APRESENTAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS
A obra
de Machado de Assis é, ninguém o pode ignorar, uma das mais importantes, senão
a mais importante, de toda a literatura brasileira. E vem sendo também a mais
estudada pelos críticos e ensaístas do seu país.
Daí, a
primeira dificuldade, quando iniciamos esta introdução, breve e despretensiosa,
tanto mais que o nosso propósito se limita à apresentação de alguns dados
gerais sobre o grande escritor brasileiro, acentuando particularmente a atividade
do contista e reunindo, por outro lado, informações dispersas acerca de Machado
de Assis e Portugal, entre as quais se revestem de especial interesse as suas
aproximações com Eça de Queirós.
Afrânio
Coutinho considerou Machado de Assis o «primeiro prosador da e [o] mais completo
homem de letras do Brasil». A afirmação pode chocar alguns leitores portugueses
que só de quando em vez têm contatado a obra do romancista de Quincas Borba,
mas deve acrescentar-se que a opinião é também endossada por outros ensaístas
brasileiros. Sem pretendermos discutir a questão de se Machado é o primeiro ou
apenas um dos primeiros, visto que o debate nos parece ocioso, queremos
tão-somente acentuar que a obra de Machado de Assis se impõe por si mesma, sem
necessidade de ser amparada com as muletas do nacionalismo, acrescentando que o
autor de Dom Casmurro ocupa, por mérito próprio, lugar decisivo nas literaturas
de expressão portuguesa, seja qual for a margem atlântica em que nos situemos,
figurando sem favor ao lado de Camilo Castelo Branco ou de Eça de queirós.
Porém,
o nosso acordo é completo quando nos colocamos junto daquele que, como Alfrânio
Coutinho, consideraram Machado de Assis o escritor brasileiro por excelência.
Quando o autor diz que «pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para
temperá-la com o molho da sua fábrica» não está renunciando à sua condição e
muito menos à sua origem: «Mestiço brasileiro bem representativo, de alma,
sangue e cultura, Machado não podia fugir à moldagem do meio em que nasceu e
viveu, e por isso foi e é um escritor bem brasileiro. A sua teoria do molho
tanto ajuda a compreender o seu processo criador como a sua brasilidade. A arte
não é mais não é mais do que o tratamento dado a temas e formas». E sublinha
ainda Alfrânio Coutinho num texto de Machado: «A brasilidade (…) é atualmente
ponto pacífico da crítica. Brasileiro pelo “instinto de nacionalidade” que é o
tecido conjuntivo das suas obras. Brasileiro pelo modo pessoal, brasileiro, que
imprime aos seus livros, transformando a matéria-prima – sua, alheia, universal
– em obras novas e nacionais, elaboradas pelo seu processo criador, à custa do
molho próprio. Ele triunfa porque é brasileiro quando logra encher suas páginas
de elemento carioca, tornando-se destarte mais universal, como todos os génios,
um Cervantes, um Shakespeare, que quanto mais nacionais mais universais.»
Foi
Machado de Assis o escritor do seu tempo e do seu meio, como o foram, em
Portugal, Camilo e Eça. E não sendo propriamente um escritor «nacionalista», de
acordo com a definição hoje tão em voga, Machado de Assis foi certamente «um
escritor nacional popular», pois a obra que deixou «reflete os problemas do seu
povo, seus costumes, preocupações, ideias, dificuldades, tendo vivido dentro
dele, recolhendo a sua experiência vital, acumulando-a na alma.»
Romancista,
contista, poeta, dramaturgo, cronista e crítico, Machado de Assis experimentou
com êxito quase todos os géneros literários. Escreveu nove romances:
Ressureição, A Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia, Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacob e Memorial de Aires. A sua obra de
contista foi extensa: Contos Fluminenses, Histórias da Meia-Noite, Papéis
Avulsos, Histórias sem Data, Várias Histórias, Páginas Recolhidas, Relíquias da
Casa Velha e Outros Contos. Foi autor de três peças: Tu Só, Tu, Puro Amor, Não
Consultes Médico e Lição de Botânica. Como poeta, deixou os livros: Crisálidas,
Falenas, Americanas, Ocidentais e Poesia Coligidas. As suas crónicas estão hoje
reunidas nos livros: História de Quinze Dias, Notas Semanais, Balas de Estalo,
Bons-Dias! E A Semana. E devem referir-se ainda, entre os trabalhos de Machado
de Assis, os volumes intitulados: Crítica, Miscelânea e Epistolário*.
Nos
seus livros de contos, Machado de Assis pode acentuar a sua principal
caraterística de escritor da cidade. Mário Matos, ao esboçar o panorama do
conto brasileiro no tempo de Machado, salienta que ele «forma entre os
contadores da cidade, atmosfera em que nasceu e formou o espírito.
Diferencia-se também de quase todos pela orientação, pelo sentido do conto. Ao
contrário dos outros, procura, unicamente, analisar os sentimentos sutis das
personagens, decompor as almas. Os outros fazem as personagens atuar. Machado
fá-las pensar.» Essa qualidade o tornou o menos literário dos contistas
brasileiros, acrescentando Mário Matos: «Conduzido pelo dom, pela vocação de
contador de histórias, sabe encarar a vida diretamente e dar à narrativa a
feição de oralidade, de modo a transmitir ao leitor a sensação de que está não
lendo mas ouvindo contar. É importante isto. Em verdade, uma história não se
deve ler, deve-se escutar. Aí está a graça da especialidade. Machado, no conto,
não descreve, mostra, fala. Quando as personagens têm que se caracterizar,
conversam umas com as outras, e eis porque vemos, continuamente, muitos
diálogos nos contos. Diálogos de significativa naturalidade. Não tem
preconceitos de escola nesses pontos. Narra pelos dois modos, épico e
dramático, quando não mistura as duas maneiras de contar, e é o mais comum.»
Josué
Montello, definindo Machado de Assis como «mestre incontestável do conto»,
opina que o autor de Papéis Avulsos atingiu, neste género, «um modelo de
concisão literária. Essa qualidade que o artista lucidamente aprimorou explica,
em nosso entender, a técnica em mosaicos por ele adotada nos seus romances da
maturidade.» E pensa ainda o ensaísta que «é no conto, que lhe sai da pena para
atender aparentemente à curiosidade dos leitores fluminenses dos jornais de
moda – que Machado de Assis se realiza plenamente.»
Mário
Matos, a quem devemos um dos melhores estudos sobre o «conteur» Machado de
Assis, afirma ainda que «os contos são as suas páginas mais naturais e um
documento inequívoco do seu estilo original, apesar de apreciável número ter
sido escrito à pressa. E neles nota-se um fato que, a meu ver, não se verifica
na obra diversa de Machado: os contos não são autobiográficos. Neles não
sentimos os recalques do autor de modo aparente ou direto. Fora o Conto da
Escola, não há, nos demais, passagens ou trechos pelos quais se possa recompor
o homem, ao contrário do que acontece no romance, na crónica, na poesia e mesmo
na crítica. A história é a sua obra menos pessoal, do ponto de vista
autobiográfico. É a menos amarga, por isso.
Na
verdade, é no conto que melhor redescobrimos, à distância, o meio e a época do
escritor de Várias Histórias. Foi dentro desse espírito que escolhemos os
dezoito contos que constituem este volume e que nos parecem refletir com maior
fidelidade, isolada e conjuntamente, o Brasil do tempo de Machado. Por outro
lado, essa dúzia e meia de histórias, retirada de cinco livros, oferece-nos uma
panorâmica que, supomos, define o contista e, até, a sua evolução como
escritor.
Do
volume Papéis Avulsos, extraímos três contos: O Alienista, A Chinela Turca e O
Espelho. Das Histórias sem Data, selecionámos sete: O Lapso, Cantiga de
Esponsais, Singular Ocorrência, Galeria Póstuma, Capítulo dos Chapéus, Primas
de Sapucaia! e Noite de Almirante. Pertencem ao volume Várias Histórias:
Cartomante, Uns Braços, Trio em Lá Menor, O Enfermeiro, Conto de Escola e D.
Paula. Entre Páginas Recolhidas, recolhemos Missa do Galo, fazendo parte do volume
Outros Contos a história de Casada e Viúva.
Poderiam
ter sido selecionadas outras histórias de Machado de Assis; todavia, as dezoito
que constituem este volume cremos que bastam para ilustrar a arte do excecional
contista que foi o autor de O Alienista.
AS ORIGENS DE MACHADO
Joaquim
Maria Machado de Assis nasceu no morro do Livramento (Rio de Janeiro) a 21 de
Junho de 1839, filho do pintor e dourador Francisco José de Assis («pardo»,
reza a crónica) e da lavadeira Maria Leopoldina Machado de Assis, portuguesa,
natural da ilha açoriana de São Miguel. Os avós paternos do futuro escritor
foram os «pardos forros» Francisco de Assis e Inácia Maria Rosa. Como padrinhos
do batismo, serviram D. Maria José de Mendonça Barroso, viúva e proprietária da
xácara do Livramento, e Joaquim Alberto de Sousa Ferreira, «veador do Paço».
Sobre
a infância de Joaquim Maria escreve Renard Perez que foi «o mulatinho objeto de
ternura da grande dama, que o protegerá. Sua infância se passará, assim, entre
o sobradão e a casa humilde dos pais, compreendendo o menino desde cedo as
diferenças da vida – e desse contraste nascerá, em sua índole, a inclinação e o
gosto pela fidalguia, presente em sua obra, e o desprezo à pobreza, de sempre
tenderá a afastar-se, a ponto de procurar esconder as suas origens, pela vida
fora. Através dos ambientes e tipos que descreverá, será quase uma obsessão
manter tal disfarce. E na vida, se frequentemente deixará escapar um tom de
simpatia por aquele meio fidalgo em que lhe foi dado viver durante algum tempo,
só mui veladamente se referirá aos pais e à casa humilde onde viu a vida.»
A mãe
de Joaquim Maria morreu cedo e o pai, recorda Renard Perez, «casa-se outra vez,
com Maria Inês, mulher de sua cor, que continua, dentro das suas parcas
possibilidades, a educação iniciada por Maria Leopoldina, abrindo-lhe, do mesmo
modo que o pai, o caminho para a escola pública». Estudante aplicado, depois de
ter aprendido as primeiras letras, foi trabalhar como caixeiro numa papelaria,
a fim de ajudar nas despesas da casa, mas não se adaptou ao emprego e deixou-o
passados dias. O pai morreu em 1851 e Maria Inês começou a trabalhar como
doceira num colégio, onde o enteado prosseguiu os seus estudos. Em 12.01.1855,
Joaquim Maria publica o seu primeiro trabalho, o poema Ela, na revista A
Marmota, assim inaugurando a sua fecunda e importante carreira literária.
Já
Machado de Assis adquirira relativa notoriedade quando, em 12.11.1869, casou
com D. Carolina Augusta de Novais, irmã do poeta português Faustino Xavier de
Novais, amigo do então prometedor escritor. Lê-se no segundo testamento de
Machado de Assis: «Fui casado, desde 12 de novembro de 1869, com Carolina
Augusta de Novais Machado de Assis, filha legítima de António Luís de Novais e
de Custódia Emília Xavier de Novais, natural da cidade do Porto, reino de Portugal,
a qual faleceu em 20 de outubro de 1904, e está sepultada no cemitério de S.
João Batista. Desejo ser enterrado na mesma campa de minha mulher (nº 1359,
jazigo perpétuo), requeridas as necessárias licenças.»
O
romance Memorial de Aires é, no fundo, a história do amor que uniu D. Carolina
de Novais e Machado de Assis: «Queriam-se, sempre se quiseram muito, apesar dos
ciúmes que tinham um do outro, ou por isso mesmo – confessará ele mais tarde.
Desde namorada, ela exerceu sobre ele a influência de todas as namoradas deste
mundo, e acaso do outro, se as há tão longe. Campos não os acompanhou sempre,
nem desde os primeiros tempos; mas quando entrou a frequentá-los, viu nela o
desenvolvimento da noiva e da recém-casada, e compreendeu a adoração do marido.
Este era feliz, e para sossegar as inquietações e tédios de fora, não achava
melhor respiro que a conversação da esposa, nem mais doce lição que a de seus
olhos. Era dela a arte fina que podia restituí-lo ao equilíbrio e à paz. Ele
via as coisas pelos seus próprios olhos, mas se estes eram ruins ou doentes,
quem lhe dava remédio ao mal físico ou moral era ela.»
Em
outra página do mesmo romance, escreveu Machado de Assis: «O que eu fiz foi
então perguntar ao desembargador se tais criaturas tiveram algum ressentimento
da vida. Respondeu-me que um, um só e grande; não tiveram filhos. Ambos queriam
um filho, um só que fosse, ela ainda mais do que ele. D. Carmo todas as
espécies de ternura, a conjugal, a filial, a maternal.» Na literatura – como na
vida.
No
volume Poesias Coligidas, encontra-se um soneto que exprime eloquentemente o
amor de Machado de Assis por sua esposa – na poesia como na vida. Tem o título
simples de A Carolina:
«Querida,
ao pé do leito derradeiro
Em que
descansas dessa longa vida,
Aqui
venho e virei, pobre querida,
Trazer-te
o coração do companheiro.
Pulsa-lhe
aquele afeto verdadeiro
Que, a
despeito de toda a humana lida,
Fez a
nossa existência apetecida
E num
recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te
flores –, restos arrancados
Da
terra que nos viu passar unidos
E ora
mortos nos deixa separados.
Que
eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos
de vida formulados,
São
pensamentos idos e vividos. »
Diz
Renard Perez que «teve mesmo Carolina importante papel no próprio
desenvolvimento da carreira literária do escritor, e, quem sabe, na própria
obra. De educação esmerada, culta («um e outro gostavam de versos e talvez ela
tivesse feito alguns»), muito valeu Carolina na orientação das leituras do
marido, levando-o – segundo Lúcia Miguel Pereira – a aprofundar-se nos
clássicos portugueses e dando-lhe também a ler os ingleses, que teriam tanta
influência na segunda fase da sua obra.»
Sobreviveu
Machado de Assis apenas quatro anos à morte de D. Carolina de Novais, período
em que publicou Relíquias da Casa Velha (1906) e Memorial de Aires (1908). A
morte da esposa foi o golpe de que nunca mais se recomporia: «No casarão
sombrio do Cosme Velho é Machado apenas uma sombra, a viver das boas lembranças
daqueles trinta e cinco anos de perfeita união. Perdeu o prazer de viver, as
forças lhe fogem, a doença o domina mais e mais, os ataques se amiúdam.» O
escritor concluirá e fará editar o seu romance quase autobiográfico – e
partirá, juntando-se a Carolina a 29 de setembro de 1908. Mas a sua memória
ficará, cada vez maior.
EÇA E MACHADO
Escreveu
João Gaspar Simões que Machado de Assis «evidenciou uma maturidade intelectual
de signo crítico sem dúvida superior à dos seus émulos portugueses.» Para
documentar esta afirmação do ensaísta de Eça de Queirós, o Homem e o Artista,
bastará lembrar os dois artigos publicados por Machado na revista carioca O
Cruzeiro, em 16 de abril de 1878, sobre O Primo Basílio.
Classificando
Eça de Queirós como «um dos bons e vivazes talentos da atual geração
portuguesa», Machado de Assis acrescenta que O Crime do Padre Amaro «era realismo
implacável, consequente, lógico, levado à puerilidade e à obscuridade». De
qualquer maneira, o jovem escritor português obteve grande sucesso com o seu
romance de estreia: «(…) reincidiu no género, e trouxe-nos O Primo Basílio,
cujo êxito é evidentemente maior do que o do primeiro romance, sem que, aliás,
a sua ação seja mais intensa, mais interessante ou vivaz, nem mais perfeito o
estilo. A que atribuir a maior aceitação deste livro? Ao próprio fato da
reincidência, e, outrossim, ao requinte de certos lances, que não destoaram do
paladar do público. Talvez o autor se enganassem em um ponto. Uma das passagens
que maior repercussão fizeram, no Crime do Padre Amaro, foi a palavra de
calculado cinismo dita pelo herói. O herói de O Primo Basílio remata o livro
com um dito análogo; e, se no primeiro romance é ele característico e novo, no
segundo é já rebuscado, tem um ar de cliché; enfastia. Excluído esse lugar, a
reprodução dos lances e do estilo é feita com o artifício necessário para lhe
dar novo aspeto e igual impressão.
Insistiu
Machado de Assis nas semelhanças do Crime com La Faute de l'Abbé Mouret, de
Zola, e de O Primo com Eugénia Grandet, de Balzac, acentuando que Juliana era
«o caráter mais completo e verdadeiro» do último dos dois romances do escritor
português. E conclui o seu primeiro artigo com esta declaração categórica: «O
sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitigado, mas intenso e completo, e
daí vem que o tom carregado das tintas, que nos assusta, para ele é
simplesmente o tom próprio. Dado, porém, que [se] a doutrina do sr. Eça de Queirós
fosse verdadeira, ainda assim cumpria não acumular tanto as cores, nem acentuar
tanto as linhas; e quem o diz é o próprio chefe da escola, de quem li, há
pouco, e não sem pasmo, que o perigo do movimento realista é haver quem suponha
que o traço grosso é o caráter exato. Digo isto no interesse do talento do sr.
Eça de Queirós, não no da doutrina que lhe é adversa; porque a esta o que mais
importa é que o sr. Eça de Queirós escreva outros livros como O Primo Basílio.
Se tal suceder, o Realismo na nossa língua será estrangulado no berço; e a arte
pura, apropriando-se do que ele contiver aproveitável (porque o há, quando se
não despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno e até no ridículo), a arte
pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias do Monge de Cister, do Arco
de Santana e do Guarani.»
Machado
de Assis sentiu-se obrigado a escrever novo artigo, pois o sentido do primeiro
havia sido deturpado por alguns críticos brasileiros que não admitiam
restrições ao talento de Eça e muito menos à sua escola literária. Assim, no
artigo de 30 de abril de 1878, Machado desmente que nada tenha achado de bom em
O Primo Basílio, sustentando que muitas das figuras do romance são artificiais
e explica: «Um dia, arrufada com o amante, Luísa fica incerta se irá vê-lo ou
não; atira ao ar uma moeda de cinco tostões; era cunho: devia ir e foi. Esses
traço de caráter é que me levaram a dizer, quando a comparei com Eugénia, de
Balzac, que nenhuma semelhança havia entre as duas, porque esta tinha uma forte
acentuação moral, e aquela não passava de um títere[1].
Parece que a designação destoou no espírito dos meus contendores, e houve
esforço comum para demonstrar que a designação era uma calúnia ou uma
superfluidade. Disseram-me que, se Luísa era um títere, não podia ter músculos e nervos, como não podia ter medo,
porque os títeres não têm medo.»
E
terminava Machado a sua crítica dizendo: «Quanto ao sr. Eça de Queirós e aos
seus amigos deste lado do Atlântico, repetirei que o autor de O Primo Basílio
tem em mim um admirador de seus talentos, adversário de suas doutrinas, desejoso
de o ver aplicar, por modo diferente, as qualidades que possui; que se admiro
também muitos dotes do seu estilo, faço restrições à linguagem; que o seu dom
de observação, aliás pujante, é complacente em demasia; sobretudo, é exterior,
é superficial. O fervor dos amigos pode estranhar este modo de sentir e a
fraqueza de o dizer. Mas então o que seria a crítica?»
Em Eça
de Queirós, o Homem e o Artista, João Gaspar Simões estudou a posição do
escritor brasileiro perante o romancista de O Primo Basílio, enquanto que, no
livro de Eça de Queirós (da coleção A Obra e Homem da editora Arcádia),
confirmou o seguinte sobre "o incidente": «As críticas ao O Primo
Basílio, especialmente as duas mais penetrantes – a de Machado de Assis, no
Cruzeiro, do Rio de Janeiro, e a de Ramalho Ortigão, nas Farpas – abalaram
profundamente as convicções realistas de Eça de Queirós». Na realidade, o
escritor português, como bem salienta Gaspar Simões, «perdera a confiança no
seu "processo" e rondava, hesitante, uma técnica em que julgava
conciliar de algum modo a fase romântica da mocidade com o realismo da idade
adulta.»
A 29
de junho de 1878, Eça de Queirós escrevia a Machado de Assis, de
Newcastle-on-Tyne, a seguinte carta (que se reproduz na íntegra, a título documental,
pois não figura em nenhum dos volumes da Correspondência do autor de Os Maias,
carta que foi reproduzida em fac-símile,
no catálogo da Exposição de Machado de Assis, realizada no Rio de Janeiro, em
1939):
«Exmo.
Sr. e prezado colega: – Uma correspondência do Rio de Janeiro para a Atualidade
(jornal do Porto) revela que o sr. Machado de Assis, nome tão estimado entre
nós, o autor do belo artigo sobre O primo Basílio e o Realismo, publicado no
Cruzeiro de 16 de abril, assinado com o pseudónimo de Eleazar. Segundo essa
correspondência, há ainda sobre o romance mais dois folhetins de V. S. nos
números de 16 e 30 de abril. Creio que outros escritores brasileiros me fizeram
a honra de criticar O Primo Basílio: – mas eu apenas conheço o folhetim de V.
S., do dia 16, que foi transcrito em mais de um jornal português. O meu editor,
sr. Chardron, encarregou-se de coligir essas apreciações de que eu tenho uma
curiosidade quase ansiosa. Enquanto as não conheço, não posso naturalmente
falar delas – mas não quis estar mais tempo sem agradecer a V. S. o seu
excelente artigo do dia 16. Apesar de me ser em geral adverso, quase revesso, e
de ser inspirado por uma hostilidade quase partidária à Escola Realista – esse
artigo todavia pela sua elevação e pelo talento com que está feito honra o meu
livro, quase lhe aumenta a autoridade. Quando conhecer os outros artigos de V.
S. poderei permitir-me discutir as suas opiniões sobre este – não em minha
defesa pessoal (eu nada valho), não em defesa dos graves defeitos dos meus
romances, mas em defesa da Escola que eles representam e que eu considero como
um elevado fator do progresso moral na sociedade moderna. – Quero também por
esta carta rogar a V. S. queira em meu nome oferecer o meu reconhecimento aos
seus colegas de literatura e de jornal pela honrosa aceitação que lhes mereceu
O Primo Basílio. Um total acolhimento da parte de uma literatura tão original e
tão progressiva é para mim uma honra inestimável – e para o Realismo, no fim de
tudo, uma confirmação esplêndida de influência e de vitalidade. – Esperando ter
em breve oportunidade de conversar com V. S. através do oceano sobre estas
elevadas questões de Arte, rogo-lhe queira aceitar a expressão do meu grande
respeito pelo seu belo talento. – Eça de Queirós.»
O
diálogo pretendido pelo escritor português jamais se realizou, pois não há
provas de que Machado de Assis tenha sequer respondido a Eça de Queirós. Não
obstante, o editor Ernesto Chardron, em carta datada do Porto de 27 de julho de
1878, pediu a Machado de Assis que defendesse, no brasil, os direitos de Eça,
já que, após a adaptação teatral de O Crime, se anunciava, naquela data, a
próxima teatralização de O Primo. Com a sua carta, o editor portuense juntava a
folha de rosto da Segunda edição, ainda em provas, de O Primo Basílio e da 1ª
edição de A Capital, lendo-se no verso de ambas as folhas: «Declaramos, para
todos os efeitos da lei, que a propriedade literária desta obra, no império do
Brasil, pertence ao Exmo. Sr. J. M. Machado de Assis. – Eça de Queirós –
Ernesto Chardron.» Também sobre este assunto não se pronunciou, ao que parece,
o escritor brasileiro, silêncio que levou Josué Montello a comentar: «O que se
sabe, de ciência certa, sobre as relações entre Eça e Machado é que este,
embora admirando aquele, a ponto de nele identificar, depois da sua morte, na
ordem do romance de língua portuguesa, «o melhor da família, o mais esbelto e o
mais válido», sempre guardou, em relação ao seu confrade português, um ar de
polida cerimónia. Disso é exemplo expressivo a dedicatória com lhe enviou o
Quincas Borba: «A Eça de Queirós – Machado de Assis. 10-4-92». E acrescenta
Josué Montello: «Um modelo de secura. Sem uma palavra amável que puxasse pela
cordialidade. E Eça, por iniciativa própria, e naturalmente ainda por
intermédio de amigos comuns, buscou essa cordialidade», através da carta de
Newcastle de 28 de junho de 1878. Nem sequer outras críticas mereceram de
Machado de Assis os livros a seguir publicados por Eça de Queirós.
Referindo-se
aos dois artigos da revista O Cruzeiro (dois, e não três, como supunha Eça, na
carta para Machado), emite João Gaspar Simões a opinião de que coincidindo a
opinião de Machado de Assis com a de Ramalho Ortigão, devem ser conjugados
"os elementos dessas duas críticas para melhor compreender a crise do
realismo verificada na evolução literária de Eça de Queirós". Esses anos
de indecisão e dúvida que levaram o grande romancista a guardar na gaveta algumas
obras que só chegaram a ser conhecidas depois da sua morte, os romances da
série Cenas da Vida Real – A Capital, O Conde Abranhos, Alves & Cª, etc. –
consagra-os a digerir as críticas destes dois homens. Se Machado de Assis analisar
a mecânica da sua engrenagem novelística, mostrando que Luísa não era uma
figura moral mas um títere, e que os
próprios fundamentos críticos de O Primo Basílio estavam errados, pois a moral
a extrair do romance, dizia-o pitorescamente, sintetizava-se nesta fórmula: «a
boa escolha dos fâmulos[2]
é uma condição de paz no adultério», e Ramalho de Ortigão ia um pouco mais
longe. Prosseguindo no exame das relações de Eça e Machado (artigos publicados
no suplemento literário de O Estado de S. Paulo em 24 e 31.10.1959), João
Gaspar Simões dizia ainda: «qualquer coisa mais grave se opunha ao exercício de uma parte objetiva adentro da técnica do
romance português e brasileiro. Eça de Queirós estava em crise; refugiou-se no
"conto fantástico" e depois A Relíquia, sátira de alicerces mais ou
menos fantásticos também. Só muitos anos depois, dez anos precisamente,
aparecem Os Maias, a obra-prima do génio queirosiano, e esse romance, se não
era a negação da técnica realista, era, pelo menos, a negação da técnica experimental.
Nele já compareciam, caldeados, o romanesco à maneira inglesa com a sátira à
maneira nacional.»
Foi na
exploração desta tese, que tem algo de sensacional, que o prof. Alberto Machado
da Rosa, açoriano que leciona na Universidade de Winconsin (Estados Unidos da
América) escreveu o livro Eça, Discípulo de Machado? (ed. Fundo de Cultura, Rio
de Janeiro, 1963). Diz, em conclusão, o prof. Machado da Rosa que Eça de
Queirós, ao recompor O Crime do Padre Amaro, em 1878 e 1879, «tentou dar ao
romance de Amaro uma forma mais dramática, mais trágica», após «ler a profunda
crítica de Machado de Assis». (Recorda-se que o escritor brasileiro criticou a
primeira versão de O Crime, romance que teve três versões, a última das quais –
posterior à análise machadiana – é a que se encontra nas diversas edições das
Obras Completas). Os Maias poderiam ter seguido a linha apontada pelo escritor
brasileiro, declara o prof. Machado da Rosa, acrescentando categoricamente que
«a influência de Machado de Assis é mais que uma hipótese», constituindo, aliás,
exemplo «único e incomparável na história da língua de Camões, como um
monumento que simboliza a fecundação do mais luminoso artista de Portugal pelo
mais profundo espírito do Brasil, e a união das duas pátrias.»
Concluímos,
por nosso turno, com outro documento ilustrando as relações Eça-Machado, pois
que tão-somente documentação procuramos apresentar. É a carta dirigida por
Machado de Assis a Henrique Chaves, datada do Rio de Janeiro, de 23 de agosto
de 1900, e na qual o escritor brasileiro se referia à morte do romancista
português: «Que hei de dizer que valha esta calamidade? Para os romancistas é
como se perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais válido. E tal
família não se compõe só dos que entraram com ele na vida do espírito, mas também
nas relíquias da outra geração, e, finalmente, na flor da nova. Tal que começou
pela estranheza acabou pela admiração. Os mesmos que haverá ferido, quando
exercia a crítica direta e quotidiana, perdoam-lhe o mal da dor pelo mel da
língua, pelas novas graças que lhe deu, pelas tradições velhas que conservou, e
mais a força que as uniu, umas e outras, como só as une a grande arte. A arte
existia, a língua existia, nem podiam os dois povos sem elas, guardar o património
de Vieira e de Camões; mas cada passo do século renova o anterior e a cada
geração cabem os seus profetas.» E confessava ainda Machado de Assis a sua
grande admiração pela obra de Eça de Queirós: «Em plena força da idade, o mal
os toma e lhes tira da mão a pena que trabalha e evoca, pinta, canta, faz todos
os ofícios da criação espiritual. Por mais esperado que fosse esse óbito, veio
como repentino. Domício da Gama, ao transmitir-me há poucos meses um abraço de
Eça, já o cria agonizante. Não sei se chegou a tempo de lhe dar o meu. Nem ele,
nem Eduardo Prado, seus amigos, terão visto apagar-se todo aquele rijo e fino
espírito, mas um e outro devem contá-lo aos que deste lado falam a mesma língua,
admiram os mesmos livros e estimam o mesmo homem.»
* De
acordo com a classificação da edição José Aguilar
In JOÃO ALVES DAS NEVES, Os Melhores Contos de
Machado de Assis, Editora Arcádia Limitada, dezembro de 1963
[1] Títere – Boneco que se
movimenta por meio de cordéis e engonços; palhaço, bufão; fantoche, bonifrate;
casquilho, janota.
[2] Fâmulo – servo, criado,
servidor; pessoa que acompanha os prelados e desempenha alguns serviços nos
seminários ou residências dos bispos; funcionário subalterno em certas
comunidades religiosas ou tribunais eclesiásticos.