota e edificada da portugalidade
vigente, que muita chegada se diz por nunca se ver nem se dar, ter atribuído a
autoria de A Condição Humana ao autor
de Servidão Humana, W. Smorset
Maugham, mais adiantando que estava retinente quanto a dar um
determinado presente de Natal ao neto, prestes a fazer 16 anos, pois temia que
uma motorizada todo-o-terreno, topo de gama e afamada marca, viesse a acelerar
sobremaneira a possibilidade do menino vir a bater com a alcatra no alcatrão um
dia destes.
Ora, retinente, como todos os falantes desta tão maltratada
língua sabem – ou desconfiam... –, quer dizer tinir muito, produzir som agudo e
prolongado, impressionar vivamente o ânimo a, etc., etc., e quem o empregar em
vez de reticente, está a dizer exatamente o contrário daquilo que queria
afirmar, que era o pôr reticências, dúvidas, receios, acerca do brum-brum em
questão. Do mesmo modo que quem escreveu A
Condição Humana foi André Malraux, e não Smorset Maugham, autor de Servidão Humana.
Posto isto, no serôdio e reposta a verdade, tenho que,
lamentavelmente realçar que o maior erro não foi o dessas pessoas, foi o meu.
Porque, para não parecer ríspido e assertivo, sabichão e arrogante, tudo
rótulos que vulgarmente me colam, principalmente quando digo o que penso e isso
não agrada aos presentes, me permiti ao laxismo e desleixe da comunicação e da
língua, que são as maiores habilitação e riqueza que um povo pode ter. Erro
rotundo e hediondo por me ter faltado a coragem de interceder e defender quem
me defende e identifica ante todo o mundo e quaisquer circunstâncias – a língua
em que falo, crio e penso.
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