O Sr. SUPERLATIVO
Eu sei que é falta de educação escutar as conversas alheias, ainda que não sejam íntimas. Porém, estando sem nada mais que fazer num dos bancos do Jardim Avenida, em Casal Parado, eis que não pude evitar ouvir o que, um casal se dizia mutuamente, e certamente seria apenas um simples fragmento de conversa maior, onde residiriam as respostas que à minha curiosidade se impunham:
– Mas eu sou um substantivo superlativo abstrato... – afirmava ele, convito, de farta cabeleira em encaracolado castanho-escuro, calças de ganga rasgadas (propositadamente) aqui e ali, para arejar a cueca, ténis de marcha, polo cinzento e kispo esverdeado.
– Substantivo superlativo abstrato... Hhhhuummm! Isso não existe – sublinhou, perentória, ela, também nova, a flanar num vestido de chita em xadrez largo, com tonalidades de azul, dourado, creme e castanho-terra, sapatos mocassins quase pretos e cabelos compridos, ondeados e soltos, em louro-palha.
– Não?!? – admirou-se ele. – Como assim? É um sacrilégio...
– É? Porquê...
– Porque deveria existir, pois é isso mesmo que eu sou –, justificou-se. – É preciso, é urgente, é imprescindível inventá-lo. E quanto antes, uma vez que estou em perigo de extinção por falta de identidade.
– Estás? Não se nota... Mas pronto, faça-se a tua vontade. Como o vais inventar, então?
– Minto: nem é necessário inventá-lo, pois já existe. Eu sou um substantivo superlativo abstrato, o que ninguém pode negar, visto que existo, até perante ti, que crês que tal sujeito não existe, mas não podes negar que estás a conversar com ele... Ou podes?
– Não, não posso negar que estou a falar contigo. A minha dúvida é que tu sejas essa coisa que dizes ser. Como mo podes provar?
– Ora, é facílimo! Olha para mim: sou uma pessoa, de carne e osso, não sou?
– És.
– Logo, sou uma substância, um substantivo. E sou radical, como costumas muitas vezes acusar-me... Portanto, superlativo.
– Também és, é um facto. E bastante chato, por sinal...
– Por conseguinte, sou um substantivo superlativo... uma pessoa radical, embora não saiba bem exatamente em quê. Em que é que eu sou inequivocamente radical...
– Pois não. Até acho que além de não saberes em quê, nem porquê, as mais vezes julgo que és mas é um tonto... – E deitou-lhe a língua de fora, como que a desafiá-lo a contestá-la, pela ironia.
– Tonto, ou abstrato... Querias tu dizer!
– Isso!
– Então, não restam dúvidas nenhumas de que sou um substantivo superlativo abstrato. Tu própria mo chamaste. E se chamaste, como poderei não existir? Aliás, foste tu quem me inventou.
«Chiça, que dois!», exclamei para com os meus botões. «Vão casar de certeza, pois se forem sempre assim, como se observa na amostra, vão ter conversa prà vida inteira, que é o principal item para a felicidade dos casais: nunca se calarem seja pelo que for. E quem chega a conclusões destas, tenho para mim, que há de conseguir falar seja a propósito do que for.» – Pensamento esse que me obrigou a abstrair-me dele e dela, claro está...
Joaquim Maria Castanho,
in CALEIDOSCÓPIO CIRCUNSTANTE
(Página 45)