A
EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA
Por
José do Patrocínio Filho
O
Carnaval ia acabar.
Já
não restava na Avenida nada daquela excitação, em que, ao profundo dos
zé-oereiras, ao ritmo amaxixado da música dos ranchos, a multidão pulava,
corria, apalpava-se, vozeava, num efusivo delírio.
O
povo recolhia em teorias fatigadas, apinhado nos bondes.
Todavia,
grupos de raparigas e rapazes, encaminhando-se para casa, tentavam superar a fadiga,
cantando em coro:
“Na minha casa não se
racha lenha,
Não abunda água, não se
pica fumo…”
Eram
quase três horas da madrugada.
Pela
soleira das portas, mascarados exaustos, ou bêbados, jaziam derreados,
esfregando um pé descalço…
As
serpentinas, os confetes, no chão, já eram lixo e lama.
Fomos ao
High-Life Club.
Em
vão… Já estava no fim, aí também, o Carnaval. A concorrência combalida por
quatro dias consecutivos de renhidos combates de confete e de lança-perfume,
tentava angariar a derradeira champanha em torno às mesas de bacará. A música
desfalecia no jardim, tocando arrastadamente no coreto um reportório sonolento.
Tudo
ia resvalando aos poucos para as cinzas quaresmais da quarta-feira…
–
Adeus… Até prò ano! Vamos dormir?
–
Vamos… Isto está chocho: não tem futuro…
Neste
momento, porém, entrou pela sala em que estávamos um bando alacre de Pierrôs –
se é que Pierrôs podem ser rubros…
Foram
uma rajada! Virando as cadeiras, desarrumando as mesas, vociferando e rindo,
como se as amargas traições de Colombina fossem apenas uma fábula italiana…
Verdade
é que nesse grupo, Colombina, em maioria, se travestira das vestes do lírico
trovador… À orla das largas pantalonas rubras, apareciam, moldados na seda
transparente das meias pretas, finos, nervosos tornozelos, como os da égua de
raça de que nos fala o varão sensual do Cântico dos Cânticos… Sob as largas
vareuses de seda desenhavam-se rins esculturais, enquanto seios túmidos e rijos
saltavam como cabritos, cabriolando no rodopiar das danças.
Àquela
hora da madrugada, na sala quase deserta daquele clube suspeito, não se podia
contar com esses surtos espontâneos de juvenil folia: mesmo durante o Carnaval
as profissionais da vida alegre são melancólicas e lerdas, no Brasil… De sorte
que o cabaré só com espanto se animou ao contato febricitante dessa
alvissareira mocidade que o invadira.
A
música, no jardim, a grande reforço de zabumbas, rompeu imediata e
repinicadamente num maxixe comunicativo. E os robustos palhaços, aceitando
pares, saíram a requebrar com entusiasmo, abalroando com os garções e com as
mesas, que ruíam num grande estrondo de louças!
Depois
romperam os cantos, as vivas coplas apimentadas do estro efêmero e anónimo
Momo:
“A Bahia é boa terra…
Ela lá e eu aqui!”
A
noite ressuscitou. Recomeçaram as danças, espocaram champanhas, os notívagos e
as cocotes desceram todos do bacará, a festejar, a admirar aquela inesperada
juventude apetitosa, aquela alegria audaz e sem medida.
Só
saímos de lá com o sol de fora!
Pelas
ruas melancólicas das seis já havia gente a caminho do trabalho… Nós íamos para
as ostras, em automóveis buzinantes e rápidos.
No
mercado, porém, mal abancamos no “Garôto”, reclamando bucelas e moluscos, um
guarda-civil austero nos intimou a retirar as máscaras.
Discutimos.
Protestámos com energia. Mas as ostras já estavam servidas e, diante do categórico
«são ordens», o Carnaval acabou: as máscaras caíram.
Passou-se
então uma coisa muito mais surpreendente que tudo quanto ocorrera na ressurreição
da noite, no clube desolado onde os clowns
rubros tinham entrado com uma rajada de excitação: as carantonhas que viramos
durante toda a madrugada, rindo alarvemente com seus grossos lábios bestiais de
papelão, recobriam os rostos amarrotados pela pândega, mas juvenis e patrícios,
de algumas estonteantes senhorinhas.
E
ali, nas ostras, como num salão honesto, um pouco contrafeito, mas estimulado
pela audácia de alguns pares travessos de olhos amendoados e negros, um dos clowns, em cuja face espinhava uma forte
barba de quatro dias, apresentou-me cortesmente:
–
Minhas manas…
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