Há Pessoas Capazes de Tudo!
“A minha casa tem sete portas
Todas abertas de par em par,
Aquelas em que o Sol não entra
É porque estão viradas prò Luar.”
In Terceiro Passo, poema de Joaquim Castanho, incluído no livro Nova Razão: Velha Aliança.
Acordar é um ritual que se reflete no carácter de cada qual, havendo quem tome as medidas adequadas à circunstância, e escolha aquilo com que o despertar melhor lhe caia para se entrincheirar num novo dia, como se a segurança e confiança fossem o principal reflexo e espelho do amor-próprio, ou o seu sucesso (existencial, incluindo a identidade) dependesse absolutamente desse momento. Não sou diferente de ninguém, nesse capítulo – pelo menos (e até ver). Todavia, embora frio o dia me entrasse pela janela da sala, que ocupa toda a largura dela, envolvendo a casa numa saudação de inesgotável irradiação, não me antevia disposto a “partilhar”, termo que atualmente no jargão das TIC serve para quase tudo, com Shara a acontecência ou sucedância da véspera. Porém, depois de ingeridas aquelas tostas estaladiças acompanhadas com geleia de morango que recheiam qualquer estômago com a suculenta mistura do cereal nobre (trigo) com o fruto açucarado dos corações ao rubro, não pude evitar-me ao sabor requintado de um café Qharacter Delta Q, intenso, mesclado, de aroma sofisticado e sublime, o preferido de quem não se deixa adormecer (e enredar) pelos placebos de viver, procurando lá fora, entre as erectas (quase românticas senão góticas) ramadas dos ciprestes os pintassilgos que costumam fazer seus ninhos onde a vizinhança me é mais próxima, precisamente na ponta do nariz, a meia sílaba de um trinado de alma cristalina, dei comigo a considerar que não tinha cometido qualquer falta grave, e que seria mesmo divertido ver-lhe a cara de espanto, de incredulidade, que faria se lho contasse.
Reparei que os pintassilgos não estavam lá. Tinham-se levantado mais cedo. Ou eu sensivelmente tarde do que o habitual… – que era o mais certo! – dando-me a sensata perspetiva de uma outra maneira de alinhavar o tempo conforme o modo de vida, uma vez que eles se teriam deitado, como aliás é seu costume, muito mais cedo e aproveitado a longa manhã para esperar a Primavera, a distar não mais que quinze dias, que no calendário das aves deve ser ainda menos que um saltinho de pisco ou toutinegra. Creio que o fazia para evitar decidir-me, adiar o momento em que o pão-pão, queijo-queijo, me encostariam à parede do agora-ou-nunca, inspirando-me no voo da fuga através da vizinhança, num Ícaro pouco convincente, confesso, embora a meiose de saudável engenho traga o morse do dit dit da da da dit dit dit de um pedido de socorro, e dizer-lhe quanto me sucedera naquele ápice e entrementes da saída de tua casa até entrar na minha.
Contudo, eis que o meu raciocínio foi de pantanas e as hesitações bateram em retirada, porquanto uma chave girou na fechadura da porta, e esta se escancarou, jorrando-te como faria qualquer vulcão administrando lava pelas redondezas. E não vinhas só, pois trazias contigo toda a ironia metediça de quem acordara com a pirraça na mente, a traquinice a todo o pano, de um veleiro com vento forte – e a favor. «Bom djia!!...» trinaste ainda mal entraras, a saracoterar naquele sorriso de quem a traz fisgada e pretende levá-la até ao fim, só para ver no que dá. Pura curiosidade feminina, suponho. Maquiavélica, é certo, diabolicamente tentadora, não resta a mínima dúvida, mas infinitamente desarmante, e devastadora, se atendermos à tempestade de confuso e controverso efeito para onde nos atira, sempre e impreterivelmente sempre com inocente intenção, no sem-querer que tanto provoca como seduz, até magoar na demasia de preferir, envolver e viciar.
«Viva, viva» atalhei supérfluo a refazer-me na alvoraçada temperança, cuja derrocada, de latente, se anunciava prestes. «Já de pé!… Não estou atrasado, pois não?», redargui tentando recuperar o equilíbrio para lhe afincar o salto leonino que me devolvesse a confiança, mordendo-a de seguida com as palavras que a situação pedia. «Só combinámos que almoçaríamos juntos, e ainda tenho muito tempo para o fazer… Mudaste de planos?»
«NÃO, queridinho! E este não é válido para as duas perguntas: não estás atrasado, nem mudei de planos. Sonhei é que tinhas qualquer coisa importante para me contar, e não quis deixar-te a sofrer na espera. E da espera» me elucidou, como se necessária fosse tal precisão, considerando o aturado treino que ela desde sempre me impôs, quer dizer, a que tu me obrigaste continuamente. Já esqueceste?
«Como assim?! O que é que pode haver tão importante que não possa esperar até ao meio-dia e meia?»
«Tu é que sabes» replicou assertiva, seca e de imediato, quando quase ainda eu, nem sequer, terminara a pergunta. «Ou será, que estás a insinuar, que ando a sonhar coisas. Coisas!»
Empaquei. Fiquei com a resposta atravessada, a raspar o céu-da-boca, mas sem a mínima esperança de ouvi-la sair. Às vezes estas ninharias acontecem aos melhores comunicadores. São brancas que nos escurecem o ânimo, anunciam apocalipses e fomentam dilúvios de saliva que nos apressamos a engolir, para disfarçar, enquanto ginasticamos a glote em seco como um êmbolo de motor acelerado.
«Cheira aqui bem… Este cafezinho também me dava jeito» a mim, que me prontifiquei a tirar-lho, com superior mestria e requinte.
«Então, conta lá» sugeriu, garantindo-me quanto levara a sério as minhas desculpas, e recusas, sonegações e esquivas, acerca do assunto que a trouxera. Pronto, desembuchei: «Foi a vizinha ali da frente que me pediu um livro emprestado, ontem à noite, e eu dei-lhe aquele que fiz para ti. Não devia tê-lo feito? Podia ter-te perguntado antes… Mas» ela aplicou-me o «fizeste muito bem. Àquela hora não ias telefonar-me só para me perguntar isso. Ias?»
Nem tal me passara pela cabeça! Passei-lhe a chávena fumegante. A mão dela segurou na minha, enquanto a chávena transitava entre ambas, ao que, fixando-me incisiva sobre a ondulada espiral de fumo que se evolava, adiantou um «e?» que bateu na consciência como um aguilhão em fogo.
«E?», repetiu. «E?»
«E nada, foi tudo o que passou», refilei.
«Ok. Vou fingir que acredito. Logo ao almoço contas o resto.»
Pousou a chávena sobre o livro aberto que me preparava para ler. E… Saiu! Saiu pela mesma porta por que entrara, deixando as demais – seis – escancaradas para o ventinho da inquietação que me começava a corroer a alma. Apenas saiu. (E nem um beijinho de despedida… Há pessoas capazes de tudo!)
“A minha casa tem sete portas
Todas abertas de par em par,
Aquelas em que o Sol não entra
É porque estão viradas prò Luar.”
In Terceiro Passo, poema de Joaquim Castanho, incluído no livro Nova Razão: Velha Aliança.
Acordar é um ritual que se reflete no carácter de cada qual, havendo quem tome as medidas adequadas à circunstância, e escolha aquilo com que o despertar melhor lhe caia para se entrincheirar num novo dia, como se a segurança e confiança fossem o principal reflexo e espelho do amor-próprio, ou o seu sucesso (existencial, incluindo a identidade) dependesse absolutamente desse momento. Não sou diferente de ninguém, nesse capítulo – pelo menos (e até ver). Todavia, embora frio o dia me entrasse pela janela da sala, que ocupa toda a largura dela, envolvendo a casa numa saudação de inesgotável irradiação, não me antevia disposto a “partilhar”, termo que atualmente no jargão das TIC serve para quase tudo, com Shara a acontecência ou sucedância da véspera. Porém, depois de ingeridas aquelas tostas estaladiças acompanhadas com geleia de morango que recheiam qualquer estômago com a suculenta mistura do cereal nobre (trigo) com o fruto açucarado dos corações ao rubro, não pude evitar-me ao sabor requintado de um café Qharacter Delta Q, intenso, mesclado, de aroma sofisticado e sublime, o preferido de quem não se deixa adormecer (e enredar) pelos placebos de viver, procurando lá fora, entre as erectas (quase românticas senão góticas) ramadas dos ciprestes os pintassilgos que costumam fazer seus ninhos onde a vizinhança me é mais próxima, precisamente na ponta do nariz, a meia sílaba de um trinado de alma cristalina, dei comigo a considerar que não tinha cometido qualquer falta grave, e que seria mesmo divertido ver-lhe a cara de espanto, de incredulidade, que faria se lho contasse.
Reparei que os pintassilgos não estavam lá. Tinham-se levantado mais cedo. Ou eu sensivelmente tarde do que o habitual… – que era o mais certo! – dando-me a sensata perspetiva de uma outra maneira de alinhavar o tempo conforme o modo de vida, uma vez que eles se teriam deitado, como aliás é seu costume, muito mais cedo e aproveitado a longa manhã para esperar a Primavera, a distar não mais que quinze dias, que no calendário das aves deve ser ainda menos que um saltinho de pisco ou toutinegra. Creio que o fazia para evitar decidir-me, adiar o momento em que o pão-pão, queijo-queijo, me encostariam à parede do agora-ou-nunca, inspirando-me no voo da fuga através da vizinhança, num Ícaro pouco convincente, confesso, embora a meiose de saudável engenho traga o morse do dit dit da da da dit dit dit de um pedido de socorro, e dizer-lhe quanto me sucedera naquele ápice e entrementes da saída de tua casa até entrar na minha.
Contudo, eis que o meu raciocínio foi de pantanas e as hesitações bateram em retirada, porquanto uma chave girou na fechadura da porta, e esta se escancarou, jorrando-te como faria qualquer vulcão administrando lava pelas redondezas. E não vinhas só, pois trazias contigo toda a ironia metediça de quem acordara com a pirraça na mente, a traquinice a todo o pano, de um veleiro com vento forte – e a favor. «Bom djia!!...» trinaste ainda mal entraras, a saracoterar naquele sorriso de quem a traz fisgada e pretende levá-la até ao fim, só para ver no que dá. Pura curiosidade feminina, suponho. Maquiavélica, é certo, diabolicamente tentadora, não resta a mínima dúvida, mas infinitamente desarmante, e devastadora, se atendermos à tempestade de confuso e controverso efeito para onde nos atira, sempre e impreterivelmente sempre com inocente intenção, no sem-querer que tanto provoca como seduz, até magoar na demasia de preferir, envolver e viciar.
«Viva, viva» atalhei supérfluo a refazer-me na alvoraçada temperança, cuja derrocada, de latente, se anunciava prestes. «Já de pé!… Não estou atrasado, pois não?», redargui tentando recuperar o equilíbrio para lhe afincar o salto leonino que me devolvesse a confiança, mordendo-a de seguida com as palavras que a situação pedia. «Só combinámos que almoçaríamos juntos, e ainda tenho muito tempo para o fazer… Mudaste de planos?»
«NÃO, queridinho! E este não é válido para as duas perguntas: não estás atrasado, nem mudei de planos. Sonhei é que tinhas qualquer coisa importante para me contar, e não quis deixar-te a sofrer na espera. E da espera» me elucidou, como se necessária fosse tal precisão, considerando o aturado treino que ela desde sempre me impôs, quer dizer, a que tu me obrigaste continuamente. Já esqueceste?
«Como assim?! O que é que pode haver tão importante que não possa esperar até ao meio-dia e meia?»
«Tu é que sabes» replicou assertiva, seca e de imediato, quando quase ainda eu, nem sequer, terminara a pergunta. «Ou será, que estás a insinuar, que ando a sonhar coisas. Coisas!»
Empaquei. Fiquei com a resposta atravessada, a raspar o céu-da-boca, mas sem a mínima esperança de ouvi-la sair. Às vezes estas ninharias acontecem aos melhores comunicadores. São brancas que nos escurecem o ânimo, anunciam apocalipses e fomentam dilúvios de saliva que nos apressamos a engolir, para disfarçar, enquanto ginasticamos a glote em seco como um êmbolo de motor acelerado.
«Cheira aqui bem… Este cafezinho também me dava jeito» a mim, que me prontifiquei a tirar-lho, com superior mestria e requinte.
«Então, conta lá» sugeriu, garantindo-me quanto levara a sério as minhas desculpas, e recusas, sonegações e esquivas, acerca do assunto que a trouxera. Pronto, desembuchei: «Foi a vizinha ali da frente que me pediu um livro emprestado, ontem à noite, e eu dei-lhe aquele que fiz para ti. Não devia tê-lo feito? Podia ter-te perguntado antes… Mas» ela aplicou-me o «fizeste muito bem. Àquela hora não ias telefonar-me só para me perguntar isso. Ias?»
Nem tal me passara pela cabeça! Passei-lhe a chávena fumegante. A mão dela segurou na minha, enquanto a chávena transitava entre ambas, ao que, fixando-me incisiva sobre a ondulada espiral de fumo que se evolava, adiantou um «e?» que bateu na consciência como um aguilhão em fogo.
«E?», repetiu. «E?»
«E nada, foi tudo o que passou», refilei.
«Ok. Vou fingir que acredito. Logo ao almoço contas o resto.»
Pousou a chávena sobre o livro aberto que me preparava para ler. E… Saiu! Saiu pela mesma porta por que entrara, deixando as demais – seis – escancaradas para o ventinho da inquietação que me começava a corroer a alma. Apenas saiu. (E nem um beijinho de despedida… Há pessoas capazes de tudo!)