9.18.2007

Os Borra-Botas

Reconheçamos que ser-se aquele ou aquela que se é, em nome e corpo inteiro, não seja para ninguém tarefa fácil. Normalmente as pessoas, todas elas, são apenas pessoas, mas isso incomoda-as severamente, e leva-as a recorrerem a artifícios vários para se iludirem. Gerando catástrofes em si, tsumanis interiores, pequenos infernos pessoais, consequentes do oportunismo existencial, numa declarada tentativa de inverter a seu favor a sua principal desgraça, aquela que a seus olhos demonstra que afinal eles ou elas são tão-só aquelas e aqueles que não são, desafortúnio que lhes corrói a preguicite original e paradisíaca, princípio da condenação, que é a de ter de trabalhar para se sustentar (e aos seus), desempenhar uma profissão, distorcendo os títulos académicos em títulos nobiliárquicos, ostentando uma sinédoque inflamável conforme a sua dor, sendo-lhe directamente correspondente ao sofrimento e infelicidade sentida, e mais neles se apostando segundo mais intensa ela é, a infelicidade, única medida que compreendem e aceitam para racionalizar os seus graus de humanidade. Então escoram-se, entrincheirados e entrincheiradas, entre as colunas de se ser Dr. e Dra., ou Engº. e Engª., como se estas nomenclaturas fossem pilares que lhes precedem o nome e sustentam a alma, sobretudo onde o nome não conta para nada mas sim o quantitativo, da nota obtida e notas aforradas da conta bancária, entre comas e desfalecimentos vários, característicos do stress de quem representa um papel que lhe é alheio, sem estatuto para o representar, lhe não é próprio, investindo-se do poder da máscara a fim de exigir que à persona seja atribuída o valor de pessoa. Esquecendo-se, em seguida, disso mesmo.
Então os professores e professoras esquecem que as pessoas só são professoras e professores, quando estão nas salas de aula e no tempo da sua duração, às vezes no perímetro de acção da escola onde exercem o seu mister, ou quando muito em sua representação oficial. Que cá fora são fulano ou fulana tal, cidadã e cidadão tão distintos como quaisquer outros, incluindo os sem-abrigo, os membros da etnia cigana, os de cor diferente da sua, os homossexuais e lésbicas. Nos direitos. Mas não nas obrigações sociais, no respeito "pedagógico" pelo próximo e pelas leis, na postura ética, preservação da liberdade e ambiente, por exemplo, que aí andam sem desobriga da responsabilidade social que o cargo lhes acarreta, a civilização lhes reserva e o futuro lhes exige.
Então as doutoras e doutores esquecem que as pessoas só são doutores e doutoras dentro do raio de acção profissional em que se inserem, entre similares e congéneres da mesma área profissional e local de trabalho, desde que aí executem tarefas correspondentes aos currículos estatuídos nas suas habilitações académicas, mas só aí e em mais lado nenhum, ainda que no desempenho de obrigações políticas a que foram convocados em observância da profissão que têm. Que cá fora são simplesmente fulano e fulana tal, merecendo tanto respeito, deferência e qualidade no trato como qualquer outra cidadã ou cidadão, no que serão tão dignos de afecto, compaixão, compreensão e tolerância como qualquer estropiado de guerra, alcoólico, toxicodependente ou analfabeto, a quem é igualmente dolorosa a solidão e indiferença dos demais.
Então os padres e pastores esquecem que as pessoas só são padres e pastores nas suas igrejas, e mesmo nelas só o serão se no desempenho das suas funções sacerdotais, ou quanto praticam actos religiosos e rituais, ministram tarefas a pedido dos seus fiéis ou sacramentos, pelo que no restante tempo e lugares se não podem outorgar com direito a chapeladas e baronatos, nem com hipervalorizada opinião, seja a propósito do que for, mas sobretudo acerca de actos humanos, nomeadamente sexuais, afectivos e biológicos que desconhecem (sem pecado), pois são tão iguais no trato da vida profana sob as circunstância que o quotidiano determina, como qualquer laico ou ateu, não tendo por isso mesmo qualquer garantia de qualidade moral, consciência social e responsabilidade cívica, que nos permita considerá-los incondicionalmente isentos culpa, quer no capítulo das leis de Deus como nas dos homens, visto que a sua carne é tão carne como a carne mais fraca e alvoraçada pela serotonina, viciados nela como nós e qualquer um, incluindo os primatas nossos antepassados. E o seu imaculado espírito é tão fértil em fantasias como o dos mais maculados adolescentes, sejam eles humanos como animais, não merecendo superior deferência que qualquer trabalhadora do sexo ou massagista oriental, pois que de penas por duras penas, se é por uma questão de dureza e número, são as destas últimas as nos causam melhor prazer e alívio.
Ou seja, e em resumo, para não alongar demasiado a prédica, nesta coisa de ser-se não se é, confundindo o ser com a função, que isto do ser-se pessoa, é-se sempre pelo todo, não apenas pelo quinhão!

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