António Botto:
Real e Imaginário
António Augusto Sales
256 Páginas
Canção
Mutilada
A tarde cai amaciando a terra,
E enchendo-a de miragens tentadoras
Enquanto o sol,
Nos últimos alentos,
Se prende nos galhos de um arbusto
Que, ressequido, à beira de uma ermida,
Parece o próprio símbolo da Vida.
De enxada ao ombro, alguns trabalhadores,
Pisam o pó e as pedras dos caminhos
– Como bandeiras humanas
Movidas pelo infortúnio,
Sem alegria, sórdidos, curvados
Mas enormes no seu frémito de luta!
Ah!, nem a morte quer os homens
Quando eles são desgraçados!
As estrelas lá, no alto,
Riscam cintilantes brilhos.
E em bandos –
Os maltrapilhos,
Silenciosos e ateus,
Zombam do Amor
E até de Deus!
A miséria
Quando atola
O homem nos seus negros labirintos,
Dá-lhe, também, a loucura
Dos mais trágicos instintos...
Agora, neste momento,
A noite –
É uma imensa
realidade...
E eu julguei ver a Justiça
Afundar-se na penumbra
Da sua inútil realidade.
(Poema
de António Botto, que encerra o livro de contos Imagens do Alentejo, de Henriques Zarco, nº 2 da Colecção Amanhã,
edição da Imprensa Artística, Lda.,
em 1936. )
António Botto era homossexual assumido, gay
praticante e maricas confesso, não obstante ser casado com uma inteligente e
linda senhora. Aliás, o primeiro de uma plêiade de "travestidos"
sexuais que ainda hoje prolifera no universo das artes e letras nacionais,
europeias ou mundiais, e em grande parte tem feito delas o ninho das tendências
marginais. No entanto, é inegável que também era um genial poeta, um
extraordinário fabulador e maravilhoso contista, um exemplar dramaturgo, um
tradutor sofrível, um letrista respeitável, e um espetacular fadista,
arrebatado declamador e convicto versejador, quer no dizer pausado, quer no
improviso. Escritor de canções, colaborador dos jornais, boémio e dandy da Alfama bairrista da primeira
metade do século passado, que se vangloriava de ser o primeiro pederasta
lusitano com reconhecimento oficial, chegando mesmo a mandar imprimir
cartões-de-visita com tal "classificação", foi por muitos considerado
o Frederico García Lorca português, mas sem a morte, embora não menos trágica,
nem iguais preocupações, na vertente sociopolítica, que as do celebérrimo
granadino da Geração de 27. E nesta
obra se tenta situar, definir, o espaço-quando por que o circunvagou, a que
pertenceu, assim como especificar-lhe a faceta e perfil, os relacionamentos, as
paixões, fraquezas, limitações e obra, sem cair nas vulgaridades e clichés que
tantas vezes entorpecem o género biográfico.
Companheiro de tertúlia e protegido de Fernando Pessoa, conhecido de Régio e amigo de
Vilarett e Beatriz Costa, "disse" poemas e declamou como mais ninguém
(daquele tempo), aproveitando as nuanças da voz, o efeito das inflexões, a
musicalidade do ritmo, num jeito próprio que fez escola, sem que jamais se
sentisse incomodado pelo facto de, na Lisboa do seu dia-a-dia, as pessoas
continuarem descalças, cultivando e conservando hábitos, tão socializados,
educados e ribeirinhos, como o de estender a roupa encharcada à janela,
gotejando torrencialmente sobre os transeuntes, ou de escarrar para a rua sem
sequer averiguar se alguém vai a passar nesse ínterim. Espírito de irreverente
quadrilheiro, pregoeiro de boatos e vingativo nos desamores, praticou o
exercício da má-língua tão vorazmente que o batizaram de A Serpente, tal era
argúcia e mordacidade de sua feminidade venenosa, consolidando o cosmopolitismo
de Álvaro de Campos, e o que levou "alguns" a considerarem-no, de
certo modo e justificadamente, também mais um, ou outro heterónimo do poeta da Mensagem, na medida em que Pessoa se
reviu e realizou igualmente na poesia dele, além de na vida que a ela
correspondeu. Enfim um contista que escreveu sonetos nos guardanapos das mesas
de café, cantou o fado nas tascas severinas e marialvas, solitário frequentador
do Martinho da Arcada, visitou
diariamente as capelinhas livreiras do Chiado (Bertrand, Sá da Costa e
Portugal), e que borboleteando vagueou entre as prostitutas e gigolôs, as
bailarinas, pintores, escritores, jornalistas, atores e demais refugiados, na
capital, do provincianismo e moral do seu tempo.
Joaquim Castanho