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10.06.2024
NA JANELA DO TEMPO
NA JANELA DO TEMPO
Georgina Ferro
Capa de Raquel Gil Ferreira s/ foto de Abel Cunha
Edições Colibri
234 Páginas
Lisboa, julho de 2024
Os textos simples são muito complicados. Sobretudo se pejados do linguajar popular das nossas gentes que, de terra em terra, não obstante o limitado dicionário que normalmente é apenas composto pelo léxico do quotidiano aldeão, dão aos termos sentidos práticos e significações diferentes, matizando palavras iguais conforme o uso que as pessoas e os tempos lhe vieram concedendo. Mas é exatamente essa alteridade, essa variação, essa cor local[1], essa elasticidade, que enriquece a língua portuguesa e nos exercita na capacidade de raciocínio, associação e entendimento a propósito de quem somos, ou como fomos evoluindo (paulatinamente, entre dizeres e afazeres. E umas vezes com uns, outras vezes por outros – ou vice-versa).
Crónicas[2], bilhetes[3], cenas[4], poemas[5] ou cantiga[6], cartas[7], episódios[8] campestres, contos[9] – v. g. O Tio Pepe[10] e O Ti Fernando –, quadros[11] bucólicos, short-stories[12], ambiências, recordações, apelos e regressões, ou invocações da infância, desfilam ante nós com clareza e bem arrumadas, onde as palavras, incluindo as de pronúncia mais regional e incomuns para a generalidade dos portugueses, foram notoriamente escolhidas e estão ligadas umas às outras[13] completando-se amavelmente, proporcionando harmonia emocional e de significação, para conseguirmos, enquanto meros leitores e ocasionais leitoras, transformar-nos quase em testemunhas, reconhecendo-lhes as suas funcionalidade e determinação, como se fossem nossas, garantindo assim veracidade às situações espelhadas nos textos através da cumplicidade que a empatia oferece. E exige – pois dificilmente alguém conseguirá negar aquilo que lhe é evidente.
Nos poemas o ritmo poético[14] trabalha no sentido de gerar uma razão especial que justifique a sua elaboração e sentimentalidade, primeiro, bem como a sua presença no todo, depois, posto que os dois sonetos lhe servem de epígrafe, para celebrar o nascimento da autora (8-12-1948) como da obra, em conjugação com os astros e os elementos da natureza, fadando-a para os desígnios que lhe hão de seguir; e o segundo, um poema em sextilha[15] ao Ti Toino, próprio para entoar à guitarra portuguesa, encorpando a extensa sequência de quadros, a fim de gerar reconhecimento e comoção acerca do destino, do fado de um ser humano em fim de vida, sobre cuja desdita não devem restar dúvidas, demonstrando, por conseguinte, como é deveras digno de compaixão.
No geral, o discurso é lírico em registo bucólico, todavia a prevalência de certos sentimentos e emoções mais envolventes dirige-o para aquele almiscarado afetuoso, tão peculiar ao tradicionalismo da gente provinciana, que nos tolhe e embarga, mas sem nunca descambar na lamechice atávica típica dos meados do século passado, atribuindo sim aos afetos a capacidade de marcar situações, ambientes, artefactos e acontecimentos de maneira a que inaugurem uma nova maneira de ver os demais. Tomemos o caso, o episódio do avental[16].
Já não era o primeiro avental nem o mais bonito dos que a narradora tivera. Mas a avó Benta fez-lhe o primeiro aventalinho de trabalho. E, conta a autora, um dia “chegou lá a casa pouco depois do pequeno almoço e disse-me: / – Hoje é que te vou ensinar a descascar batatas! Trago aqui a faca pequenina com que a tia (sua filha) aprendeu. Foi o avô (meu bisavô Pires), que Deus tem em descanso, que a fez. Mas, primeiro tens que pôr este aventalinho. Gostas? Fi-lo ontem à noite para ti. / A partir desse dia, aquele avental servia-me de apoio para tudo!”
Neste episódio simples, um avental igualmente simples, mas carregado de afeto, transformou-se em matriz, em modelo dos aventais, que não eram coisas de somenos numa gente em que só não ia à igreja de avental[17]. Logo não foi a coisa, que ganhou valor sentimental, mas o episódio que a envolveu e originou, que marcou uma maneira de estar na vida, tornando-se não um fetiche e sim um exemplo, uma predisposição, uma lição, um motivo, um ensinamento, uma inspiração, um modus operandi para a apreensão de valores, que fizeram dela quanto foi pela vida fora, e ainda agora o é.
Portanto, pese embora aos autores[18] não devam ser imputadas as ideias, sentimentos, opiniões, virtudes e vícios dos seus heróis ou narradores, podemos sem sombra de dúvida afirmar que NA JANELA DO TEMPO é um künstlerroman[19] equilibrado[20] em formato de memórias, com que a autora completa a sua biografia editando-lhe as origens com nostálgico sentido mas, igualmente, emprestando-lhe os valores, a responsabilidade, o know-how[21] e a perspetiva de vida, cultivando-lhe a feminilidade com o exemplo feminino aldeão e familiar, a sensibilidade com a prazenteira convivência das suas gentes, sem folclores nem frenesins, e que foram razão suficiente para se abalançar noutras publicações ligadas a projetos da natureza e plantas como o Projeto Serra d’Ossa «Por um amanhã mais verde», ou o Projeto “Ceia”, e o livro O MEU ARRAIAR POR TERRAS DO SABUGAL (2013).
Uma história de Era uma vez que se passa Naquele tempo em que as fadas e famílias se misturavam a eito na carava – nós pronunciamos caraiva, para lhe acrescentar o i que tiramos ao lête, e lhe dar assim a possibilidade de também significar moina – dispondo das circunstâncias como das pessoas e das suas dificuldades e necessidades, pondo exemplo nas que as levaram ao contrabando ou emigração[22], dando o salto para França, qual Europa antes da UE, preparando também o nosso coletivo nacional pràs particularidades que nos subscrevem presentemente, tendo em conta que as janelas do tempo, dão nunca para outros lugares ou panorâmicas, mas para outros tempos, sendo das do passado que vislumbramos as do presente que, naquela altura, não passava apenas duma hipótese de futuro. Uma história que começou em dezembro de 1948 mas veio ainda além do Natal de 2020, e para permitir que a menina continue a sonhar…[1] Particularidades de trajo, caraterísticas geográficas, circunstâncias dialetais, linguagem e costumes de um determinado lugar ou região portuguesa.
[2] Que se reporta a uma espécie regular de resenha de acontecimentos com referenciação temporal e significação próxima das histórias, conforme define Silva Araújo, no livro VAMOS FALAR DE JORNALISMO, Direção-Geral da Comunicação Social, 2ª Edição, Lisboa-1990, às páginas 141 e 142.
[3] Texto semelhante à crónica mas ocasional e que reporta exclusivamente a visão peculiar e pessoal do seu autor (Silva Araújo-1990), pág. 141.
[4] Incidente ou situação da vida real que corrobora as impressões da autora e exemplifica o seu efeito sobre si.
[5] Págs. 13-14, e 76.
[6] Cantar as Janeiras, págs. 198-199.
[7] Comunicações escritas, sejam notas ou missivas, trocadas entre pessoas, que identificam o género epistolar.
[8] Caso ou sucesso incidental que se inclui numa narração mais extensa, segundo o DICIONÁRIO DE TERMOS LITERÁRIOS, de Harry Shaw, Publicações Dom Quixote, Lisboa-1978, pág. 175.
[9] “Dá-se (…) a designação de contos (…) a narrações mais ou menos pormenorizadas de factos ou incidentes reais ou imaginários e a outras narrações de enredo simples”, conforme sugere Shaw-1978, pág. 120.
[10] Págs. 163 a 176 e 177 a 181.
[11] Grupo de pessoas ou objetos numa certa disposição, de acordo com Shaw-1978, pág. 384.
[12] Histórias breves ou curtas, como se podem exemplificar com a intitulada Na Vila, da pág. 185.
[13] “As palavras estão ligadas umas às outras na medida em que algumas estão lá para «completar» o sentido, lacunar em si mesmo, de algumas outras”, como terão enunciado Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, no DICIONÁRIO DAS CIÊNCIAS DA LINGUAGEM, edição portuguesa orientada por Eduardo Prado Coelho, para as Publicações Dom Quixote, Lisboa- 1978, pág. 259.
[14] “… o ritmo poético pode entender-se como aproveitamento melódico particular de uma certa estrutura determinado por um significado específico”, como o observa Carlos Reis, no livro TÉCNICAS DE ANÁLISE TEXTUAL, 3ª edição revista, publicado pela Livraria Almedina, Coimbra-1981, na pág. 177.
[15] Na pág. 76, onde falta o último verso.
[16] Pág. 97.
[17] Pág. 99
[18] Segundo parecer de René Wellek e Austin Warren, na sua TEORIA DA LITERATURA, trad. de José Palla e Carmo, editado pelas Publicações Europa-América, 4ª edição – 1982, pag. 89.
[19] Palavra alemã que significa «romance do artista» e se reporta a um tipo de narração que nos conta a vida e formação do autor (ou duma personagem que se lhe assemelhe) desde a infância à maturidade – conforme Shaw-1978, pág. 271.
[20] Diz-se equilibrado um romance cuja caraterização das personagens lhe traça os pontos favoráveis como desfavoráveis com igualdade, de acordo com Shaw-1978, pág. 178.
[21] Conjunto de saberes-fazer e conhecimentos práticos tradicionais.
[22] Pág. 143.
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