10.30.2003

As histórias repetem-se em trinta exemplos e os porquês continuam por esclarecer

“Quando vemos a carrinha aproximar-se, dispersamos”


“Sou um toxicodependente assumido. Estou aqui também por causa disso”, diz João Miguel, arrumador de carros na área do Bom Sucesso, no Porto, para quem arrumar carros é claramente uma opção que aceitou na sua vida, como sendo a única resposta que obteve sem fazer qualquer questão.
João Miguel, arrumador há dois anos, reconhece que a zona onde normalmente arruma carros tem sido muito policiada, o que dificulta o seu trabalho mas não o impede. “Temos de estar sempre alerta. Quando vemos a carrinha a aproximar-se ou eles [os agentes da polícia municipal] a passearem por aí, dispersamos para que eles não nos levem.” É que já o levaram algumas vezes para a sede da polícia municipal (PM), onde teve de ficar retido durante algumas horas. Mas o pior mesmo, segundo disse foi quando o levaram para os Carvalhos. “Meteram-me na carrinha e levaram-me para os Carvalhos, para perto de um largo onde fazem a feira. Deixaram-me lá só para voltar a pé para aqui. Isso não está certo”, conta. “E ainda me bateram porque eu não queria entrar na carrinha. Só se fosse parvo é que ia querer. Não estou a roubar nem a fazer mal a ninguém. Para que é que me chateiam?”, acrescenta. João Miguel é daqueles casos que não quer nem ouvir falar no programa Porto Feliz, promovido pela Câmara Municipal do Porto (CMP), pois, nas suas próprias palavras, “aquilo é como estar preso”.
Entretanto, aproxima-se Vítor, de 35 anos e arrumador há 12, sempre no Bom Sucesso que está inserido no programa Porto Feliz, tendo já iniciado o tratamento com metadona. “Preciso de dinheiro na mesma. Não tenho emprego e se o peço, só me dizem para esperar. Tenho de esperar para tudo e até lá tenho de comer. Nós já consumimos [droga] há muitos anos e se não for isto também não arranjamos nada”, reconhece. Para piorar a sua situação, diz que as pessoas “influenciadas pela publicidade da CMP, já não dão tanto como antes”. Por dia, soma entre cinco a dez euros por arrumar carros. “Tudo o que queria era ter um emprego, um sítio para dormir e comer todos os dias”, desabafa.
Nuno Nogueira é arrumador há 11 anos. Há cerca de três meses, foi levado duas vezes seguidas pela polícia com “fitas verdes nos bonés que mais parecem azulejos de casa de banho, como o estádio do Sporting”. É assim que descreve os agentes que operam na PM. “Fiquei duas horas lá na Pasteleira e depois tive de voltar a pé. Numa das vezes, recusei-me a ir e eles ameaçaram-me e chamaram-me nomes”, reclama. “É claro que acho mal que nos levem porque eles só querem é falar sem nos ouvirem em altura nenhuma. Além disso, não nos ajudam. Esta mentalidade portuguesa é muito hipócrita”. Apesar disso, vai dizendo que os polícias andam mais “tranquilos”, pois “também eles já estão contra o Rio”.
A lista de testemunhos continua. Flávio, arrumador de carros há quatro anos na Ribeira do Porto, foi levado para a sede da PM, na Pasteleira, pela última vez fazem agora duas semanas. Se foi maltratado? “Nunca somos muito bem tratados, eles estão sempre a dizer “bocas”, mas fisicamente não fui agredido nas duas vezes que tive de ir”. Para Flávio, a CMP “não tinha nada que se meter com os arrumadores”. Manuel Oliveira arruma carros sobretudo na Praça da Liberdade. Nunca foi levado pela PM, segundo ele, porque está em tratamento no CAT- Centro de apoio aos toxicodependentes. “Pois, mas o CAT não nos dá comida nem trabalho. Aliás, soube que alguns colegas meus conseguiram um emprego lá com o programa do “Porto Feliz” e já perguntei o que preciso de fazer e responderam-me que andasse na rua a arrumar carros que eles acabariam por me levar”.
António Fontes, de 36 anos, também já foi levado três vezes pela PM, a última foi há, aproximadamente, um mês. “Como sou de Famalicão não sou levado tantas vezes. Na última vez que fui, perguntei-lhes se queriam que fosse roubar e responderam-me com pontapés. E ainda tive de estar lá na “seca” de duas horas e voltar, depois, a pé”. Já Júlio, nome fictício, diz não ter queixas da polícia municipal, o mesmo já não se passando com a PSP. “Andam aí dois que estão marcadinhos. Estou só à espera que hajam partilhas lá em casa para ter um carrinho e me pôr atrás deles. Olhe, isto é graças a eles”, comenta mostrando a mão inchada e uma perna com alguns hematomas. De acordo com Júlio, os agentes da PSP já o levaram várias vezes, tendo a última ocorrido há oito dias. “Ficam-nos com o dinheiro e ainda gozam connosco. Só meus já lá ficaram com cerca de 100 euros. Põem o dinheiro num envelope para nos taparem os olhos, mas vão é gastá-lo em bares”.
Paulo Fernandes, arrumador de carros há cinco anos, é frequentemente levado por agentes da PSP, pois na zona onde trabalha existe uma esquadra daquela força policial. “Vá lá, desde a passada quinta-feira que não me levam. Até já são eles que me dizem para ir para outro lado porque ali ao fundo moram familiares do Rui Rio. É que assim ele pensa que acaba connosco”, ironiza.
“Acho mal levarem-nos para a Pasteleira porque é muito longe daqui (Santa Catarina), não se preocupam connosco. Sabem que não temos dinheiro para táxi nem para autocarro”, refere João Carlos, de 32 anos. Para este arrumador o programa Porto Feliz não resolve todos os seus problemas nem lhes dá dinheiro para sobreviverem. “Não tenho razões de queixa da PM, já fui levado duas vezes, mas nunca me trataram mal, embora perceba que isso é uma questão de sorte, até porque só lá estive duas horas de castigo”, explica. Um castigo que não percebe por que acontece.
Henrique Ribeiro é toxicodependente há 29 anos e arrumador de carros na Ribeira do Porto, onde vive com a mulher, a filha e duas netas, durante quase outros tantos anos. “Nunca estive preso e a polícia não me incomoda, já me conhecem e sabem que já faço “parte da mobília” aqui da zona”, explica. Henrique soube desta nova metodologia da PM através de Nuno Cardoso, ex-presidente da CMP, que lhe veio perguntar se já tinha sido levado pelos agentes. “Eu nunca fui, mas sei de muitos que já foram. Uma coisa é certa, 90% dos arrumadores roubam e isso baixou com a polícia, a qual agora anda aqui muito. Mas o que o Rio gasta em cartazes com mensagens para as pessoas não darem moedas, bem podia fazer de facto alguma coisa que nos ajudasse, como por exemplo, arranjar algumas casas como aquela em que vivo. É uma miséria”, critica. No passado dia 9 de Setembro, Henrique foi aceite no projecto “Porto Feliz”, mas não vai continuar, pois, segundo diz, “é como estar preso”. “Falta-me é apoio em casa, essa é que era a terapia que eu precisava”, considera.
É automático: uma carrinha da PSP passa e Humberto, nome fictício, afasta-se rapidamente da rotunda onde está a arrumar carros. Pouco depois, quando já não se vêem polícias, lá vem ele. “É melhor até para os polícias que eu fuja e que não os veja”, diz com visível agressividade. Já foi levado pela PM por três vezes, a última das quais aconteceu há quinze dia, em que, pelo que afirma, “foi puxado violentamente para dentro da carrinha da PM. “Eles agora estão tramados comigo, não pensem que me levam e que eu fico lá quieto no banquinho a vê-los tirarem-me o dinheiro e a gozarem com a minha cara”, ameaça. “Também tenho em casa uma coisa que faz buracos e perdido por cem, perdido por mil. É preciso é saber fazer as coisas”, continua, alegando que tem o direito de trabalhar para sustentar os seus vícios. “É claro que fico chateado quando não me dão nada, mas não posso obrigar as pessoas a fazê-lo. Agora, a CMP quer acabar connosco, mas o Rio devia era ter juízo e sair lá do seu luxo para ver como é a vida na cidade onde ele pensa que manda”.
Joaquim Gomes dos Santos, 37 anos, e já foi levado três vezes pela PM. “Por acaso não fui muito mal tratado, mas ‘tava doente e não me deixaram sair. Ainda por cima sou eu que trato da minha mãe, que está acamada e por volta das seis da tarde tenho de lhe ir dar os medicamentos”, conta Joaquim que, da última vez que lá esteve, há cerca de três semanas, ficou retido durante três horas. “Não fazemos mal a ninguém, ninguém nos apoia. Só, de vez em quando é que nos vêm aqui dar umas refeições. Mas o que precisava mesmo era de um emprego. Estava disposto a fazer qualquer coisa”. Para Joaquim, a CMP “não dá nada e agora as pessoas dão menos dinheiro por causa dele. Só consigo fazer cerca de dez euros por dia”. Assim, na opinião de Joaquim, o que a polícia devia fazer era “apanhar aqueles que vendem droga. Esses é que nos arruinam”, reconhece.
É num pequeno jardim junto ao Hospital Conde Ferreira que o JN vai encontra um grupo numeroso de arrumadores de carros, quase todos inseridos no programa “Porto Feliz”. Vítor é um deles. Já foi levado três vezes pela PM, a última vez foi há cerca de dois meses. “Se nos recusamos a ir, agridem-nos e não querem saber se somos doentes, se estamos de muletas, não lhes interessa coisa alguma sobre nós”, reclama. O Vítor caiu quando ia a entrar no autocarro e desde aí tem que usar muletas. O diálogo entre os arrumadores começa de imediato. “Dão-te casa, emprego, comida decente?”, pergunta Luís, que também está inserido no programa promovido pela CMP. Para este último, é “natural” que os polícias “percam a cabeça”. Afinal, diz, “são homens como nós”. Já Gonçalo, nome falso, não perdoa e revolta-se facilmente com as autoridades e explica porquê: “Dizem-nos que somos delinquentes, que nunca nos vamos curar, ainda nos batem por estarmos a tentar fazer algum dinheiro. Qual é o sentido de nos fecharem numa esquadra durante três horas e depois mandarem-nos embora? Quem é que querem enganar?”, questiona indignado. Mais não diz porque o tempo para almoçar no Hospital é pouco. Entretanto, chega a hora de Luís ir “fazer o tratamento”. Já na enfermaria, toma três comprimidos receitados pela sua psiquiatra. “É a medicação para malucos”, ironiza. Segue-se o teste dos limites, ou seja, verificar através da análise à urina que drogas foram consumidas. No caso do Luís, apenas deu positivo o teste do haxixe. À saída, diz “Que bom, ainda na 6ª feira consumi cocaína e não acusou”.
Outro caso especial é o de “Quicas”, nome por que é conhecido um outro arrumador de carros, na área do Bom Sucesso e da Praça da Galiza. “Não consegui fugir às minhas circunstâncias e não sei quem o conseguiria”, afirma. E estas foram as suas circunstâncias de vida, desde sempre. Quicas é toxicodependente assim como os seus irmãos, nasceu num dos bairros degradados do Porto, a mãe é doente, o pai suicidou-se já há alguns anos e, entretanto, contraiu o vírus da sida. Também já foi levado pela PM por duas vezes. “Acho que já todos fomos e todos continuamos na rua, só me chateia que fiquem com o nosso dinheiro. Não acho que seja justo. De resto, é só mais uma coisa entre tantas. Não nos vai ajudar em nada. O que nós fazemos, por vezes, é um serviço público”, opina. Isto porque “nos carros que arrumo, ninguém mexe. Iso é certo”, reitera. Para “Quicas”, a prova de que a CMP “não sabe o que anda a fazer é a história das licenças para arrumadores. Grande anedota que isso foi”. “Ainda diz que só existem quarenta arrumadores na cidade. Ele que saia ali de casa e comece a contá-los. É preciso é ter coragem para mentir”, refere.

Filipa Ribeiro

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