7.25.2008

Olho Neles
Relatos de uma história verídica


Margaria Oliveira



Conforme indica um ditado chinês, dos raros que conheço, não por os não ter procurado ou não ter lido, mas porque à maior parte deles os esqueci por falta de utilidade prática no dia a dia, quando uma pessoa cai ao chão se deve levantar com a ajuda dele. Seja, portanto, este novo item de partida para a interpretação crítica do livro de Margarida Oliveira...
O desafio é, assim, não descobrir a motivação que baseou a sua feitura, mas antes perceber até que ponto os princípios nos quais se terá fundamentado resultaram como meio e não como fim (de prova), assistindo à heurística própria do texto, que é o capital suficiente e necessário para que ele chegue ao término ensinando-nos a aprender com ele o desenvolvimento de si mesmo. Os relatos e retratos das experiências familiares, sociais, comunitárias e pessoais, à medida que se desenrolam, vão transformando sempre noutra coisa aquilo que se retrata e relata, porquanto a confissão e processamento deles – afirmar que se é tímido, segundo Jean-Paul Satre, é já deixar de o ser – catapultam a identidade emissora para uma tomada de consciência anteriormente impossível, visto faltar-lhe a reflexão que a prepara e invoca. A catarse não é uma terapia em si mesma, mas ao acontecer sara as brechas abertas sem as quais nunca se alcançaria, pelo que a introspecção exercida, cada passo cometido nela, lhe faculta a eclosão, o despertar para a sua realidade e, consequente, o seu usufruto. Comunicar é expugnar a incomunicação que nos habita. E revelar os nós que a manietam é deslaçá-los, desenlear o novelo ou tumor que temíamos.
Quando Margarida, a narradora desta aventura "épica" que é a luta derradeira de alguém pela vida, transcreve os efeitos directos (e secundários) de um nódulo cerebral patogénico, cancerígeno, está a usar o tratamento exacto e rigoroso, com o bisturi da palavra, para operar o imbricado novelo, igualmente maligno, de que enferma a comunicação entre as pessoas do mesmo habitat, que partilham os mesmos valores e ambiente, conceitos e espaços-quando, quer elas pertençam a uma família, a uma comunidade, a uma região, a um povo ou a uma espécie. Está a ensinar-nos que a extracção dos nódulos existenciais provocados pela falta de comunicação (compulsão) carecem seguidamente da radioterapia (exposição aos raios) e quimioterapia (ataque com químicos exteriores), tratamentos assaz dolorosos, mais brutais ainda que a dor provocada pela doença, para que a vida flua e deslace harmoniosamente duradoura. E que todo esse sofrimento pode ser em vão, mas que não deve ser por reconhecê-lo, que temos o direito de o não tentar ou dele desistir. Porque o exemplo que ela nos dá, a sua coragem, ao partilhar connosco a sua verdade, os seus sentimentos, emoções, afectos, valores, dia a dia, família, ideias, expectativas, esperanças e fracassos, realidades e sonhos, muito mais do que satisfazer as suas necessidades de resiliência e reganhar a elasticidade, a flexibilidade e espontaneidade perdidas, o jogo de cintura suficiente para fintar o destino, ou resolver – melhor dito: revolver, os pomos de incomunicabilidade de si consigo própria –, os traumas de crescimento no autoconhecimento a caminho da maturidade e emancipação.
O mostrar-se em carne viva, sem a pele da representação de outra persona que diga por ela como ela intimamente se vê, o desarmar-se das teias da literalidade, da camuflagem do eu sob o pretexto da criação literária, da narrativa de ficção, do fingir que é vida a vida que deveras vive, denunciando o cancro, é um passo determinante para prescrever-lhe o tratamento e transmitir-nos a certeza de que nada existe incomunicável por natureza, e que se o operarmos a tempo e com determinação, com amor, trabalho e sabedoria, podemos vencê-lo. Seja esse cancro pessoal, social, familiar ou regional, religioso, cognitivo ou económico. É dizer que Jorge não morreu em vão, e que a sua vitória foi pírrica, mas foi autêntica. É dar-nos igualmente a possibilidade de tirar uma lição daquela lição que a vida lhe deu, pois que cada um de nós não passa de mais um projecto da vida, uma peça da estratégia que ela encontrou para se eternizar. Uma peça substituível, uma passagem como afirma, que ela troca quando, no seus critérios e propósitos, não nos nossos, acha que deve ser substituída por outra, mais exactamente, tomar outra forma e natureza. Reciclar. Transformar em memória. Que a morte não existe nunca, se esta perdura. E o papel da arte, sobretudo da literatura, é mudar o sítio aos significantes a fim de melhor poderem desfrutar do seu significado. É dar-lhe o lugar que conquistaram na comunicação do cosmos.
Por conseguinte, eu não creio que Jorge Oliveira tenha morrido definitivamente (ao fim do livro). Apenas subiu a pulso para onde melhor pudesse continuar a sua luta pelas causas em que acredita piamente: a liberdade de escolha, sem discriminar ninguém, e na criação de óptimas condições de vida, em particular dos mais desfavorecidos. Voltou aos comícios. Com uma das filhas, talvez a sua menina, às cavalitas, às costas se dirá, às "calhandras" como diziam os homens do campo, o mais crescido à frente, e os outros dois, cada um em sua mão. Ou seja, se a morte imagina que o venceu, bem pode tirar o cavalinho da chuva, que foi ele quem a usou, para erigir-se, apoiando-se nela. Além de que o cheque sonhado, não obstante o elevado montante, teve cobertura garantida, que não se traduz apenas em €uros mas sobretudo em algo mais valioso, que apenas os bancos de genes podem, autorizadamente, pagar: a certeza de que a vida é muito mais do que aquilo que dela vemos e vivemos, bem como que os sinais para o seu cumprimento, ainda que desconheçamos conscientemente a sua descodificação, como interpretá-los, o nosso inconsciente o fará por nós, ditam-nos a conduta a seguir, veiculando-nos como seus dilectos cúmplices – e testemunhas. Cheque endossado a cada um que vai lendo, ou assistindo, ao nascimento de uma verdadeira escritora, com firma autenticada pelo cartório notarial da modernidade.
(Que tal como no ditado chinês, se ergue da escrita em que se viciou irremediavelmente, apetece-me adiantar, à laia de P.S. – Post Scriptum, para evitar as falsas interpretações daqueles que gostam de ver política em tudo.)

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