1.03.2013

ERROS MEUS, VÃO SABER, CALAR QUE MENTE

"Tente dar a impressão de que tudo o que diz foi cuidadosamente pensado: vai ver que o disparate mais banal pode parecer inteligente e profundo."
In JIM HANKINSON, O Especialista Instantâneo em Filosofia, tradução de Desidério Murcho, Gradiva, p. 64. Lisboa, 1996



Há alguns anos atrás, um engenheiro de papas e achocolatados, viajado e arteiro, meio aruá que cargoseou diversas pessoas do convívio comum, puxou os galões de cosmopolita desenrascado, expedito e sabido, e, durante uma conversa entre bicas mornas e cigarradas de filtro molhado, corrigiu-me a fala duas vezes duma assentada, mas a que não dei importância de maior. Recentemente, num jantar social, daqueles em que a humildade e subserviência é vista como requinte de sublimada astúcia, outra pessoa que não esse embusteiro das pantalhas a retalho, nem com ele minimamente parecida, repetiu a proeza, não a insurreta façanha de afirmar o contrário daquilo que estava dizendo, corrigindo as minhas palavras, mas sim a de cometer os mesmíssimos erros que o dito-cujo engenheiro tinha cometido, ao sublinhar saberes certos e afiançados quando me emendou a "dizedura", e ainda com aquele vitorioso ar de satisfação que invariavelmente acompanha os grandes e abnegados feitos.
Os dois enunciados corrigidos, e presentemente em questão, tinham a ver, por um lado, por eu ter empregado o termo "reticente" para expressar que sentia reservas e algumas reticências quanto às qualidades de tal livro, salvo erro O Prisioneiro, de Erico Veríssimo, pois me parecia estar ele muito próximo do, por outro lado, de André Malraux, intitulado A Condição Humana. Mais coisa, menos coisa, que as palavras a esta distância, no tempo, tendem sempre, e irremediavelmente, a transfigurar-se...


E que o aspa-torta corrigiu com superior desplante, afirmando não ser o por mim nomeado título de André Malraux, mas de Smorset Maugham, bem como se não devia dizer "reticente" mas sim "retinente". Na altura dei-lhe um «pois, 'tá bem» à Dennis McShade, e continuei prego a fundo na defesa do meu ponto de vista, prosseguindo na mira da consumação da tese que então me propusera, e que não devia ser de genial quilate, porquanto por maior esforço e empenho que aplique dela me não lembra absolutamente nada. Coisa que podia ter ficado por aqui, não fosse a palestra de outro arauto nas aficionadas lides da rés literária (-e cultural), por sinal, deveras diferente do primeiro, quer em grau (académico), como em género (de pessoa), num banquete entre gente remota e edificada da portugalidade vigente, que muita chegada se diz por nunca se ver nem se dar, ter atribuído a autoria de A Condição Humana ao autor de Servidão Humana, W. Smorset Maugham, mais adiantando que estava retinente quanto a dar um determinado presente de Natal ao neto, prestes a fazer 16 anos, pois temia que uma motorizada todo-o-terreno, topo de gama e afamada marca, viesse a acelerar sobremaneira a possibilidade do menino vir a bater com a alcatra no alcatrão um dia destes.
Ora, retinente, como todos os falantes desta tão maltratada língua sabem – ou desconfiam... –, quer dizer tinir muito, produzir som agudo e prolongado, impressionar vivamente o ânimo a, etc., etc., e quem o empregar em vez de reticente, está a dizer exatamente o contrário daquilo que queria afirmar, que era o pôr reticências, dúvidas, receios, acerca do brum-brum em questão. Do mesmo modo que quem escreveu A Condição Humana foi André Malraux, e não Smorset Maugham, autor de Servidão Humana.
Posto isto, no serôdio e reposta a verdade, tenho que, lamentavelmente realçar que o maior erro não foi o dessas pessoas, foi o meu. Porque, para não parecer ríspido e assertivo, sabichão e arrogante, tudo rótulos que vulgarmente me colam, principalmente quando digo o que penso e isso não agrada aos presentes, me permiti ao laxismo e desleixe da comunicação e da língua, que são as maiores habilitação e riqueza que um povo pode ter. Erro rotundo e hediondo por me ter faltado a coragem de interceder e defender quem me defende e identifica ante todo o mundo e quaisquer circunstâncias – a língua em que falo, crio e penso.


Portanto, embora tardia e a despropósito, que se saiba que não fujo ao merecido chá-de-casca-de-vaca e a nota de culpa aqui fica, dando manifesto relevo ao fato de serem estes erros meus, e de outros portugueses, que transformam a nossa maior fortuna, a língua portuguesa, na vã e má sorte de qualquer lana caprina, sobretudo por sermos reticentes quanto ao carinho que por ela temos, deixando retinir o desacordo cacofónico e carência vocabular onde quer que seja, preferindo mesmo outros idiomas ao nosso sempre que necessitamos de comunicar com demais povos. Não raras vezes, com tal perfeição e pronúncia, que os populares dessas nações, nos atribuem diploma superior em seus cânones de lavores e incumbências de aparentada inteligência e profundidade. É dose!   

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