"Ele não respondeu, acompanhou-a à porta e tentou não ouvir os saltos dela no mármore, a escreverem S-E-X-O em código Morse."
In O Cego de Sevilha (p.221),de Robert Wilson
Porque os que com desacuidade vêem, exigem cegueira absoluta aos que consigo habitam, convivem, trabalham, aprendem, partilham interesses e se divertem, é notório que enquanto a Justiça for condicionada pela "arquitectura" integrista e fundamentar os seus alicerces no corporativismo burocrático – obrigado, Kafka! –, será cada vez mais injusta e menos democrática, menos confiável e mais sexista, ou seleccionista, menos acessível e mais confusa, menos transparente e mais secretista, de suspeitas coreografias nas oportunidades decisórias, além de tender cada vez mais a transformar-se numa arma de arremesso para diferenças e ódios, como instrumento de poder que o establishment dispõe a seu bel-prazer, a fim de enfrentar os seus mais acesos e acérrimos temores, legitimar as profilaxias de evitação, nomeadamente as de precedentes, executar as principais antipatias viscerais socialmente identificadas, através do exercício modelar da percepção motivada (e economicamente assistida), capacitada e justificada por uma estranha interpretação determinista da moralidade, na medida em que qualquer variação no status se incrementa sempre por pronunciada ruptura – ou dissidência, ou resistência – com o sistema vigente, baseada em formas de o adulterar ou corromper, recorrendo invariavelmente a meios pouco ortodoxos, logo passíveis de ilegitimidade e "indesejáveis"; eis, portanto, o caldo sócio-cultural em que se multiplica a matiz de tangência entre as esferas política, judicial e pessoal, na formatação do vínculo de intercepção concreta da ética democrática, onde os problemas fazem impreterivelmente parte das soluções.
Porém, soam rumores de novidade, ventos de mudança, em feição a reparados rumos. Pode apenas ser crença, fé de gentios, homens e mulheres que por muito peregrinar nos passos perdidos, ainda supõem ser possível ir para o futuro numa carroça do passado. E quem diz carroça, diz máquina; e quem diz máquina, diz aparelho, diz sistema; e quem diz sistema, diz corpo legal, diz software, diz edifícios, diz instalações. Por mim, sendo local de frequência conjugável no obrigatório, que é gerúndio de tem-que-ser, da última vez que fui a um tribunal, no caso, ao de Portalegre, depois de subir os socalcos até ao primeiro piso, restou-me esperar num corredor soturno e frio, sentado em banco conventual, a ler, até que, saltos batidos no mármore se fizeram ouvir, pesados em sobrecarga de processos, me apagaram a luz, exigindo-me por único entretém o umbral da porta (sem porta) ao fundo do corredor, onde, dois homens principiavam a levar outro, escadas acima, numa cadeira de rodas, pegando-lhe o da frente pelas rodas dianteiras da mesma, o de detrás, nos punhos das costas que servem para empurrar a dita (máquina), para aceder à sala de audiências, a fim de poder usufruir da Justiça, não sei se como arguido, se como queixoso, o que também não terá importância alguma, uma vez que para a ela chegar teve que ir de cabeça para baixo...
E como vi uma cadeira de rodas, imaginei que terá sido resultado de qualquer acidente. Lembrei-me então, do pardal Sebastião, que num dia de nevoeiro, lhe aconteceu por inteiro, ser o desafortunado aventureiro, de mais um acidente de viação:
Ia, pela estrada de Alpalhão, no seu Mercedes topo de gama, um próspero agricultor, cuja perícia na condução, é pisar bem no acelerador. Todavia, em sentido contrário, fugindo da áspera rama, de uma árvore à beirinha, num ápice de fósforo em chama, veio Sebastião de repente, estatelar-se mesmo na sua frente, sobre o pára-brisas, e truz-pás-zás-catrapuz, pelo que o condutor exclamou "ai, Jesus", ao ver a ave de asas em cruz, travou, parou, e condoído pela visão, tratou de recolher o pardal, a quem o coração ainda batia, colocando-o no banco ao lado, até chegar a casa, para tratá-lo conforme pudesse e sabia. Pois bem, ao remanso do lar chegado, o remorso virou cuidado, e ajeitou o pobre animal, numa cama de papel, pondo-lhe perto água e pão, dentro de uma gaiola antes vazia, que guardara para qualquer ocasião. E ali ficou Sebastião, entre medo, dor e agonia, mas como era ave de respeito, por aquilo que lhe batia no peito, eis que passadas algumas horas, sem perdidas demoras, deu acordo de si... e dito e feito: que viu ele? Ao fundo, graníticas paredes, de histórico castelão, enquanto perto tão-só grades, um púcaro de água, migalhas de pão. Afligiu-se então nesse ínterim, que nunca se vira em tais sedes, e lançando os olhitos aos céus, gritou "ai, meu Deus, que fui eu fazer?, não é que queres ver, que matei o tipo do Mercedes?"
Portanto, perante o visto, na subida de quanta gente espera que a Justiça seja justa, mas lhe acede de pernas para o ar, quis-me parecer que razão tinha o pardal em desconfiar do trato, que também aqueles a quem é anunciada a mudança de uma Justiça para todos, democrática, deve ser difícil de entender, já que das sociedades e cidades e edifícios que são fundamentalmente só para alguns, muito pequena há-de ser a que vier. Porque a Justiça serve a sociedade que a sustenta, e essa, é precisamente esta a Justiça que ela quer. E quem pensar o contrário, sujeita-se a ser outra bárbara avis rara!
(Nota: este texto foi feito para colaboração na revista Justiça & Democracia, onde efectivamente saiu publicado no número 02, de Outubro 2008/Janeiro 2009)