9.29.2024

MARINHO, UM FALSÁRIO NO ALENTEJO


 

MARINHO, UM FALSÁRIO NO ALENTEJO

Jorge Branco

224 Páginas

Edições Colibri, julho 2024

           

            Naquele tempo viver dentro da lei era contribuir para a opressão dos seus vizinhos e familiares. E não cumprir a lei, desde que fosse para sabotar os desígnios dos poderes instalados, era considerado um comportamento de lesa pátria ou traição a ela. Mesmo que o fizessem apenas por dinheiro, coisa apolítica que seria apenas legítima para os defensores do sistema e ordem pública, para singrar na vida ou sair da mediocridade e provincianismo tacanho. Pelo que este livro pode ser visto como uma epopeia pícara de um habilidoso meliante filho de droguista da Outra Margem à beira-Tejo, e de uma mariarrapaz alentejana, Matilde Maria Palma[1], uma criança que prometia dar luta à morte, vaticino que se evidenciara pela apetência com que se agarrara à teta da mãe na sua primeira refeição fora do ventre materno, filha de um latoeiro ratinho que se fixou no Alentejo interior, mais precisamente, em Vale Fundo, concelho de Lorvão, distrito de Portália, aldeão esforçado e honesto, que morreu num despiste de carroça em má hora.  

 

Ele, Marinho[2], nome de guerra do “artista”, Marinho das Meiguices[3] ou Mário Pinto Castanho[4], quer dizer, Mário da Costa Caetano[5], que teve como mestre e guru nas malfeitorias tipográficas um tal “Zeca”[6]velho militante anarquista à beira da reforma – e por [7]alter ego Casimiro, não o das imitações é certo, mas emigrante regressado ao torrão natal para politização das gentes, serviu a pátria que havia de haver com as suas habilidades e improvisações, tocando saxofone e ajudando mancebos a escapar aos desígnios ultramarinos do Botas[8], pelo menos até 1964, data em que põe os seus talentos dedicadamente dirigidos ao sistema prisional português, em regime de exclusividade, autenticando-lhe a garantia curricular de ter passado dos seus 75 anos de vida, 25 anos preso, o que lhe valeu um estatuto de VIP, ou pícaro deveras importante e notável com direito a biografia romanceada editável.

Ela Matilde (25 anos) e ele Mário (de 32 anos), que a notou quando o tipógrafo[9] com ela se cruzou pela primeira vez na Pensão Horas Felizes, onde a “doutora”[10] – e assim epitetada pelo ancião galego dono do estabelecimento por razões que se prendiam às suas anteriores funções de enfermeira e “esposa” do viúvo ginecologista em casa do qual singrara de desde baby-sitter a dona de casa – estagiava para empresária de restauração empreendedora e determinada, quando ambos rumassem ao Alentejo a fim de lançarem sementes e criarem raízes prosperando rumo ao futuro que se materializara com a gravidez dela, em 1964[11] – que mais tarde trouxe às páginas almas e corpos gémeos, de seus nomes Raquel e Luís[12] –, imediata e consecutiva à entrada dele no EP[13] de Coimbra, estabelecimento onde fora acabar o curso de meliante com currículo garantido na cidade dos doutores.

  

Ou seja, a presente novela, obra de Jorge Porfírio Nunes Branco, licenciado em medicina com a especialidade de medicina geral e familiar (1980), natural da Comenda, Gavião, Portalegre, autor de diversos títulos de ficção como Comenda com Gente (2015), Histórias Prisionais (2016), Comenda com História (2018) e A Quadrilha dos Galhardos e Outros Contos (2023), estando estruturada como um relatório com itens temáticos faz a reportagem da vida dos dois personagens principais (Mário e Matilde), de diferentes origens, juntando-os, propiciando-lhes um ambiente profícuo e recetivo aos seus misteres, onde puderam coabitar cultivando talentos e vocações, expedientes e saberes fazer[14], facilitando-lhes uma família com acolhimento de solos e gentes familiares, sem recorrer ou fazer-se representar por qualquer narrador, deixando-os vir à tona da escrita misturados com factos e invenções que lhes abonem os préstimos, para assim os enquadrar no espaço-quando alentejano mais ou menos dez anos do 25 de abril até aos dez anos depois da revolução que segundou o MFA – Movimento das Forças Armadas –, espelhando rituais e tradições[15], bem como retalhos da História Local e Regional contemporâneas, além de fornecer algumas ilustrações da História nacional que o corroboram, em parágrafos de recheio intencional, em que se vai debitando informações que possam interessar a quem lê para que reconheça a validade plausível da narrativa. Ao fundo da qual se vai sempre ouvindo música de intervenção, música popular portuguesa, sobretudo do José Afonso (Zeca Afonso), do Sérgio Godinho, dos Rio Grande, de Jorge Palma…

 

Palimpsesto[16] inequívoco mas funcional – entenda-se, propositado –, que se serve da caraterização das personagens para lhes evidenciar o seu lado histriónico, facilitando assim “ver” como elas são isto & aquilo de acordo com as circunstâncias do trajeto de suas vidas, que não planearam nem para a qual gizaram um projeto comum que lhes desse sentido, antes obedecendo-lhe aos ditames, interpretando independência por emancipação, esta novela é uma obra de ficção fundamentada, alicerçada, suportada, por referências factuais, cuja repetida edição vai, pouco a pouco, mostrando a vida dramática e singular das pessoas simples dum Alentejo inóspito, agreste, primeiro amordaçado e depois ignorado, em postais ilustrados mais ou menos enquadrados pelas adversidades históricas, exemplificando como se viveu antes e depois da democracia, entre telejornais e telenovelas – v.g. baseadas em scripts do Moita Flores, logo do outro lado do grande rio –, que disputavam o mesmo tempo de antena para conquistar audiências, demonstrando uma vez mais que as descendências ficam de tal forma marcadas pelas vidas dos seus progenitores que ao constatar semelhantes dificuldades lhes reagem de igual maneira, pisando sobre as pegadas que eles deixaram no chão do caminho, cardas sobre cardas para cardar os mesmos destinos.

 

Cruzar-se-ão noutras[17] Happy Hours talvez, residenciais ou bares da moda que sejam, terão dez anos de antes e outros dez de depois de qualquer coisa, seja do que for, e tanto faz que estejam politicamente iniciados como não, sejam reais ou de fantasia, licenciados ou indiferenciados, formadas ou sem formação alguma, o que é certo é que hão de partir para fazer noutras terras o que se negaram a fazer nas deles e delas, vivendo de expedientes, cultivando o raciocínio mágico, fazendo umas coisas para alcançar outras, a fim de voltarem um dia e reconhecerem que já não pertencem ali, tal e qual Matilde e Mário, ou Raquel e Luís, Casimiro, Zeca, Vitorino, etc. Serão figurantes ou atores noutras novelas, com Romeus e Julietas nas costuras, onde os amores nunca acabam bem, sabendo que os palcos iludem as personagens mas não as mudam no fundamental, no essencial, reforçados no sexismo[18] costumeiro, no idadismo usual, e maneiras de estar convencionais.

 

Isto é, a vida foi o que foi e já não a podemos mudar, mas é legítimo termos mais conhecimentos do que na altura as gerações dispuseram, para que possamos tomar consciência dos resultados das nossas escolhas, pelo que esta novela[19] é uma ajuda importante para decidir quem queremos ser, sabendo que – palimpsestando António Aleixo –  Prà verdade ser segura / E haver quem a prefira, / Tem que trazer à mistura / Muita coisa de mentira. Porque entre realidade e ficção apenas as datas e os nomes dos lugares ganham outra configuração. E tudo quanto venha melhorar a nossa capacidade de decisão face à vida é, não só desejável, como enriquecedor e, algumas vezes, até divertido: é novela. Pelo que é igualmente um ponto a favor para a sua leitura. E a torna quase imprescindível se quisermos ser quem somos.  


[1] Pág. 29

[2] Pág. 97

[3] Pág. 222

[4] Pág. 17

[5] Pág. 221

[6] Pág. 25

[7] Pág. 197

[8] Alcunha pela qual era conhecido nos meios artísticos e tipográfico António de Oliveira Salazar – pág. 26

[9] Pág. 87

[10] Pág. 77

[11] Pág. 156

[12] Pág. 159

[13] Estabelecimento Prisional

[14] Como a atividade de falsificação de identidades na clandestinidade de José Dias Coelho e Margarida Tengarrinha, por exemplo, nas págs. 115, 116, 117

[15] P. e. a Matança do porco, págs. 101, 102 e 103

[16] Texto onde se notam os enunciados dos textos que lhe estão subjacentes, por baixo ou camadas semânticas anteriores a eles.

[17] Horas Felizes

[18] “: uma boneca para a Raquel, uma pistola para o Luís”, conforme é explícito na página 162

[19] Romance curto, de acordo com a definição de Harry Shaw, no Dicionário de Termos Literários, à página 320

 

9.14.2024

MESA NA PLANÍCIE (livro)


 

MESA NA PLANÍCIE

António Conde

360 páginas

Chiado books, abril de 2024

 

Por junto, uma mesa de pedra na planície: come-se, ora-se, dura-se um

desfeiteado raio de sol e logo se morre. Sobre a mesa. Sob a mesa.[1]

 

 

            Escrever sobre ficção, sobretudo se formos pessoas que também a faz, acerca dos títulos e obras de outros autores, sobre o seu estilo e técnicas narrativas, nunca é fácil. Mesmo depois de leitura atempada, com acuidade superlativa, livre de qualquer influência externa, ou recensão crítica anteriormente gizada, sem a mínima referência a quaisquer outras obras desse autor, pois o envolvimento pessoal induz-nos a torturar as frases, a espremer as orações, a torcer os parágrafos, de forma a encaixá-los no estilo próprio, apropriando-nos assim do conteúdo delas (frases e orações) e dele (parágrafo), para lhes conceder, não um entendimento racional, mas antes uma espécie muito peculiar de empatia, que sempre facilita a compreensão a propósito de tudo quanto «nasce, cresce, se reproduz e morre», que se carateriza por identificações ou rejeições – vulgar gosto/não gosto – intercaladas e avulsas. O que é normalíssimo e se faz espontaneamente, e nos leva a simpatizar ou não com quanto é lido, sobrepondo as nossas preferências às dos demais, medindo e avaliando quanto se lê pela nossa bitola. E matriz. Comparando em vez de interpretar ou analisar o que se tem em mãos, emitindo normalmente sobre as criações de outros autores as mesmas sentenças de que alguma vez teremos sido alvo, ainda que disfarçadamente adaptadas aqui e ali.

 

            Portanto, após este reparo metodológico, posso dizer que fiquei impressionado pela riqueza vocabular, a flexibilidade discursiva e a variedade lexical com que é distribuída pela narrativa, bem como ela se desenvolveu (tecnicamente) em frases curtas, parágrafos fluentes e breves, claros e limpos, que enunciam o feixe de luz sob o qual Dr. Medeiros vai contracenando com as figuras menos visíveis, as personagens secundárias, espelhando a ação, quadros após quadros, em que o leque de tipos sociais se vão dando a conhecer e o ambiente urbano vai ganhando contornos cada vez mais precisos e vincados, nos seus alicerces históricos (enquanto “pedras de outros tempos[2]), estabelecendo marcos culturais, desvendando particularidades mas também alguns aspetos de postal ilustrado com pendor turístico, para finalmente também ela, a “Évora cidade”, se revelar em pleno e soberana para além das nesgas iniciais.

 

            Estruturado por cadernos com capas de diferentes cores e uma bobine final, permite cruzar estes através da semântica com a semiótica, atribuindo tonalidades aos assuntos que contêm, aos quadros que se desenrolam, às peripécias que descrevem e retratam maioritariamente em registo polifónico: cor de tijolo, creme, lilás, verde-escuro, cinzento, plástico transparente e preto – como se de um vitral gótico se tratasse. E por fim, a cintura de suporte da fala numa bobine, rematando-lhe os pontos e franjas, para não se desmanchar se alguém o quiser transportar para outras coreografias onde Lourenço se possa recordar de si mesmo enquanto Lourenço que teve “um livro animado de aventuras, uma fascinante recordação de infância, perdida ao entrar no seminário[3], Álvaro Mendes.

 

            Álvaro Mendes que criou Medeiros, que criou D. Virgínia – ou D. Glória – , que criou Olga – ou Alice –, que criou Simone, como criou Ludovico, e reinventou Évora, trazendo-a à baila na boca de cena dum palco na planície, enquanto mesa clerical nas aguarelas impressionistas de um existencialismo dramático, logo desvendado por terceiras pessoas (ele e ela; ela e ele), quadro após quadro num enorme painel sobre o qual vão caindo, não a tarde, mas o “halo iluminante[4], o círculo de luz para um zoom expressionista, assim caderno a caderno, num maço de papéis onde Eça e Rodrigues Miguéis se cruzam com Vergílio Ferreira, para lhe dar o toque caligráfico, a polpa de mão para que Shakespeare verta sobre eles o tom inquisitorial da pergunta retórica, a História (regional) empreste os motivos, a geografia lhe forneça a atmosfera de fundo, a fim de que a chuva das palavras fertilize a aridez duma época dada a aparições e manhãs submersas no fumo das consciências mais ou menos moralistas, com as “vistas curtas[5], redutoras, castrativas, duma cultura provinciana com “o peso de uma continuidade de séculos[6]. E Rainer Maria Rilke se fizesse presente enquanto poeta com que “arredar a ganga dos dias[7], para barrar a mágoa sofredora na clareza da subjetividade batida em castelo, muralhas, conventos, igrejas ou templos, palácios, quintas, ruas e arcadas viradas para a grande praça numa incomensurável interrogação shakespeariana[8].    

 

            Mesa na Planície acarreta-nos para Évora se atreitos à “imagética, nas tonalidades pictóricas das palavras[9], “como quem tira bilhete para destino desconhecido, a fotografia como modo de andar pelo mundo e [a] recortar[-lhe] alguns pedaços e instantes perplexos, aguçados ou simples”, estabelecendo razões plausíveis que justifiquem a vocação antiga duma “cidade [que] não perdoa carne desencaminhada[10]”,  em que se acredita ter sido sempre assim, “indistinto, de modorra, indigno de relevo[11]”, mas que, afinal, é, em absoluto, o busílis para todo o enredo: a morte de Ludovico que “obrigou por promessa” Medeiros a publicar o relatório sobre a morte de Bento de Pavia, um “ato de pura fé, enxuto, dos cáceres à estaca[12] sem “fausto, nem demora”, na segunda metade do século XV, por sodomia, mas que deixara terras e casa à Santa Madre Igreja, uma vez que o primeiro possuía um pouco do sangue que o segundo tinha. 

 

            Isto é, Lourenço muda de vida, torna-se Medeiros e regressa à terra, porque quer engolir os fantasmas que o assolam, trazendo consigo a única bagagem que a literatura permite, livros, caixas e caixas de livros. Mas o passado também vem e desperta com algumas pessoas nessa vida nova, exigindo tocar nas personagens antigas, ajustar com elas algumas pontas soltas, depois do batismo que foi a sua primeira molha visitando lugares onde vivera, ou viveram e vivem quem ligado a si de alguma forma teria estado. E o círculo fecha-se, tocando-se o primeiro com o último caderno. Como? Através da fala, da voz, desbobinando tudo…  Porque  You’d better go back. And you’d better swallow all the ghosts that follow you around. And kiss Ludô for me. More than a week is hard for me. Counting on you, All. [13]  

 

 Porque o retorno, mesmo não sendo eterno, é sempre melhor. Melhor do que o quê? Do que nada: gota de anil ao longe, numa aguarela de azuis. E faz com que este livro, recheado de uma inegável riqueza intertextual, enfim, seja uma leitura enriquecedora e desejável, por cruzar testemunhos diversos recuperando quandos igualmente díspares do mesmo espaço, essa Évora sempre presente, ainda que não se esteja a falar exatamente dela em alguns cadernos, e não evita roteiros nem manobras tangentes ao estigma social, incluindo as reminiscências do pré e pós 25 de abril, que permitiu que algumas pessoas/personagens anteriormente afastadas por variados motivos, a ela voltassem para a reverem – e reverem-se nela.  

 

                                                                   Joaquim Maria Castanho



[1] Pág 104

[2] Pág. 22

[3] Pág. 337

[4] Pág. 205

[5] Pág. 335

[6] Idem

[7] Pág. 221

[8] “O propósito de semelhante interrogação, cuja resposta é evidente, é, em regra, o de produzir uma impressão mais funda no ouvinte (ou no leitor) do que aquela que se poderia obter mediante uma afirmação direta”, tal como é afirmado no DICIONÁRIO DE TERMOS LITERÁRIOS, de Harry Shaw, traduzido do inglês e adaptado por Cardigos dos Reis, para a Publicações Dom Quixote, Lisboa, em 1978, à página 259. (Itálico e negritos meu.)

[9] Pág. 324

[10] Pág. 337

[11] Pág. 190

[12] Pág. 89

[13] Pág. 249 – É melhor voltares. E é melhor engolires os fantasmas que te assolam. Dá um beijo
 por mim ao Ludô. Uma semana é difícil demais para mim. Conto com vocês, todos. (Tradução própria.)

 

 

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