TER
OU NÃO TER JUÍZO
Se vires chegar a gaivota
com o bico aloirado de sol, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires o pôr-do-sol
raiado de violetas e uma brisa que vem do sul, não estranhes; eles
me anunciam.
Se vires uma criança
descalça e desnuda correndo pela relva do Jardim do Palácio, não
estranhes; ela me anuncia.
Se vires algum velho
sem-abrigo lambiscando a beata nos dedos amarelados, não estranhes;
ele me anuncia.
Se vires o louco profeta
de barbas despenteadas e sujas discursando contra o consumismo
exagerado, a energia nuclear, os Trumps e Bolsonaros na nossa COVID
19, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o cão
esquelético e faminto como pool de todos os abandonados do mundo,
não estranhes; ele me anuncia.
Se vires um papiro
esvoaçando sobre a multidão mecanizada, não estranhes; ele me
anuncia.
Se vires cair da janela
anónima uma fotografia rasgada, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires os teus olhos
brilharem numa noite de luar, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires um sorriso
urgente num rosto desconhecido, não estranhes; é a minha forma de
estar contigo.
E depois de eu ter chegado
Muito depois do ainda não
E muito antes do já de
volta
Finge que me desconheces
Faz gestos de negativa
revolta
Faz negaças de
comiseração
Faz traquinices e benesses
E dá o sonho por acabado.
Mas depois de eu implorar
De pedir um pouco de
atenção
Inventa nomes que me
trocam
Inventa partidas que te
preguei
Inventa razões de negação
Inventa ditos que te
adulam
Inventa actos que não
pensei
E belisca-me para acordar.
E então, depois, se
acordando
Ajoelhar a teus pés,
indeciso
Apenas pra te pedir um
sorriso
Diz-me, seca, fria,
rezingando
«Ora, que é isso? Por
favor... Tem juízo!»
E
se então vires voltar ao nada uma fotografia, um papiro, um louco,
um velho, uma criança, um pôr-do-sol, uma gaivota, um sem-abrigo,
um cão, um sorriso, não entristeças, nem estranhes; é tudo o que
fui, que está de partida. É a nova era que principia!
Joaquim
Maria Castanho
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