7.25.2021

Gentes Que Marcam a Vida da Gente, de ROSA HONRADO CALADO

 

GENTES QUE MARCAM A VIDA DA GENTE

Rosa Honrado Calado

(138 páginas)

Edições Colibri

Lisboa, 29 de maio de 2021


Não fosse a autora deste livro, Rosa Honrado Calado, formada em História, com diversas obras já publicadas neste universo temático e disciplinar, nomeadamente coautora de manuais escolares (História e Geografia de Portugal), ou, mais recentemente, de coautoria com Francisco Santana em Ponte Vasco da Gama (1996), e autora de Aos 100 Anos, História do Grémio de Instrução Liberal de Campo de Ourique (2010), facilmente estaríamos inclinados para classificar Gentes Que Marcam a Vida da Gente, como mais um künstlerroman – palavra alemã que significa “romance do artista” e se reporta a um tipo de narrativa que nos dá conta da vida e formação dum autor, ou autora, ou até duma personagem que se lhe assemelha desde a infância à maturidade –, ainda que na maioria destas obras se descreva a luta duma criança de temperamento artístico e delicado para se libertar da incompreensão da família, como das demais crianças de sua geração, e aqui se reflita antes a sua sensibilidade humanitária, consciência cívica e indignação pela injustiça social vigente nos últimos 20 anos do regime ditatorial salazarista/marcelista, incidente sobretudo no Baixo Alentejo, mas com especial relevo em Ferreira do Alentejo, onde o núcleo familiar se concentrava levando a bom porto o negócio da família: a Nova Pensão, estabelecimento de porta aberta inaugurado por seus avós paternos.

Todavia, seria quase indecoroso classificá-lo assim. E porquê? Porque Gentes Que Marcam a Vida da Gente, é uma memória pessoal mas também um documento histórico, elaborados com o aprimorado cuidado de quem cresceu a par do evoluir da sociedade e ambiente provinciano, que, pela frugalidade de meios, se manifestava deveras importante para a vida das pessoas que lhe estavam adstritas. E também porque esse crescer se podia identificar com outros cresceres noutras vilas alentejanas, das quais me estou a lembrar, por ter assistido a ele, por exemplo, de Alter do Chão, onde nem a Pensão Nova faltaria. Digamos que naquele tempo se crescia tal e qual em todas as vilas alentejanas, e o que marcava realmente a diferença eram as particularidades pessoais de algumas “gentes” que aí viviam. E Rosa Honrado Calado, filha única duma família que tinha rompido a pulso sobre a insuficiência geral, cujos pais, tios, tias, primas e primos, já marcavam a diferença, porque já iniciados politicamente, e com sensibilidade suficiente para interpretarem o status quo não como resultado da imutabilidade e determinação do destino, mas sim como reflexo duma ordem social construída e legislada, com vista a beneficiar a classe social que a edificara e cultivava com recurso à polícia, à política salarial e condições de trabalho, à propaganda e a um aparelho de Estado repressor e arbitrário, assistido por uma religiosidade pré-luterana, senão medieval, foi, grosso modo, uma privilegiada que não perdeu rumo por emburguesamento lisboeta, nem o vínculo às suas origens, e que ao invés o reforçou, quer pela formação conseguida, como pela participação e desempenho em todas as causas que abraçou, entre as quais se pode salientar o ser membro da Direção da Casa do Alentejo, situada na nossa capital, ou diretora executiva da Revista Alentejo, dá delas como de si, um testemunho que nos enobrece.

O que, diga-se a propósito, é um motivo mais que suficiente para atentar na sua leitura.


Joaquim Maria Castanho

7.17.2021

The Smiths - There's a Light that Never Goes Out (Legendado-Tradução) [5...

ESQUECE, de Margarida Paredes

 

ESQUECE

Escrever o Colonialismo em Angola

MARGARIDA PAREDES

Prefácio Inocêncio Mata

128 páginas

Edições Colibri

Lisboa, maio de 2021


A literatura é ficção. Logo, nunca retrata a realidade. Nem a atualidade. E a vida. Antes as usa, as utiliza, de forma mais ou menos realista. Portanto ESQUECE, que é um livro escrito com uma bolsa de criação literária da Direção Geral dos Arquivos e das Bibliotecas do Ministério da Cultura, que a autora recebeu no concurso nacional de 2018, tal como é afirmado na contracapa, “é uma obra ficcionada sobre a colonização portuguesa em Angola”.

Nessa perspetiva, em que espelha memórias e registos, experiências e malhas que o império teceu, o processo de colonização/descolonização é humanizado e concentrado na biografia de uma negrinha de criação, desde a sua atormentada infância, até à sua emancipação definitiva, em resultado dos diversos movimentos/estádios de libertação e amadurecimento que atravessou. Com raízes fundamentadas no sistema colonial português, Uíja, que assim foi batizada em homenagem à sua terra, cedo aprendeu que viver é escolher – e nem todas as escolhas são fáceis. Quer dizer, nunca são fáceis.

Todavia vingou. Aproveitou cada oportunidade que se lhe ofereceu para estudar. A escola, a formação, a geração, o exército de libertação, o contato com a sua gente, como com os outros, obtiveram relevo importante no seu currículo geral, autenticando-lhe a cidadania que os colonos tentaram amputar-lhe, logo que a recolheram para fazer companhia ao menino branco – Carlitos.

Negrinha de criação do Rei da Fuba e do Peixe Seco era, à partida, um estigma, um handicap de peso que havia de carregar vida fora. Estatuto que lhe reservava um papel na sociedade que nada de bom tinha para lhe oferecer, além do convívio com um estrato social superior na hierarquia do sistema. Porém, ela, a desenraizada crónica, queria conquistar o seu lugar no mundo, e agiu em conformidade. Iniciada pela violência, conheceu-lhe todos os aspetos e vertentes. A da guerra, da economia, da religiosidade, do trabalho, da educação, da família, da aculturação, da sexualidade. E a da memória, porque o passado nunca morre, fica debaixo da pele, qual velho e esquizofrénico passado a emergir da cultura com águas muito turvas. Mas “quando um criança corre, a areia salta e o capim abana”(pág. 16).

Aprendeu a ler, reparou que “sofrimento é a palavra com que os sobreviventes escrevem todos os discursos” (pág. 28), aderiu às células clandestinas do GETRA – Grupo de Estudantes Trabalhadores Angolanos, que lutava contra a grande noite do regime colonial –, embrenhou-se nas selvas narrativas de Proust (Em Busca do Tempo Perdido), Lawrence Durrell (O Quarteto de Alexandria), Boris Vian (A Espuma dos Dias), Jack Kerouac (Pela Estrada Fora), e ouviu Led Zeplin, Deep Purple, Black Sabbath, em parceria com os demais habitantes do nevoeiro dos cacimbados, consumidores dos capins sagrados, mas não se deixou consumir que quem foi criado por cobra aprende a morder. Até que um dia a Dipanda aconteceu, e reconheceu finalmente que “ver uma coisa não é o mesmo que ver outra” por quanto a descolonização não começara após o 25 de abril, como os coloniais referiam, mas sim o resultado de um processo histórico iniciado em 1961, quando os colonizados pegaram em armas reivindicando o fim da ocupação. Principalmente porque por mais adiantada que seja qualquer democracia, nenhum sistema nos dá nada de mão beijada.

Enfim, uma leitura agradável e altamente nutritiva para qualquer espírito que conserva ativo esse mínimo de curiosidade que diferencia quem é humano de quem apenas pertence à espécie humana.


Joaquim Maria Castanho


7.10.2021

JOÃO DE MANCELOS, Nunca Digas Adeus ao Verão

 

NUNCA DIGAS ADEUS AO VERÃO

João de Mancelos

Edições Colibri

Lisboa, março de 2021


A literatura é uma arte esquiva. Ela nunca reproduz a realidade. Quanto muito, utiliza-a. Usa-a em proveito da poesia, do teatro, do romance, da saga, da epopeia, da novela, do conto, da crónica e da shortstory, sob os mais diversos aspetos e suportes, motivações e estilos. Algumas delas, como as crónicas/conto de Nunca Digas Adeus ao Verão, de João de Mancelos, são tão compactas, que raiam o guião de casos, de situações, que os leitores e leitoras podem observar com considerável distanciamento. E é ele – esse afastamento objetivo – que nos faculta apreciar a palavra elaborada, a cadeia de filigranas (frases curtas), a intrincada teia de significantes e significados através dos quais são geradas. Edificadas. E expostas.

Às vezes o discurso aproxima-se tanto da técnica cinematográfica que as elipses contribuem a olhos vistos para os desfechos inesperados, surpreendentes, a rasar tanto Hitchcock como Edgar Allan Poe, mas sem que tenham sidos pronunciados; outras, fazem-nos lembrar Raymond Carver ou psicologismo de Patricia Highsmith, Ray Bradbury ou Arthur C. Clarke, mostrando todas as cartas em jogo a quem lê, ocultando-as contudo dos jogadores em ação (as personagens vítimas do enredo ou intriga), a quem baralham propositadamente mostrando as secundárias por trunfos e vice-versa, até chegarmos ao ponto de lhes gritar (avisando-as) meio aflitos «Parva, não faças isso, que vais dar-te mal». E isto são as linhas com que se coze, confeciona, o novo neorrealismo.

Este novo neorrealismo que, já dissidente do realismo mágico, tem memórias e perceções seletivas próprias, bem como um fundo sonoro intrínseco, cuja intenção primeira subjacente à elaborada gestão do discurso literário é criar nos leitores, e nas leitoras, emoções e sensações, vivas e pujantes, sem nunca argumentar e concluir, a favor ou contra seja do que for, limitando-se a mostrar, a descrever, através duma imagética e duma narrativa tão nitidamente pictóricas, sugestivas, que inspiram e refletem uma frieza objetiva que nos não atrevemos a contestar, tipo “se ele diz que foi assim, é porque foi”, caraterística da reportagem, mas também da experiência didático-pedagógica.

Ou seja, os dados estão tão claros e evidentes, observáveis e tão bem alinhados, enquanto pressupostos do discurso ficcional, que ficamos a torcer pelo autor para que funcionem na perfeição, e enxerguemos não só o que ele mostrou mas principalmente o que ele quis que sentíssemos, que víssemos. Enfim, o que pretendeu mostrar-nos, numa cumplicidade envolvente.

E sem perdermos muito tempo, uma vez que o livro não tem mais que 88 páginas, e treze histórias, numa média de quatro, cinco páginas por história, economizando quer no recurso, como no discurso e na narrativa. O que, para os tempos que correm, é uma mais-valia significativa.


Joaquim Maria Castanho

7.08.2021

BRISAS QUENTES, de Ana Landeiro

 

BRISAS QUENTES

Ana Landeiro

(poesia)

15,5 x 23 cm, capa mole, a cores, plasticizada

103 páginas


A poesia, além de uma ancestral e exímia técnica (arte) de codificar e descodificar mensagens, originariamente orais e somente acessíveis aos por ela e nela iniciados, é também um exercício de sensibilidade e sensibilidades. E BRISAS QUENTES é um livro de poesia que cheira a azul e dunas douradas – ou salgadas –, de expressão (lírica) intimista, com a sensualidade à flor da estrofe (livre), pejada de palavras inventadas (para podermos amar), compostas por letras, fonemas, noemas, sílabas e imagens sem qualquer pretensão, mas que não couberam na tinta dos beijos da solidão, pondo o diabo a tremer (diante de tanta tentação).

É um exemplo pertinente, e comprovativo, de como as metáforas no prendem às litanias do evoluir para aportarmos à magia dos sentidos, das emoções, dos sentimentos, dos afetos, transportando-nos, assim, para essoutro universo, onde o mel brota das pregas do verso. De rápida leitura, contudo enriquecedora, exige porém uma releitura mais apurada e pausada em alguns poemas, para os podermos usufruir na plenitude que inspiram e contemplam.

Portanto, minha prezada amiga Ana Landeiro Ferreira, agradeço-lhe encarecidamente a permuta pela qual mo facultou, e aqui lhe rendo a devida homenagem, desejando-lhe não só sucesso e sorte na sua disseminação, mas também inúmeras leituras e feedbacks de apreço. Porque os merece.


Joaquim Maria Castanho

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

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