ESQUECE
Escrever o Colonialismo em Angola
MARGARIDA PAREDES
Prefácio Inocêncio Mata
128 páginas
Edições Colibri
Lisboa, maio de 2021
A literatura é ficção. Logo, nunca retrata a realidade. Nem a atualidade. E a vida. Antes as usa, as utiliza, de forma mais ou menos realista. Portanto ESQUECE, que é um livro escrito com uma bolsa de criação literária da Direção Geral dos Arquivos e das Bibliotecas do Ministério da Cultura, que a autora recebeu no concurso nacional de 2018, tal como é afirmado na contracapa, “é uma obra ficcionada sobre a colonização portuguesa em Angola”.
Nessa perspetiva, em que espelha memórias e registos, experiências e malhas que o império teceu, o processo de colonização/descolonização é humanizado e concentrado na biografia de uma negrinha de criação, desde a sua atormentada infância, até à sua emancipação definitiva, em resultado dos diversos movimentos/estádios de libertação e amadurecimento que atravessou. Com raízes fundamentadas no sistema colonial português, Uíja, que assim foi batizada em homenagem à sua terra, cedo aprendeu que viver é escolher – e nem todas as escolhas são fáceis. Quer dizer, nunca são fáceis.
Todavia vingou. Aproveitou cada oportunidade que se lhe ofereceu para estudar. A escola, a formação, a geração, o exército de libertação, o contato com a sua gente, como com os outros, obtiveram relevo importante no seu currículo geral, autenticando-lhe a cidadania que os colonos tentaram amputar-lhe, logo que a recolheram para fazer companhia ao menino branco – Carlitos.
Negrinha de criação do Rei da Fuba e do Peixe Seco era, à partida, um estigma, um handicap de peso que havia de carregar vida fora. Estatuto que lhe reservava um papel na sociedade que nada de bom tinha para lhe oferecer, além do convívio com um estrato social superior na hierarquia do sistema. Porém, ela, a desenraizada crónica, queria conquistar o seu lugar no mundo, e agiu em conformidade. Iniciada pela violência, conheceu-lhe todos os aspetos e vertentes. A da guerra, da economia, da religiosidade, do trabalho, da educação, da família, da aculturação, da sexualidade. E a da memória, porque o passado nunca morre, fica debaixo da pele, qual velho e esquizofrénico passado a emergir da cultura com águas muito turvas. Mas “quando um criança corre, a areia salta e o capim abana”(pág. 16).
Aprendeu a ler, reparou que “sofrimento é a palavra com que os sobreviventes escrevem todos os discursos” (pág. 28), aderiu às células clandestinas do GETRA – Grupo de Estudantes Trabalhadores Angolanos, que lutava contra a grande noite do regime colonial –, embrenhou-se nas selvas narrativas de Proust (Em Busca do Tempo Perdido), Lawrence Durrell (O Quarteto de Alexandria), Boris Vian (A Espuma dos Dias), Jack Kerouac (Pela Estrada Fora), e ouviu Led Zeplin, Deep Purple, Black Sabbath, em parceria com os demais habitantes do nevoeiro dos cacimbados, consumidores dos capins sagrados, mas não se deixou consumir que quem foi criado por cobra aprende a morder. Até que um dia a Dipanda aconteceu, e reconheceu finalmente que “ver uma coisa não é o mesmo que ver outra” por quanto a descolonização não começara após o 25 de abril, como os coloniais referiam, mas sim o resultado de um processo histórico iniciado em 1961, quando os colonizados pegaram em armas reivindicando o fim da ocupação. Principalmente porque por mais adiantada que seja qualquer democracia, nenhum sistema nos dá nada de mão beijada.
Enfim, uma leitura agradável e altamente nutritiva para qualquer espírito que conserva ativo esse mínimo de curiosidade que diferencia quem é humano de quem apenas pertence à espécie humana.
Joaquim Maria Castanho
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