9.01.2004

No dia 27 de Agosto, pelas 17:30 horas, foi inaugurada, no Museu das Tapeçarias de Portalegre, uma exposição de fotografia de Aldrich Malzbender, centrada na temática "Ciganos do Alentejo", que foi suplementada com uma apresentação/leitura de alguns poemas de cariz alententejano, cujo reportório tinha, entre outros (por exemplo, António Patrício, Manuel da Fonseca, Florbela Espanca, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, Sebastião da Gama, etc., etc.), dois poemas de Joaquim Castanho, elemento da nossa Comunidade de Leitores, que aqui ficam, divulgados.


AUTO DA VISITAÇÃO

1.

Chiam travões, bate uma porta
E a tarde perde a calma monótona.
A mosca abandona a migalha sobre a mesa;
Há ainda a bolsa do casqueiro
A corna das azeitonas
Um pichel destapado
Uma rodilha sobre o oleado
Um corcho de cortiça
Um cântaro com a asa partida.


« Quem será? » ... os patrões foram a banhos,
O gado está no curral,
O carteiro já veio esta semana.
A terra não pode com amanhos,
As searas foram vendidas;
Crescem olhos tamanhos – quem será??

2.

Ressalva-a, emenda a voz
Estende os braços ao rés do tempo
Ao degrau da entrada, à sombra
Do umbral a moldura faz.


Pestaneja quando eu chegar!
Diz do trigo a colheita sólida
Do fruto a amora brava,
O suco revertendo do olhar,
Posto lá na linha da planície
Mais perto do mar do céu
Que barcos sonhos navegam
Na desvendação do futuro.


Deixa uma calça arregaçada sobre
As fivelas de couro com sola de pneu
O boné dependurado do trinco;
A porta a esconder-se na penumbra.


À telefonia... Essa, que soe baixo
Que a hora é de sesta.


Tem para mim um sorriso
De quem percebe porquê o sol

Tão quente, a fralda de fora.


Depois enxota uma mosca
Enrola um cigarro
E volta a entrar como se nada fosse...

« Maria!?! É o teu filho que chegou.
Partimos a melancia maior!! »

OS CONTRABANDISTAS

1.

apelo do caminho


São gestos simples duma criança os pés
Os ombros, as mãos abertas.
Mesmo uma falripa sobre a testa
Um suspensório a arrastar na areia...
Uma pedra a bater na latada,
Um chamamento de mãe contrariada.


Ah, e o enigma da estrada
Que nunca termina na curva
Como fora previsto!

2.


Contrabandeio.
É essencial de mim, português
A navalha, o relógio, o isqueiro!
Por vezes, a caneta
Ind’assim me não esqueça
Daquilo que me vai na alma.

Seguem-se os dias aos dias
Na formação do ontem de amanhã
E há um povo que não se cansa
De afiar o ânimo no esmeril da solidão
De correr seca e meca à procura
De escorregar pelas ladeiras lamacentas da ilusão.
3.

talego

Esse resto tão pouco...
Tão cintilante o sol
Capilar sobre a vereda
Abrigo da tarde
Entre pinheiros
Agudos sonidos dos cartaxos,
Os ombros vincados ambos
A bolsa no lamaçal das costas.


4.

recrutamento

Revejo o adro. A tarde arde.
Posando em fila circular as botas ferradas
Esperam a fotografia imediata dum capataz.
Aos velhos e crianças apenas é concedido o número
E não o nome. Esses ficarão meia-lua perdida – olhos da calçada –
Por suas bocas serem a jarra em que não há semente.


Arde a tarde e a esperança do corpo
Consumindo a fome que em casa se passa.
Arde o silêncio na competição dos olhos
Na ânsia de saber quem vai desta jornada.
Arde a silhueta do cavaleiro desembocado da rua
O matraquear dos cascos, o cintilar das esporas...


Chapéu no sobrolho, chicote apontado
Divide e escamoteia, joeira e não ouve:
“ A jorna já sabem. É pegar ou largar! “


« Mãe: não valho nada!!... » Ainda que quisesse
Pegar na foice e suar o que faltava, a cabeça curvada
Quem daria ao filho daquele que entre cavalos partiu
O sol a sol do pão, desde que o sonhasse ou soubesse?


Revejo-te adro. E àquele dia, mãe
Em que num ai, reconheceste também
Ser sempre o caminho do filho
Seguir as pegadas do pai!


5.

prisão

Pela fresta da entreaberta porta soam ferraduras
Crinas nervosas agitam o medo, bater de cascos.
Um latido de cão sem coleira à porta da taberna...
As fitas mosqueiras que dedos ronceiros suspendem...
O suspeito ar de caso nas alvas fachadas...
Uma criança descalça atravessando o escaldante empedrado...

E um gesto de Agosto na supressão de mais uma boca.




6.

referente

A mesma criança do outro poema
Tenta passar de novo a rever-se
No espelho do sonho e surpresa.


Fecha o triângulo e surge
As guitas do pião escorrendo dos bolsos
Os gestos tímidos dum esgar de mel
Os olhos perdidos em tamanhas cores.


Adiará a infância para melhor tempo
Que a mãe já reclama a presença
Dum homem na casa.

Sem comentários:

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

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Escribalistas é órgão de comunicação oficial de Joaquim Maria Castanho, mentor do escribalismo português