C A R N A V A L
Por
Graça Aranha* (1868-1931)
Alguns
dias depois explode o Carnaval. Maravilha do ruído, encantamento do barulho.
Zé-Pereira, bumba, bumba. Falsetes azucrinam, zombeteiam. Viola chora e
espinoteia. Melopeia negra, melosa, feiticeira, candomblé. Tudo é instrumento,
flautas, violões, reco-recos, saxofones, pandeiros, gaitas e trombetas.
Instrumentos sem nome, inventados subitamente no delírio da improvisação, do
ímpeto musical. Tudo é canto. Os sons sacodem-se, berram, lutam, arrebentam no
ar sono de ventos, vaias, klaxons e aços, estrepitosos. Dentro dos sons
movem-se as cores, vivas, ardentes, pulando, dançando, desfilando sob o verde
das árvores, em face do azul da baía, no mundo dourado. Dentro dos sons e das
cores movem-se os cheiros, cheiro negro, cheiro mulato, cheiro branco, cheiro
de todas as matizes, de todas as excitações e de todas as náuseas. Dentro dos
cheiros, o movimento dos tatos violentos, brutais, suaves, lúbricos, meigos,
alucinantes. Tatos, sons, cores, cheiros que se fundem em gostos de gengibre,
de mendubim, de castanha, de bananas, de laranjas, de bocas e de mucosas. Libertação
dos sentidos, envolventes das massas frenéticas, que maxixam, gritam,
tresandam, deslumbram, saboreiam, de Madureira à Gávea, na unidade do prazer
desencadeado. Carnaval. Tudo efemina-se. Glória da mulher. Ela, para ela e por
ela. Inversão universal. Homens-fêmeas. Mulheres-machos. Retorno ancestral ao
culto lunar, ao mistério noturno. Desforra da fêmea. Ressurreição das bacantes,
das bruxas, das diabas. Missa negra, tragédia negra, magia negra. Triunfa a
negra, triunfa a mulata. Música fanfarra, préstito, maxixe, samba. No noturno
da Praça Onze o negro e o castanho dominam os vermelhões das caras, das carnes,
das máscaras e das vestimentas alacres, vibrantes. Automóveis e bondes faíscam,
iluminam, enfeitam. Tudo aperta-se, roça-se freneticamente, gostosamente. Os
ranchos cantadores rompem a massa colorida, esquentada. Os cheiros doidos
alvoraçam-se e embriagam. Para matar a sede dos cantadores, dos berradores, os
refrescos de coco, os gelados de limão e abacaxi. Para a fome, os bolos de
negra-mina, pé de moleque, alcáçar, tapioca, manauê. África, Baía, Brasil.
Irrupção de benguelas, cogos, carapinhas, beiçolas, ancas, peitarias. Sobre os
corpos pretos a iluminação do ouro, da prata, das contas e das roupas, de onde
as cores saltam em delírio, amarelas, vermelhas, azuis, verdes. Música de
coreto. Bateria. Cantoria infinita, confusa, das bocas pretas, abismais.
Melopeia plangente para palavras canalhas. Fura a imobilidade ondulante um
grupo de baianas, dançando, saracoteando a grossa luxúria negra, farejadas,
seguidas por gorilas assanhados de beiços compridos, tocando pandeiros, pulando
lascivos. As baianas cheiram a cravo, a baunilha e fêmea. O mondronguinho
também fareja, aspira, entontece, empalidece, suspira, exclama:
–
Se em Portugal houvesse baianas, eu não saía de lá!
As
baianas suspendem as saias rodadas e dançam, nos requebros das ancas, no
arranco das umbigadas. A sensualidade é religiosa. O ritmo dos ranchos é
sacerdotal. É o drama sacro, grave e profundo. Na base da magia, o culto. O Carnaval
espiritualiza-se. No seu imenso manancial recebe as correntes das crenças, dos
cultos, que se transformam em festas. Também aí desaguam os cantos e as
melodias de todo o povo do Brasil.
*
GRAÇA ARANHA nasceu no Maranhão, em 1868, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1931.
O presente extrato foi retirado do seu livro A Viagem Maravilhosa. Nele se
evidencia uma procura de sintetizar toda aquela expressão de quase loucura
carnavalesca, num estilo que tenta a onomatopeia dessa festa de cores, ritmo e
sensualidade.