MESA NA PLANÍCIE
António Conde
360 páginas
Chiado books, abril de 2024
“Por junto, uma mesa de pedra na planície: come-se, ora-se, dura-se um
desfeiteado raio de sol e logo se morre. Sobre a mesa. Sob a mesa.[1]”
Escrever sobre ficção, sobretudo se formos pessoas que também a faz, acerca dos títulos e obras de outros autores, sobre o seu estilo e técnicas narrativas, nunca é fácil. Mesmo depois de leitura atempada, com acuidade superlativa, livre de qualquer influência externa, ou recensão crítica anteriormente gizada, sem a mínima referência a quaisquer outras obras desse autor, pois o envolvimento pessoal induz-nos a torturar as frases, a espremer as orações, a torcer os parágrafos, de forma a encaixá-los no estilo próprio, apropriando-nos assim do conteúdo delas (frases e orações) e dele (parágrafo), para lhes conceder, não um entendimento racional, mas antes uma espécie muito peculiar de empatia, que sempre facilita a compreensão a propósito de tudo quanto «nasce, cresce, se reproduz e morre», que se carateriza por identificações ou rejeições – vulgar gosto/não gosto – intercaladas e avulsas. O que é normalíssimo e se faz espontaneamente, e nos leva a simpatizar ou não com quanto é lido, sobrepondo as nossas preferências às dos demais, medindo e avaliando quanto se lê pela nossa bitola. E matriz. Comparando em vez de interpretar ou analisar o que se tem em mãos, emitindo normalmente sobre as criações de outros autores as mesmas sentenças de que alguma vez teremos sido alvo, ainda que disfarçadamente adaptadas aqui e ali.
Portanto, após este reparo metodológico, posso dizer que fiquei impressionado pela riqueza vocabular, a flexibilidade discursiva e a variedade lexical com que é distribuída pela narrativa, bem como ela se desenvolveu (tecnicamente) em frases curtas, parágrafos fluentes e breves, claros e limpos, que enunciam o feixe de luz sob o qual Dr. Medeiros vai contracenando com as figuras menos visíveis, as personagens secundárias, espelhando a ação, quadros após quadros, em que o leque de tipos sociais se vão dando a conhecer e o ambiente urbano vai ganhando contornos cada vez mais precisos e vincados, nos seus alicerces históricos (enquanto “pedras de outros tempos”[2]), estabelecendo marcos culturais, desvendando particularidades mas também alguns aspetos de postal ilustrado com pendor turístico, para finalmente também ela, a “Évora cidade”, se revelar em pleno e soberana para além das nesgas iniciais.
Estruturado por cadernos com capas de diferentes cores e uma bobine final, permite cruzar estes através da semântica com a semiótica, atribuindo tonalidades aos assuntos que contêm, aos quadros que se desenrolam, às peripécias que descrevem e retratam maioritariamente em registo polifónico: cor de tijolo, creme, lilás, verde-escuro, cinzento, plástico transparente e preto – como se de um vitral gótico se tratasse. E por fim, a cintura de suporte da fala numa bobine, rematando-lhe os pontos e franjas, para não se desmanchar se alguém o quiser transportar para outras coreografias onde Lourenço se possa recordar de si mesmo enquanto Lourenço que teve “um livro animado de aventuras, uma fascinante recordação de infância, perdida ao entrar no seminário”[3], Álvaro Mendes.
Álvaro Mendes que criou Medeiros, que criou D. Virgínia – ou D. Glória – , que criou Olga – ou Alice –, que criou Simone, como criou Ludovico, e reinventou Évora, trazendo-a à baila na boca de cena dum palco na planície, enquanto mesa clerical nas aguarelas impressionistas de um existencialismo dramático, logo desvendado por terceiras pessoas (ele e ela; ela e ele), quadro após quadro num enorme painel sobre o qual vão caindo, não a tarde, mas o “halo iluminante”[4], o círculo de luz para um zoom expressionista, assim caderno a caderno, num maço de papéis onde Eça e Rodrigues Miguéis se cruzam com Vergílio Ferreira, para lhe dar o toque caligráfico, a polpa de mão para que Shakespeare verta sobre eles o tom inquisitorial da pergunta retórica, a História (regional) empreste os motivos, a geografia lhe forneça a atmosfera de fundo, a fim de que a chuva das palavras fertilize a aridez duma época dada a aparições e manhãs submersas no fumo das consciências mais ou menos moralistas, com as “vistas curtas”[5], redutoras, castrativas, duma cultura provinciana com “o peso de uma continuidade de séculos”[6]. E Rainer Maria Rilke se fizesse presente enquanto poeta com que “arredar a ganga dos dias”[7], para barrar a mágoa sofredora na clareza da subjetividade batida em castelo, muralhas, conventos, igrejas ou templos, palácios, quintas, ruas e arcadas viradas para a grande praça numa incomensurável interrogação shakespeariana[8].
Mesa na Planície acarreta-nos para Évora se atreitos à “imagética, nas tonalidades pictóricas das palavras”[9], “como quem tira bilhete para destino desconhecido, a fotografia como modo de andar pelo mundo e [a] recortar[-lhe] alguns pedaços e instantes perplexos, aguçados ou simples”, estabelecendo razões plausíveis que justifiquem a vocação antiga duma “cidade [que] não perdoa carne desencaminhada[10]”, em que se acredita ter sido sempre assim, “indistinto, de modorra, indigno de relevo[11]”, mas que, afinal, é, em absoluto, o busílis para todo o enredo: a morte de Ludovico que “obrigou por promessa” Medeiros a publicar o relatório sobre a morte de Bento de Pavia, um “ato de pura fé, enxuto, dos cáceres à estaca”[12] sem “fausto, nem demora”, na segunda metade do século XV, por sodomia, mas que deixara terras e casa à Santa Madre Igreja, uma vez que o primeiro possuía um pouco do sangue que o segundo tinha.
Isto é, Lourenço muda de vida, torna-se Medeiros e regressa à terra, porque quer engolir os fantasmas que o assolam, trazendo consigo a única bagagem que a literatura permite, livros, caixas e caixas de livros. Mas o passado também vem e desperta com algumas pessoas nessa vida nova, exigindo tocar nas personagens antigas, ajustar com elas algumas pontas soltas, depois do batismo que foi a sua primeira molha visitando lugares onde vivera, ou viveram e vivem quem ligado a si de alguma forma teria estado. E o círculo fecha-se, tocando-se o primeiro com o último caderno. Como? Através da fala, da voz, desbobinando tudo… Porque – You’d better go back. And you’d better swallow all the ghosts that follow you around. And kiss Ludô for me. More than a week is hard for me. Counting on you, All. [13]
Porque o retorno, mesmo não sendo eterno, é sempre melhor. Melhor do que o quê? Do que nada: gota de anil ao longe, numa aguarela de azuis. E faz com que este livro, recheado de uma inegável riqueza intertextual, enfim, seja uma leitura enriquecedora e desejável, por cruzar testemunhos diversos recuperando quandos igualmente díspares do mesmo espaço, essa Évora sempre presente, ainda que não se esteja a falar exatamente dela em alguns cadernos, e não evita roteiros nem manobras tangentes ao estigma social, incluindo as reminiscências do pré e pós 25 de abril, que permitiu que algumas pessoas/personagens anteriormente afastadas por variados motivos, a ela voltassem para a reverem – e reverem-se nela.
Joaquim Maria Castanho
[1] Pág 104
[2] Pág. 22
[3] Pág. 337
[4] Pág. 205
[5] Pág. 335
[6] Idem
[7] Pág. 221
[8] “O propósito de semelhante interrogação, cuja resposta é evidente, é, em regra, o de produzir uma impressão mais funda no ouvinte (ou no leitor) do que aquela que se poderia obter mediante uma afirmação direta”, tal como é afirmado no DICIONÁRIO DE TERMOS LITERÁRIOS, de Harry Shaw, traduzido do inglês e adaptado por Cardigos dos Reis, para a Publicações Dom Quixote, Lisboa, em 1978, à página 259. (Itálico e negritos meu.)
[9] Pág. 324
[10] Pág. 337
[11] Pág. 190
[12] Pág. 89
[13] Pág. 249 – É melhor voltares. E é melhor engolires os fantasmas que te assolam. Dá um beijo
por mim ao Ludô. Uma semana é difícil demais para mim. Conto com vocês, todos. (Tradução própria.)
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