4.28.2011

A Avaaz está a todo vapor. A escala das nossas atividades, o nosso crescimento e as nossas vitórias são intensas! Olhe até o fim para ver os destaques dos últimos meses -- é incrível o que nós estamos construindo e alcançando juntos.

Já somos mais de 8,2 milhões e estamos adicionando 100.000 pessoas ao nosso movimento por semana! Duas semanas atrás, 650.000 indianos participaram da nossa campanha por uma lei anti-corrupção liderada pela sociedade civil, e nós vencemos!! Nós estamos conquistando vitórias importantes todos os meses -- combatendo a corrupção na Itália, corrupção midiática no Reino Unido e Canadá, a destruição ambiental no Brasil e muito mais. E também, por todo o Oriente Médio ativistas corajosos enfrentando forças de seguranças tenebrosas estão recebendo valiosos equipamentos e apoio com comunicação financiados pelas doações de mais de 3.000 de nós.

Desde as revoluções populares no Oriente Médio até movimentos nacionais anti-corrupção podemos sentir e ver em vários acontecimentos recentes: a democracia está avançando e juntos nós estamos rufando os tambores. A imprensa está atenta, escrevendo centenas de matérias, incluindo um destaque de 2.000 palavras no Times of London nos chamando de "o novo super poder da opinião pública global". Veja um breve relato dos últimos meses da nossa incrível comunidade de cidadãos mobilizados...

DESTAQUES RECENTES DE CAMPANHA

Campanha anti-corrupção explode na Índia

Duas semanas atrás, Anna Hazare um ativista Gandiano de 73 anos, declarou uma greve de fome até a morte, com a condição do governo deixar a sociedade civil elaborar uma nova e poderosa lei anti-corrupção. Em apenas 36 horas, um número sem precedentes de 500.000 indianos assinaram a campanha da Avaaz em apoio ao chamado do Hazare por uma reforma dramática. Em 4 dias, o clamor público forçou o governo da Índia a assinar uma resposta escrita a todas as demandas do Hazare! Nós vencemos! Hoje, uma nova Índia está nascendo e somente um anos atrás o Brasil também aprovou a legislação inédita da Ficha Limpa.

Furando o apagão das comunicações no Oriente Médio

Financiado por quase 30.000 membros da Avaaz, uma equipe está trabalhando diretamente com lideranças dos movimentos pró-democracia na Síria, Iêmen, Líbia e em outros países para distribuir telefones de alto tecnologia e modens de Internet via satélite, conectando-os com com as maiores redes de notícias do mundo e ajudando com a comunicação. Nós vimos o poder deste trabalho -- ciclos midiáticos globais são gerados por imagens e entrevistas de ativistas locais criadas e distribuídas com a ajuda da nossa equipe. A coragem dos ativistas que estamos apoiando é incrível -- uma mensagem de skype de um deles diz "... as forças de segurança estão vasculhando a minha casa, a bateria do meu notebook está acabando, se eu não estiver online amanhã estou morto ou preso". Ele está bem e as vozes destes corajosos ativisitas estão circulando o globo.











Grande vitória com os Hotéis Hilton vs o Comércio do Estupro

21 horas depois de 317.000 pessoas unirem-se ao chamado para o Presidente da Hilton assinar o Código de Conduta contra a exploração sexual, ameaçando publicar anúncios nos jornais da sua cidade, nós recebemos uma ligação do seu vice-presidente. "Vocês vão fazer o que?!" ela perguntou. O Hilton estava enrolando a meses. Nós demos 4 dias para eles assinarem, e eles aceitaram. Agora, os 180.000 funcionários da Hilton serão treinados para identificar e prevenir o horror da escravidão sexual de mulheres e meninas.

Reino Unido: o Povo vs. o Monopólio Midiático do Murdoch

A tentativa do barão midiático Rupert Murdoch de controlar a imprensa no Reino Unido gerou uma reação incansável dos membros da Avaaz, que lançaram anúncios, ações de rua, entregaram petições e participaram de campanhas de telefonemas, em um esforço para garantir um debate público aberto. A Avaaz encomendou uma pesquisa independente que mostrou que apenas 5% dos britânicos concordam com o Murdoch -- e novas acusações criminais por colocar escutas ilegais em telefones de políticos estão ajudando a derrubar a força da máquina midiática do Murdoch. O governo foi forçado a demandar concessões do Murdoch, e agora a decisão foi adiada -- custando ao Murdoch bilhões e ganhando tempo para pará-lo de vez.




Prevenindo um massacre na Líbia -- 1 milhão de mensagens para o Conselho de Segurança

As nossas mensagens pediam sanções, congelamento de contas e uma zona de exclusão aérea para proteger os civis na Líbia. As nossas vozes foram ouvidas: o embaixador da ONU dos EUA, um dos últimos a apoiar a proposta, publicamente nos agradeceu pelas mensagens. A ação internacional começou justamente quando os tanques do Kadafi cercaram a pequena cidade rebelde de Benghazi -- e foi amplamente creditada como a responsável por prevenir um massacre de civis em larga escala.

Projeto de Lei de Censura do Berlusconi foi Derrubado

O Primeiro Ministro da Itália, Silvio Berluscni, lidando com controvérsia política e acusações de estupro estatutário perto das eleições, tentou aprovar uma lei de censura no Parlamento que iria silenciar os seus críticos em programas de televisão independentes. Porém os membros italianos da Avaaz reagiram -- gerando uma petição de 70.000 nomes e milhares de telefonemas para o Parlamento em um momento crucial que ajudou a virar a votação A lei foi bloqueada, em uma vitória dos membros da Avaaz e pelo futuro a democracia e liberdade de expressão na Itália.





O "Anjo" anti-corrupção na Espanha

Esta semana um jornal espanhol chamou a Avaaz de "O Anjo do Dia" por lutar contra a corrupção na Espanha -- apenas um destaque entre uma onda de cobertura midiática sobre a petição de 100.000 espanhóis e um ação de teatro de rua que pedia a exclusão de políticos com acusações de corrupções das próximas eleições. Com a mobilização aumentando, um debate nacional sobre a corrupção está esquentando e os partidos políticos estão sentindo a pressão.





Brasil: Barrando a Hidrelétrica de Belo Monte na Amazônia

A proposta usina de Belo Monte, uma catástrofe ambiental, está sendo atrasada em parte devido à forte pressão da sociedade -- incluindo uma entrega espetacular da petição por lideranças indígenas com mais de 600.000 nomes de brasileiros e pessoas ao redor do mundo. A Organização dos Estados Americanos se juntaram aos críticos da barragem, dizendo que ela viola direitos humanos -- gerando mais pressão pelo cancelamento do projeto e o investimento em energias verdadeiramente sustentáveis no seu lugar.





Wikileaks: uma Vitória Contra a Tortura

Duas semanas atrás, mais de 500.000 apoiadores da Avaaz de todo o mundo apelaram ao Presidente Obama para ele interromper o isolamento brutal e tratamento desumano do Bradley Manning, supostamente responsável por vazar os documentos militares para o Wikileaks. Alguns dias depois, o governo dos EUA cederam a pressão crescente anunciando que Manning seria transferido para um prisão de segurança média e receberia tratamento adequado de saúde mental. Representantes da imprensa foram convidados a testemunharem o fim da tortura. A pressão pública funcionou!


Um milhão para Salvar as Abelhas

Mais de um milhão de pessoas, incluindo 200.000 na França assinaram uma petição explosiva para banir agrotóxicos que exterminam as abelhas em massa ao redor do mundo -- e junto com um grupo de apicultores franceses, nós entregamos a petição para o Ministro da Agricultura da França em uma grande conferência. A campanha continua com demandas por ações concretas na França União Européia e ao redor do globo.




Vitória sobre noticiários "Falsos e Enganosos" no Canadá

Oficiais conservadores do Canadá estavam tentando lançar uma mídia do estilo Murdoch nas redes de televisão -- mas em fevereiro eles tentaram diminuir padrões jornalísticos para noticiários falsos e enganosos, gerando uma avalanche de oposição. 100.000 membros canadenses da Avaaz assinaram a oposição e a proposta absurda para enfraquecer o jornalismo sério foi retirada.






Solidariedade Global pelo Egito

Nos momentos mais sombrios da luta pela expulsão do Mubarak, os egípcios disseram ao mundo que precisavam de solidariedade -- e os membros da Avaaz responderam. 600.000 de nós assinamos a mensagem de apoio levado direto para a Praça Tahrir pela rede Al Jazeera -- ajudando a apoiar um movimento abastecido de esperança nos seus momentos mais difíceis e incertos.








Os Bilhões do Mubarak, congelados

Quando o Mubarak deixou o poder no Egito, ele tentou levar a sua fortuna roubada com ele -- porém em dias, mais de meio milhão de nós pedimos para o Ministros das Finanças do G20 congelarem imediatamente os seus bilhões. Entregamos a mensagem com uma "pirâmide de protesto" próxima da Torre Eiffel durante a reunião dos ministros. Nas semanas seguintes a União Européia e países ao redor do mundo concordaram em congelar as contas do Mubarak e seus principais assessores.






Entregando 1 Milhão de Vozes pela Segurança dos Alimentos

Logo após uma nova ferramenta de democracia direta na Europa ser lançada, mais de um milhão de pessoas de todos os países da União Européia participaram da primeira Iniciativa de Cidadãos Europeus da história -- um processo onde as pessoas podem apresentar petições oficiais que exigem uma resposta. Os membros da Avaaz pediram o congelamento imediato da entrada de plantações de OMGs - transgênicos - na União Européia até que estudos objetivos, livres da influência da indústria, consigam provar que eles são seguros. A iniciativa teve uma entrega espetacular para a Comissão da União Européia que inundou a mídia com notícias, levando uma mensagem clara para os governantes.





Sob pressão, a África do Sul começa a confrontar o "estupro corretivo"

Quando um grupo local na África do Sul lançou uma petição demandando que o seu governo lidasse com o "estupro corretivo" -- a epidemia doente de estupro de lésbicas para "torná-las heterossexuais" -- elas foram a princípio, ignoradas. Porém quando a sua petição alcançou 170.000 assinaturas, o governo respondeu. E agora, com quase 1 milhão de nós e uma atenção midiática enorme, a pressão por ações significativas está se tornando inevitável.


… E Tudo isso é 100% Financiado pelos Membros da Avaaz do Mundo Todo!

Todas estas campanhas são demonstrações da promessa da força da sociedade civil -- do que é possível quando nós nos unimos pelo que é certo. E todas elas foram completamente financiadas por pequenas doações de membros da Avaaz, incluindo 250.000 pessoas que doaram para campanhas específicas e 10.00 de nós que somos "mantenedores" e doamos alguns reais, euros ou dólares por semana ou por mês para cobrir os custos básicos da Avaaz -- clique aqui para ajudar também. Por causa destas pequenas doações, a Avaaz não tem que responder a financiadores corporativos, grandes doadores individuais ou se limitar com restrições governamentais. Ao contrário, a Avaaz só reporta aos seus membros e pelos sonhos de um mundo melhor para todos.

Com esperança e um agradecimento enorme pelo apoio de cada pessoa desta comunidade incrível,

Ricken, Ben, Saloni, Alice, Graziela, David, Shibayan, Morgan, Tihomir, Emma, Giulia, Rewan, Kien, Luis, Alex, Mia, Stephanie, Milena, Heather, Veronique, Iain, Pascal, Benjamin, Yura, Laura, Saravanan, Alma, Dominick, Brianna, Sam, Mohammad, Tricia, Janet, Laryn, Aleksandr, Maksim, Denis e todos os voluntários, tradutores e todas as pessoas da equipe da Avaaz.

Veja alguns destaques na mídia:

Artigo no Times of London (em inglês):
http://www.scribd.com/doc/48808533/?press

Mobilização 2.0: a voz da Avaaz, Página 22 FGV
http://pagina22.com.br/index.php/2011/04/mobilizacao-avaaz/

Militância online, Revista Criativa:
http://revistacriativa.globo.com/Revista/Criativa/0,,EMI167448-17375,00-MILITANCIA+ONLINE.html

A vez dos militantes 2.0, Correio Brasiliense:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/tecnologia/2010/06/02/interna_tecnologia,195711/index.shtml

Cerca de 72 mil aderem à petição que critica Bolsonaro, Estadão:
http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,cerca-de-72-mil-aderem-a-peticao-que-critica-bolsonaro,702182,0.htm

Cobertura da camapanha anti-corrupção na Índia, The Hindu (em inglês)
http://avaaz.org/the_hindu_hazare_launch
Artigo "Anjo do Dia", La Republica (em espanhol):,
http://avaaz.org/republica_angel_of_the_day

Iniciativa de Cidadãos Europeus, Le Monde (em francês)
http://www.avaaz.org/le_monde_eci

Veja outras matérias na imprensa aqui:
http://www.avaaz.org/po/media.php






Lisboa - Celebração em PORTUGAL


No próximo 9 de Maio, no Rossio, haverá animações de rua, concertos, debates e stands de informação para celebrar o dia da Europa e a iniciativa europeia Juventude em movimento, cuja embaixadora é a fadista Carminho, que estará presente na abertura

A Representação da Comissão Europeia em Portugal, em parceria com o Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu, a Presidência do Conselho da União Europeia (Hungria) e o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Portuguesa organizam anualmente um conjunto de actividades para celebrar o Dia da Europa, 9 de Maio.

Na histórica data de 9 de Maio de 1950, Robert Schuman apresentou uma proposta de aprofundamento das relações entre países europeus, criando-se uma comunidade organizada de nações numa Europa que tinha as memórias da guerra ainda frescas. Esta proposta, conhecida como "Declaração Schuman", foi um instrumento fundamental na solidificação da paz na Europa e justamente é considerada o começo da criação do que é hoje a União Europeia.

O dia 9 de Maio tornou-se um símbolo dos ideais mais nobres da Europa e do projecto europeu e a sua celebração constitui uma oportunidade para desenvolver actividades e festejos que aproximam a Europa dos cidadãos e os povos da União entre si.

Este ano, uma parte importante desta celebração será centrada em temas caros aos jovens, e em especial na campanha "Juventude em Movimento – Aposta em Ti", promovida pela Comissão Europeia como meio de os jovens realizarem sonhos, partilharem experiências, viajarem, alargarem conhecimentos, partilharem e desenvolverem talentos, reforçarem competências e alcançarem objectivos. Numa frase: Fazerem a diferença.

Esta iniciativa visa informar os cidadãos sobre os seus direitos laborais, a inclusão, a igualdade de oportunidades e a mobilidade profissional.

Detalhes sobre o evento:

De 7 a 9 de Maio estará instalada, na Praça do Rossio, em Lisboa, uma tenda aberta a todos com 16 stands onde os organismos nacionais e os projectos europeus no âmbito das políticas de emprego, políticas sociais e da igualdade de oportunidades apresentarão as suas actividades e as ofertas relevantes para os cidadãos portugueses.

Em paralelo, serão apresentados projectos escolares, dança, música, animações circenses, cinema. Serão também organizados debates sobre os temas do emprego, das políticas sociais, da igualdade de oportunidades e da luta contra as discriminações.

Outras actividades comemorativas do Dia da Europa terão lugar em todo oo País, organizadas designadamente pela Rede de Centros Europe Direct, em parceria com actores locais.

Concerto nos Jerónimos

As celebrações do dia da Europa terminarão no Mosteiro dos Jerónimos com um concerto de Pedro Caldeira (mediante convite).

4.24.2011


«Morri pela Beleza – mas mal eu
Na tumba me acomodara,
Um que pela Verdade então morrera
A meu lado se deitava.

De manso me perguntou por quem tombara…
– Pela Beleza – disse eu.
– A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa.
Somos Irmãos – respondeu.

E quais na Noite os que se encontram falam –
De Quatro a Quatro a gente conversou –
Até que o Musgo veio aos nossos lábios –
E os nossos nomes – tapou.»

Poema de Emily Dickinson, e Tradução de Jorge de Sena

4.17.2011

MANIFESTO EM PROL DA SEMENTE E DA SOBERANIA ALIMENTAR


Não se sabe bem ao certo, mas terá sido há dez ou onze mil anos que a humanidade lançou à terra as primeiras sementes com o intuito de colher algo para seu sustento. Dessa colheita terão resultado, por certo, não apenas alimentos imediatos, mas também novas sementes, que tornariam a ser semeadas no ano seguinte. Ficou assim traçada a orientação que viria a assegurar, até há algumas dezenas de anos atrás, a capacidade de todos nós, homens e mulheres, conseguirmos ultrapassar as contingências da natureza, deixando de estar sujeitos à sua aleatória generosidade no tocante à oferta de alimentos colectáveis, passando a cultivá-los para assegurar a soberania alimentar.
Passados alguns milhares de anos de evolução desta orientação de vida, foram sendo domesticadas pelo homem milhares de variedades de plantas e animais, ampliando muito as espécies disponíveis. Esta diversidade de espécimes de cultivares e de animais, fomentada pelo homem, muitas vezes como resultado do seu engenho, permitiu-lhe transpor as mais diversas barreiras, físicas e temporais, para conquistar os mais recônditos lugares do planeta. Hoje sabemos, pelos muitos factos históricos conhecidos, que em cada novo contacto do homem com diferentes plantas e animais ocorre não apenas um enriquecimento do indivíduo enquanto ser cultural, mas também uma melhoria no seu ser físico, graças ao acesso a acrescidas fontes de alimentos.
Estas longas conquistas da humanidade estão agora prestes a ser eliminadas ou, pelo menos, restringidas, pois outros interesses se levantam. A pretexto de questões como a necessidade de rastrear o percurso dos alimentos e a segurança alimentar, a Comunidade Europeia prepara-se para estabelecer uma directiva legal no sentido de impedir que as pessoas que sempre semearam e recolheram, assegurando a sua soberania alimentar, possam continuar a agir dessa maneira. Esta lei põe em causa um direito ancestral conquistado para todos nós, o de utilizarmos e guardarmos as sementes resultantes do trabalho e engenho dos nossos antepassados, direito esse que devemos continuar a legar às gerações futuras. Esta lei pretende atribuir estatuto museológico às variedades tradicionais que nos foram legadas por incontáveis gerações, enraizando-as no seu suposto lugar de origem e impondo que a sua comercialização e cultura, bem como o aproveitamento das suas sementes, se faça apenas nesse local e somente por alguns. Esta lei europeia, a ser aprovada, limita as áreas de cultivo e o número de pessoas que podem aceder às variedades tradicionais, as quais só terão direito a existir depois de submetidas a certificação. Não se entende como uma Europa que defende os valores da democracia, do livre acesso a bens e da sua livre circulação, pretende assim limitar o acesso de todos nós a este legado das sementes ancestrais.
No caso em apreço, podemos estar mais uma vez perante uma mentira. Quais são os verdadeiros interesses que estão por trás destas leis restritivas da Comunidade Europeia? Na verdade, por trás de palavras como «certificação», cujo sinónimo deveria ser autenticidade ou segurança, esconde-se muitas vezes a restrição no acesso a um direito, que fica, a partir daí, apenas ao alcance de quem pode pagar ou tem mais meios. A certificação significa, para uma Europa ávida de dinheiro e com uma economia em ruínas, a entrada de mais dividendos nos seus cofres.
Com efeito, se a semente não fosse «a origem», não seria tão aliciante querer controlar os seus destinos. A pressão que nos últimos anos vem sendo exercida por algumas multinacionais do sector da agro-indústria, as quais, não satisfeitas com o domínio que já exercem através das patentes das suas «criações», procuram também apropriar-se das plantas que são património comum da humanidade estabelecendo patentes sobre as variedades ancestrais, revela a urgência imperativa de controlarem a distribuição dos alimentos desde a origem até à nossa mesa.
Na verdade, não se percebe como é possível permitir que alguém, pessoa ou empresa, registe em seu nome algo que não criou e se torne seu «legítimo» proprietário. Não se percebem estas leis europeias com dois pesos e duas medidas, a não ser, repetimos, porque o registo de patentes constitui mais uma fonte de receitas para os cofres das instituições que as pretendem impor. Mas é evidente que corremos sérios riscos quando as sementes das variedades tradicionais, que são património da humanidade e como tal devem estar livremente acessíveis a todos, passam a ser objecto de controlo estatal para ficarem nas mãos de entidades exclusivas.
Poderemos estar prestes a assistir à consumação do maior atentado cometido na história das civilizações humanas, em que alguns homens, com as suas leis, põem em causa a sobrevivência da maioria. Porque é disso que se trata quando se pretende reduzir drasticamente o número de variedades e obrigá-las a permanecer imóveis nos seus supostos locais de origem, parando assim a sua e a nossa evolução.
Perante a possibilidade de ser aprovada a nova Lei das Sementes na Europa, declaramos ser nossa intenção continuar a fazer o que sempre fizemos: lançar as sementes à terra, recolhê-las no fim da estação, guardar algumas para o ano seguinte e partilhar outras com amigos, vizinhos e interessados. Achamos que esta será a melhor forma de resistir, pois foi a postura que os nossos antepassados mantiveram ao longo de milénios e que, apesar das muitas hecatombes a que a humanidade se viu sujeita ao longo da sua existência, não impediu que chegasse até nós um sem número de espécies e variedades. É certo que muitas se perderam ao longo desse percurso, mas isso aconteceu mais por desinteresse ou por abandono da actividade agrícola do que por qualquer lei impeditiva. Esta será sempre a nossa principal linha de acção. Se não assumirmos esta postura, será difícil reclamarmos o direito a usar e guardar as sementes, pois só isso permite que elas continuem a existir.
Instigamos todas as pessoas favoráveis à permanência das variedades tradicionais que nos sigam no exemplo e resistam, mesmo que a referida lei venha a ser aprovada. Por ser também da máxima importância usá-las no nosso dia-a-dia, instigamos todos os interessados a conhecer melhor este espólio, solicitando-o nos pontos de venda, estimulando a sua oferta e consumo.
A Colher para Semear vai levar a cabo uma iniciativa de âmbito nacional, no dia 17 de Abril, em Lisboa, no Parque Eduardo VII, pedindo a todos os interessados que se desloquem à capital para trocar as suas sementes e manifestar o seu apreço pelo direito à existência das variedades tradicionais como um legado da humanidade.


4.16.2011

Trastes e mamarrachos

É quase assumido pela generalidade – antigamente até se contava a anedota do aeronauta que sabia ter chegado a Portugal por, ao meter o braço de fora, lhe terem dado a palmada ao relógio – que este País é ingovernável, não pelas circunstâncias adversas da conjuntura, das crises e desses desaguisados altamente globalizadores, mas sim porque os nossos quadros (gestores, administradores – nomeados e vitalícios, classe política e adjacentes ao funcionalismo central ou autárquico) quando têm verba a desperdiçam e aplicam de forma insustentável, e quando se lhes acaba, culpam sempre os outros, desde sistema financeiro às diretivas europeias, pela situação em que “derraparam” por afogadilho e aflições.
Coisa nenhuma os afeta se puderem pedir mais uns dinheiritos aqui ou ali, sem contrapartidas, a que normalmente chamam ingerências na política e soberania. Mas que dizer aos mamarrachos em que gastaram fortunas e atualmente, além de não servirem para nada, apenas poluem os espaços públicos? Quem gastou “dinheiro nacional” na compra de trastes do género daquele que se apresenta na ilustração, não só devia ser obrigado a devolver o dinheiro aos munícipes como a remover o lixo (sucata) que restou. Os políticos e os autarcas têm de ser responsabilizados pelos seus atos incoerentes, uma vez que foram pagos para agir em benefício de quem os elegeu e apenas se serviram do seu estatuto para singrar na vida melhor que os seus semelhantes. E não digam que não sabiam fazer melhor, pois se de fato assim era, então não se candidatavam.
Sempre era um exemplo que ficaria para futuro!
MENTIRA!!!


Da mesma forma que não se devem trazer para casa as futriquices que se ouvem na rua, ou é igualmente condenável trazer para a rua quanto em casa se passa, também é contraproducente transportar para “a casa da democracia” os bichaneios abichados entre portas e travessas quando os votos nos afloram. Essa teoria antidemocrática das florinhas de estufa do-quero-posso-e-mando e quem-pensar-o-contrário-é-terrorista-e-traidor-à-pátria que pretendem ser fundamental para a estabilidade política e desenvolvimento humano e económico do nosso país que o futuro governo nasça de uma maioria eleitoral, não só é uma incomensurável peta recheada de má vontade e medíocre dogmatismo, como também a manifesta expressão dos sentimentos tirânicos, despóticos e ditatoriais que motivam e alimentam alguns líderes partidários da nossa república. Quem é democrata não precisa de vitórias esmagadoras seja no que for, pois sabe conviver com os que pensam de forma diferente, sabe dialogar e negociar com os demais, não faz do argumento alheio um atentado pessoal, nem ejacula desejos convicto de que são realidades incontornáveis. PORQUE EM DEMOCRACIA AS MAIORIAS GOVERNAMENTAIS NASCEM E MANTÊM-SE NOS PARLAMENTOS que foi para tanto que o povo elegeu os seus representantes nele. Se o não conseguem, é porque falharam e enganaram os eleitores e quem neles acreditou como deputados não como narcisos deslumbrados por tanta gente gostar das suas figuras e ficar bem no cartaz. Hitler e Salazar, também foram “democraticamente eleitos com expressiva maioria” e todos sabemos no que deu essa expressão…
Portanto, se aqueles que presentemente se alardeiam como salvadores de uma crise que eles próprios provocaram, pedindo essas maiorias, forem eleitos com elas, não me venham dizer depois que desconheciam no que iria dar quando lhes vier a acontecer pior do que lhes está acontecer agora, porque isso é uma dupla mentira, na declarada intenção de branquear a outra com que justificaram os seus votos, e quem tem o que merece perdeu todo o direito a lamúrias e queixumes de vítimas das circunstâncias, uma vez que por essas, são os únicos responsáveis.
Logo, sob o desígnio do interesse nacional há muita patranha encoberta, e quem copia as estratégias que convergiram para a eclosão do célebre “28 de Maio do século passado”, é porque está deserto de conseguir o mesmo em que aquele descambou. Porque de 1926 a 1928 foi uma questão de pa$ta, e depois veio o 33 do plebiscito que nos deu o Estado Novo, qual fénix (legião portuguesa – 1936) renascida das cinzas e da pobreza, a extinção da oposição democrática por uma democraticamente eleita, que culminou com a acidente de Humberto Delgado, e durou até 27 de Julho de 1970, cujos herdeiros se têm mantido no poder, com intervalos aqui e ali, mas de pouca monta, nos últimos 37 anos, todavia já a esfregar as mãos para o repasto de 5 de Junho de 2011.


4.09.2011

A rebelião das diferenças



Scherezade aprende a sobreviver. As regras da vida não estão escritas. Cabe-lhe inventá-las a cada aurora (2)”


“A memória dos Homens é curta”, dizia a minha professora de História do 7º ano. Desde então, inúmeras têm sido as ocasiões em que essa frase me vem à cabeça. Os recentes acontecimentos no mundo árabe e o comportamento do Ocidente em geral e da Europa em particular são uma dessas ocasiões.


Se nas sociedades árabes o que está a acontecer é muito mais do que simples revoluções (políticas, económicas ou sociais), a Europa e os EUA, por sua vez, já não conseguem esconder a hipocrisia que tem minado as suas políticas externas e as suas atitudes que perfazem novas formas de racismo e colonialismo. Por outro lado, persistimos no erro de nunca considerar a História a partir da “periferia” ou daquilo que julgamos ainda ser “periferias”, o que deturpa sempre essa velha senhora europeia a que chamamos História. A este nível, espero que quando a poeira assentar consigamos aprender com o que “as periferias” nos estão a mostrar (e que Prigogine já tinha descrito em As Leis do Caos): já não basta descrever as mudanças dos regimes políticos e sociais no seio da nossa concepção de História; é preciso ultrapassar este ocidentalcentrismo e dialogar com as Histórias extra-europeias para que possamos viver num contexto que não se confunda com o património ocidental. Tal como nos mostraram escritores como o jugoslavo Ivo Andric, apesar de haver sempre mais bárbaros do que construtores, no fim de cada caminho de opressão, há sempre uma luz e uma oportunidade para se criarem pontes. Andric também esteve sempre ao lado dos derrotados e insultados, ainda que compreendesse os poderosos. Esta é mais uma altura da História em que devemos fazer o mesmo, pois é um facto que o mundo não vai mudar para melhor por decreto, mas pode mudar se nos remetermos para os princípios da alteridade e da empatia que devem necessariamente nortear a vida em sociedade daqui para a frente.


As máscaras do racismo


Vejamos, então, algumas das novas formas de hipocrisia histórica e de racismo que estamos a viver, com uma breve panorâmica por alguns dos pontos geopolíticos mais quentes no momento actual.



1. Muitos dos revoltosos líbios foram abatidos com armas vendidas, no ano passado, no salão de armamento líbio no qual participaram 50 fabricantes britânicos. Isto quando o Governo britânico defende uma política de “intervencionismo liberal” para acabar com regimes não democráticos. Bom, eu não sou britânica, nem líbia, mas com certeza que não quero esta democracia de que Cameron e os seus confrades falam. Das duas uma, ou armam os opressores dos árabes ou, se falamos em intervencionismo, não vendemos armas a ditadores. Não me parece algo assim tão difícil de fazer, se se quiser, claro.



2. Em viagens recentes à Suíça, consternaram-me cartazes ofensivos em ruas tão supostamente ordenadas, que insultavam os imigrantes e exortavam à sua expulsão do país. Parece que a moda está a pegar e, recentemente, a ministra do interior da Áustria, endureceu [contra] os direitos dos estrangeiros, numa tentativa inútil de travar o afluxo de refugiados do Norte de África. E a verdadeira questão é esta: o medo, que mais não é do que uma manifestação da ignorância. Não vale a pena fingir que o medo dos Europeus perante um afluxo maciço de estrangeiros não é maior do que a sua compaixão pelas vítimas de uma ditadura. Mais uma vez, recorramos à memória. Porque é que o medo ganha perante a compaixão? Entre outras razões, porque os europeus têm tido políticas externas insensatas quanto às suas relações com ditadores (a Itália e Malta assumiram compromissos vergonhosos com Kadhafi) e ainda porque muitos países da União Europeia têm políticas internas de faz-de-conta que oscilam entre uma imigração necessária e mal-gerida e o alarmismo instrumentalizado em relação ao que sai do seu quadrado. Mas, claro, já não há problema se clandestinos africanos forem contratados para colheitas sazonais sob condições desumanas e garantirem negócios para muitos desses países que ora exploram os estrangeiros que não querem receber nem ajudar ora os querem libertar em nome de uma qualquer democracia.



3. Mas se o Ocidente pouco se importa com os banhos de sangue em África (sim, porque nem se fala nos países cujas populações ainda nem sequer se conseguiram rebelar e protestar ou aqueles, como Marrocos, em que se vive numa ditadura com os tiques democráticos ocidentais), já se preocupa com a perda de influência que está a ter no mundo árabe. O académico Anthony Cordesman sintetizou bem a coisa: “A França centra a sua atenção na Tunísia sem conseguir perceber como perdeu uma zona de influência. A Grã-Bretanha, por sua vez, volta a mostrar interesse no Egipto e no Canal de Suez”. Entretanto, os EUA continuam a procurar o Wally, i.e., islâmicos radicais entre as revoluções, os russos só querem vender armas e os chineses só atendem aos seus interesses petrolíferos. As atenções viram-se agora para a Turquia que surge em posição privilegiada para negociar com os novos quadros políticos que surgem na região. É claro que a UE se vira agora para a Turquia, a mesma que não queria integrar no seu clubinho.



Insegurança civilizacional



Estes são apenas alguns factos que rodeiam algo bem mais relevante: a hipocrisia ocidental não aprende com a História, nem com os resultados das suas próprias acções. Há muito que quer os EUA quer a Europa têm usado retratos simplistas, degradantes e, por vezes, racistas dos árabes e outros povos nos órgãos de comunicação.



Por outro lado, o espaço europeu tem estado crescentemente confrontado com um processo de heterogeneização espartilhado em duas lógicas: a lógica moderna da homogenização de pensar a Europa como um grande Estado-nação e outra, baseada num conceito de unidade bricolada na diversidade, ou seja, é como um bazar em que se negoceiam diferenças. Acontece que a cultura ocidental viveu secularmente – salvo alguns momentos críticos – numa espécie de auto-contemplação da sua própria superioridade ética e política, a qual era justificada das mais diversas formas, desde a narrativa religiosa até à narrativa filosófica. A tendência foi sempre a de encarar a nossa forma de pensar e de conhecer como sendo a mais universal e mais verdadeira, sendo as outras organizações sociais e políticas julgadas a partir dessa posição.



No entanto, vivemos agora uma altura em que a auto-segurança do Ocidente volta a ser posta em causa num movimento em que nos olhamos no espelho da nossa própria face civilizacional; os modelos de relação com as diferenças (internas e externas) que a sociedade e cultura europeias desenvolveram são, por si só, um indício da actual insegurança civilizacional. A Líbia – que não tinha nada parecido com uma sociedade civil tal como a pensamos – dá-nos agora uma lição de História. Louvável é a força colectiva de que os líbios têm dado mostras; a diplomacia, esforços revolucionários estruturados, órgãos de informação limitam-se a seguir as reivindicações e as acções do povo e isto é fascinante e inédito, pois significa que o que está a mudar é também o que significa ser árabe a nível individual e colectivo.



Se há muito que os estereótipos ocidentais têm desqualificado os árabes e celebrado invasões israelitas, britânicas e americanas em nome da “democracia”, hoje são os árabes que nos mostram a oportunidade que é a união de esforços por algo muito mais importante do que a democracia hipócrita dos que carregaram a cruz da civilização e supostamente eram detentores de uma superioridade moral que lhe dava acesso ilimitado às terras, recursos, história e dignidade dos árabes. De Napoleão a George W. Bush os árabes sempre foram definidos de acordo com os objectivos coloniais e conquistadores.



O importante a reter de tudo isto é que, como notou Robert Fisk, este segundo despertar árabe da História moderna requer algumas novas definições e novas palavras. Esta rebelião das diferenças revolta-se também contra o lugar passivo que a modernidade ocidental lhes atribuiu em termos culturais, políticos e epistemológicos. Agora, essas diferenças assumem os seus próprios discursos (da diferença e não sobre a diferença) e resistem a qualquer forma de domesticação cultural. Resta agora à cultura ocidental assumir-se também como outra diferença e não como padrão com base no qual as outras diferenças devem ser definidas ou julgadas. Ora, a evolução é isto mesmo: a transição do ser da condição de escravo à condição de senhor do seu próprio destino.


Como tão bem lembrou o educador Paulo Freire, qualquer acção modificadora não é possível se não nos distanciarmos de uma visão acomodada do mundo e se formos incapazes de nos distanciarmos desse conformismo para admirar e perceber melhor o conjunto deste mundo. As diferenças, de facto, na sua incomensurabilidade de género, raça, etnia, estilos de vida, etc., não assumem como agenda nem um princípio universal comum, nem uma agenda política comum. Porque a democracia já não é um “estádio”, mas um fim em si mesmo (ou sem fim) e a “cidadania atribuída” deu lugar “a uma “cidadania reclamada”. A realização política inerente a estas mudanças tem uma geometria variável, negociável, em rede que mostra que não somos todos diferentes e todos iguais, mas sim que não há privilégios nem para diferentes, nem para iguais, pois falamos da legitimidade das diferenças regularem as suas próprias vidas. “Eu pago impostos (dever), mas quero educar (direito) os meus filhos como bem acho que eles devem ser educados”.


Numa altura em que a Europa analisa a questão do direito ao esquecimento na Internet, não nos esqueçamos que foi a “democracia ocidental”, “a chama da civilização”, “o capitalismo europeu” que esteve na origem de grande parte dos tipos de racismo que conhecemos. Não nos esqueçamos também que o progresso da civilização passa, necessariamente, pela abolição de toda e qualquer forma de preconceito. Antes de se achar sujeito a determinada cultura, nacionalidade, etnia ou religião, o homem é um ser cósmico, um cidadão do universo e, acima de tudo, perante a lei da reencarnação, a superioridade que certos grupos étnicos atribuem a si torna-se insustentável e até ridícula. A ideia de que o homem possa encarnar como branco, negro, mulato ou índio, estabelece uma ruptura com o preconceito e a discriminação raciais e políticas. Tanto que até hoje, na Inglaterra, muitos adeptos do Neo-espiritualismo rejeitam a tese da reencarnação, por não admitirem a possibilidade de terem tido encarnações em posições inferiores quanto à raça e à condição social.


Lembremos ainda que, nos Estados Unidos, foi preciso uma guerra civil para acabar com o esclavagismo. Até à década de 60, o país mais rico e poderoso da Terra, que sempre se arvorou em campeão da democracia, praticava a segregação racial. A maioria branca impunha humilhantes restrições aos negros, que não podiam frequentar as mesmas escolas, sanitários públicos, clubes ou hospitais. Na África do Sul, em pleno continente africano, uma minoria de origem europeia sustentou, durante décadas, a separação radical, relegando os donos da casa a posições de subalternidade. No Brasil, não obstante a índole fraterna de nosso povo, durante mais de três séculos muitos achavam natural a existência de homens transformados em animais de carga.


Aproveitemos, pois, este movimento do pêndulo da História para subverter a produção de ausências em que o ocidente tem sido prolífico para transformar essas ausências em objectos presentes, tornando visível o que foi obscurecido pela sociedade (e ignorância) dominante. Já não existem realidades únicas e exclusivas e, no jogo de conhecer e ser conhecido, já não deve haver lugar para relações de dependência, pois a vida que se deseja é a que “decorre da liberdade consciente, capaz de enfrentar obstáculos e dificuldades que se apresentam no relacionamento humano e na própria individualidade”(1); é essa a meta que a consciência almeja e, na inexistência do que seja local ou global, é nessa escala que tudo se joga e para onde interessa olhar. Ouçamos, portanto, as vozes do deserto(2), porque são também as nossas vozes.


Filipa M. Ribeiro


(Jornalista e investigadora)


(1) In Franco, Divaldo. O Homem Integral (1990).


(2) Referência ao livro Vozes do deserto, de Nélida Piñon.







4.07.2011

Contos Tradicionais Asiáticos

Colecção de Contos e Novelas, nº 22


Selecção e tradução de Silvina de Troya Gomes


Prefácio de Celestino Gomes


Editorial “GLEBA”, Lda. Lisboa






Mais ou menos por meados do século passado – a coisa tem que ser datada assim, pois a impressão não era numerada nem datada naquele tempo, a contar pelo usual na lisboeta Rua de S. Lazaro onde se estabelecia a SEVERO-FREITAS-MEGA, que lhe estampou a mancha – apareceu nos escaparates este belíssimo exemplar de pequenas narrativas, a que vulgarmente chamamos contos, que não posso, por uma questão de ética, deixar de apresentar aqui. Não o faço porém à solta, porquanto aquilo que de melhor poderia dizer acerca, já foi dito, e vem no prefácio, de autoria de Celestino Gomes, que transcrevo na íntegra, para inveja dos críticos atuais.

E só por isso, calino!


PREFÁCIO


Toda a obra de arte, expressão direta e espontânea da natureza humana no que ela tem de mais humano e mais primitivo, precedendo quase o próprio pensamento, tem de aparecer "como resumo dum drama literalmente shakespeariano onde as fatalidades dos princípios complementares se combinam sem conseguirem separar-se um do outro, pondo a tragédia de viver nesta contradição que todos trazemos connosco, condenados todos a arrastar a crueldade no mais terno dos nossos gestos, e a fazer nascer a morte no leito do amor (1)". Mas a rosa do Sol, que a todos cobre por igual, nem para todos é mãe, nem para todos madrasta. Por isso, no planalto de Anahuac onde a malária e a febre amarela crescem nos campos coalhados de sáurios, e na doce paisagem do Mediterrâneo de céus azuis e pomos de oiro, os olhos dos homens não podem ver igual a vida, e a arte dos Aztecas ser igual à da Hélade. As diferenças sentimentais entre os homens começam talvez no mito bíblico dos irmãos Caim e Abel, filhos da mesma mãe, por ventura só porque um era pastor de ovelhas e outro lavrava a terra, labores tão parecidos e tão, por demais, diferentes!


Povos da China, da Mongólia e da Tartária, da Arábia, Pérsia e Índia dos nossos títulos Senhores de Aquém e Além-mar, por onde nossos avós andaram vadiando, amando e sofrendo, ficaram, a despeito de logo por eles diferençados nos recados com que suas mãos escreveram o que os olhos viram, para nós apenas como exóticos e maravilhosos seres quase desumanos. Ora nada mais compreensível do que a arte, e de todas as artes a literária, mais compreensível do que todas, destes estranhos povos que os portugueses ensinaram ao mundo. Por muito que suas línguas ficassem confundidas na barafunda de Babel, que as suas culturas e os seus sonhos os separassem na confusão híbrida de suas raças, o fundo humano é o mesmo, apenas modelado pela face da terra que lhes calhou por sorte.


Os contos tradicionais das literaturas islâmicas – árabe, iraniana, turca – podem considerar-se amplamente representados pelas Alf Leilah oua leilah a que tanto o historiador árabe, do século IX, Abul-Hassan Ali-el-Massudi(2) como Mohamed bem Is'hak Al-Nadim(3), no século X, atribuem à influência persa da coleção Hazar Afsanah; e a sua formação como obra de arte, posterior, por via da tradição oral dos contistas ambulantes, à elaboração popular, lenta e inconsciente, do folclore islamita.


Cópias e recópias de escribas anónimos, mais cultos ou menos cultos mas cada um preferindo o pitoresco de seu dialeto familiar, deram-lhes um estilo em que intervêm todas as formas do árabe. Os documentos escritos mais antigos são do século X, e daí até ao século XVI, resultando o colorido desse próprio método vivo do relato direto, como na nossa História Trágico-Marítima.


Povo nenhum no mundo conseguiu criar mais variado caleidoscópio de imagens fantásticas, mais rico técnicolor de fantasia do que esta gente criadeira de "estranhos desfiles de califas, mendigos, carrascos, cortesãos, bandoleiros, santos, corcovados, zanagas e sultões, que atravessam os caminhos soalheiros entre trapos de mil cores, fazendo gestos inverosímeis(4)". O contista público, contínuo repetidor das histórias tradicionais da alma islâmica, tempera-as sempre de alegria, mímica, bom humor, ironia, para dar mais expressão à sua narrativa e provocar no auditório uma "geral embriaguez suscitada pelas palavras e ruídos imitativos, pelo fumo do tabaco que faz sonhar, pela essência afrodisíaca que parece flutuando no espaço, o sub-aroma discreto do haxixe que é o último regalo de Allah aos homens...(5)"


A literatura oral árabe, compreendendo os contos, as lendas e as poesias tantas vezes intercaladas naqueles e contando ainda nos primeiros os contos maravilhosos, alegres, eróticos e de animais, resume-se também frequentemente ao simples motivo anedótico cuja frase breve determina a comicidade com que pretende divertir o auditório. Nunca há maldade nem segunda intenção, apesar da escabrosidade das cenas e da nudez das palavras empregadas, porque o árabe “ignora totalmente esse produto odioso da senilidade espiritual: a intenção pornográfica (6), entrando francamente no campo do cómico sem invadir o do humorismo. Margoliouth afirma, por experiência própria, que “o gosto árabe parece ter preferido de grande modo a anedota, que amiúde consta de um par de frases, ou menos, e raramente chega a encher uma página. Coleções desta índole formam a rama da literatura a que se aplica especialmente o nome que corresponde a belas letras, e na vasta série de obras que têm este título trata-se constantemente da mesma matéria (7)”. Os personagens a quem sucedem as maravilhosas aventuras e as situações divertidas são populares em todo o Islão. Entre estes, por exemplo, Yehah, ou Si Yehah – o Sr. Yehah –, que alguns creem ter sido Sheik Nassareddin Yehah ou Nassareddin Affendi Yehah, é aquele a quem são atribuídas quase todas as anedotas do mundo islâmico, Índia, Pérsia, Arábia, Turquia, Egito e Marrocos. Pois esta, dizem os contadores árabes que sucedeu a Yehah:


Costumava a mãe de Yehah levantar-se quando, sobre o al-minar da mesquita, o muezzin chamava os crentes à primeira das cinco orações do dia – Feyer, Dohor, Aasar, Mogreb e Aachah –, e, como faltasse em casa com que se agasalharem e o filho dormisse embrulhado no jaike da mãe, tinha esta de destapá-lo para se vestir, e Yehah arrefecia. «Este maldito mudden», pensava ele, «é que tem a culpa. Tenho de me desfazer dele». E certa manhã, quando o muezzin subiu ao minarete, ele aí vai atrás dele, cortou-lhe a cabeça e apresentou-a à mãe, dizendo: «Pronto. Aqui está a cabeça do nosso despertador». «Agora é que eu vejo o teu poder» disse a mãe com mal contida admiração. Mas, pelo meio-dia, deram por falta do muezzin, catam por ele, sobem ao minarete e vão dar com o homem decapitado. Um disse: «Eu vi subir, esta manhãzinha, Yehah ao minarete. Se calhar foi ele que o matou». E foram todos de rostilhada a casa de Yehah. «Si Yehah, tu matas-te o mudden?» «Eu, não. Que mal é que ele me fez para eu o matar?» «Pois vamos revistar-te a casa». E foram. Remexeram tudo, sem deixar um argueiro por esquadrilhar. Nada. Já iam a ir-se com Allah quando alguém alvitrou que procurassem no poço.


Ora Yehah, que na verdade para ali deitara a cabeça, já a tinha trocado por uma de carneiro. Um dos improvisados investigadores desce ao poço, enquanto em cima, impaciente, esperava a fila circular dos filhos do infeliz meuzzin mais os vizinhos indignados. E o que encontrou, no fundo do poço, foi a cabeça de carneiro, mirou-a por todos os lados, algo desconfiado do achado, e acabou por perguntar lá de baixo, para a identificar: «Ó filhos do mudden! Olhem lá: o vosso pai tinha cornos?»


O espírito dos contos indostânicos é, pelo contrário, austero como a própria religião búdica de ascetas e mendigos. «Entre cipós floridos passam as belas amorosas, Draupadî, Çakuntalâ, Savitrî… Nos campos sangrentos combatem esses ferozes guerreiros cujos terríveis feitos nos surpreendem. Muitas vezes têm deuses por companheiros: Krishna não desdenha guiar o carro de Arjuna – e que nobres lições, que bem-aventuradas lições dá o deus ao guerreiro! Lá ainda, numa sombra misteriosa, aparecem esses puros ascetas que, pelo rigor, pela constância das suas austeridades, nos espantam. Eles já não têm sensações humanas. Para eles, já não há prazeres nem dores: vivem um sonho que jamais findará (8)».


É de tudo isto que são feitos os contos indianos: da calma augusta dos Iluminados que, em meio da selva pantanosa, traiçoeira, onde ronda o tigre e do fausto deslumbrante dos rajás, se contentam com “dominar os sentidos como um escudeiro domina um cavalo (9)”, ter uma túnica esfarrapada de monge mendicante e a sombra fiel duma árvore que não se afaste com o rodar do sol, como o senhor Sidharta Gautama, o mestre dos Çakias, que se chamou Buda.


“O motivo habitual da meditação dos hindus é o pouco caso que eles fazem da vida. Com paixões ardentes e fortes tendências para a sensualidade, este povo não se agarra à existência: por isso vemos que a exortação do desprezo pelas coisas da terra é um lugar-comum habitual na religião, na moral e na literatura da Índia, onde se repete constantemente que é insensato entregar-se cegamente à esperança, esse sopro que nunca nos deixa e nos conduz à morte divertindo-se constantemente connosco, como o tempo, kâlas kridati; é insensato dar-se ao desejo, essa ilusão que nos impele para bens derisórios e nos força ainda a correr à conquista impossível da felicidade quando já a cabeça nos tomba e o corpo dobrado dificilmente se segura ao bordão que treme em nossa mão (10)”.


“As origens da literatura indostânica devem procurar-se nos monumentos sânscritos, e principalmente na sua poesia épica e religiosa (11)” muito anterior à nossa era. Nos contos dos Mahayana Sutras e nas histórias do Mahavertu paira o mesmo espírito filosófico e moral que caracteriza o Sadharma Pundarika e o Lalita Vistara. São sempre apólogos morais.

Uma fábula de Hitópadêça para exemplo:


Um cisne procurava para comer, certa noite em que as estrelas, flores do canteiro do céu que os invernos não desfolham, se refletiam no lago translúcido, as flores brancas de kumuda que lhe pareciam as estrelas refletidas, e apenas bicou a água. Sucedeu, porém, que no dia seguinte desabrochou um belo sitôtpala no lago. Mas o cisne disse para consigo: Debalde tentarás enganar-me outra vez, à luz do dia, porque bem vejo que não és mais do que ilusão, miragem… A alma franca, uma vez enganada, jamais crê na franqueza (12).


Através dos 4 000 anos da História da China, milhares de contos tradicionais se perderam, porque, como é natural, só muito tarde foram alguns passados da tradição oral para a linguagem escrita.


Posto que assim antiquíssima, pode dizer-se, porém, que a literatura chinesa começa no IV século (13) antes de Cristo (a.C.) com os Tsés Kong-Fu, Ming, Lao, Li e Yang e os seus célebres textos clássicos. É sob o domínio dos mongóis e talvez sob a influência arábica que aparecem os primeiros escritores de contos e romances; mas, sobre o fundo sólido da educação e culto apaixonado da moral, sobre a cultura filosófica e religiosa – a China é um país de religiões: Confucionismo, Taoismo, Budismo; – mesmo na sua maneira mais pitoresca ou mais estranha, há sempre evidente um requintado espírito de lição dos seus contos tradicionais dispersos por numerosas colectâneas, como as Sing-Che Reng Yenn e Tsinn-Ku Tsri Koann, anónimas; ou reconstituídos pelo tradicionalismo literário inato a todos os letrados chineses de todos os tempos, desde os seiscentistas P’u Sung-ling e Pao-Wung Lao-jen, até aos contemporâneos Ch’u Ta-Kao.


Citemos um pequeno conto tradicional chinês:


Um tal Chao, vendedor de loiça barata de seu ofício, estava um dia, como de costume, sentado à porta da sua pobre olaria maldizendo a sua miserável sorte. Eis senão quando para à sua frente um velho viandante que era nem mais nem menos do que o próprio deus Fó. «Nhi sciuo ti hoá thé tuo – falas demais, disse o deus; que razões de queixa tens do teu destino?» «Ora, que razões tenho! Ser toda a minha vida um mísero vendedor de van é pouco? Os meus vizinhos Li-Chenn e Chuang-I, que são ricos, levam vida regalada com as suas mulheres, e os negócios correm-lhe prósperos. A mim mal me chega para comer. Sempre gostava de saber porque é que foram distribuídos assim os nossos destinos». Então levantou-se no ar um remoinho de vento, e Chao, o descontente, sentiu-se arrebatado nos ares e viu, cheio de terror, que sob os seus pés a terra rebolava como uma laranja. O remoinho colocou-os junto de um grande pórtico, para lá do qual se estendia, a perder de vista, um grande campo coberto por milhões de sacos cheios e atados, pousados de pé, ao lado uns dos outros. «Cada um destes fardos», disse então o deus, «é o fardo de um destino, mais ou menos pesado, consoante os merecimentos de cada qual. Já que não estás satisfeito com o teu, de boa vontade te concedo que escolhas um, a teu bel-prazer, entre todos. «Quero aquele!», exclamou Chao, apontando para o mais bonito e maior que se avistava. E correu a buscá-lo. Mas, quando foi para o carregar às costas, era tão pesado que isso lhe foi de todo impossível. «Pois haverá alguém que tenha de suportar toda a vida com tal carrego?», perguntou. «Esse é o destino do Imperador», informo-o o deus, «e pesa todo o infortúnio do seu povo». Chao escolheu outro, mas ainda pesava bastante. Eram os destinos de Li-Chennn e Chuang-I. Até que descobriu um saquitel, pequeno sim, mas de alegres cores, que devia ser levíssimo, pois não chegava a inclinar as débeis ervas sobre as quais assentava. Radiante, Chao pô-lo às costas, convicto de que, desta vez, encontrara o mais leve dos destinos. Perguntou para si próprio para quem poderia estar destinado aquele deleitoso fardo, quando o deus Fó, que lhe adivinhou o pensamento, lhe disse com o mais cândido dos sorrisos a iluminar-lhe a grande barba branca: «Escolheste bem, Chao, escolheste bem; porque já era esse mesmo o teu destino de vendedor de porcelana…»


Entrecruzam-se finalmente nos contos tradicionais japoneses o instinto religioso da Índia, sobretudo o espírito budista, a serena sabedoria china e a crueldade sorridente e fria do próprio Japão. A trágica austeridade dos contos índios, ao espírito voluptuosamente humano e requintado dos contos árabes e às histórias de fantasmas que vêm trazer aos homens as sentenças de bondade e de sabedoria, opõe-se a artificiosa beleza sempre estranhamente fechada do Japão, em cujo sangue pairam, adoçando-o de inteligência, todas as hereditariedades intelectuais dos filósofos chins.


“Será por causa da sua sentimentalidade de insulares ou em resultado dos longos séculos de isolamento”, diz o depoimento de insuspeito de Tagawa Daikichiró, “mas o que é fora de dúvida é que os japoneses se olham uns para os outros, e para os estrangeiros, como inimigos; e que eles constituem um grupo combativo. Nós demonstramos mais atividade em disputar do que em qualquer outra coisa. Nada me acode dizer contra este nosso espírito de competição. Mas isto acarreta uma certa impetuosidade que é perigosa. Somos um povo excitável e a nossa excitabilidade leva-nos, por vezes, longe demais (14)".


Poucas nações têm, como o Japão, tão bem compilados os seus elementos literários tradicionais. Só Hanawa Hokuchi (1746-1821), cego como o nosso Castilho desde tenra idade, publicou à sua parte 2 820 volumes coligindo antigos documentos literários.



Um pequeno conto tradicional que dá a psicologia do povo japonês:


Tendo-se ordenado que a execução do réu se fizesse no jardim do yashiki, foi este conduzido ao local e obrigado a ajoelhar num recinto cheio de areia e atravessado por uma grande fila de tobi-ishi, ou sejam, marcos divisórios de propriedades. Ataram-lhe os braços às costas, trouxeram vários baldes de água e sacos cheios de calhaus, e com isso entulharam o condenado de modo que lhe fosse impossível mexer-se. Mas, quando o senhor chegou e se deu por satisfeito com os preparativos, o homem começou a gritar: «Honorável senhor: eu não cometi por querer a falta pela qual fui condenado. A culpa é apenas da minha grande estupidez. Ora, como eu nasci estúpido por desígnio do meu Karma, não posso evitar de errar; e matar um homem por ser estúpido é um erro grave que deve ser reparado a tempo. E, tão certo como estou que me ides cortar a cabeça, assim creio que a minha morte será vingada. O ressentimento que provocais trará a vingança. E uma injustiça desencadeará outra injustiça, e um dano outro dano…»


O samurai sabia que, quando se mata alguém no momento em que este se acha possuído dum grande ressentimento, o espírito do justiçado pode facilmente vingar-se do matador. Mas, com muita gentileza e amabilidade, respondeu diplomaticamente: «Dou-te licença que me assustes à vontade. Depois te mataremos. Mas, para nos fazeres acreditar no que dizes, és capaz de nos provar o teu grande ressentimento, apenas te cortem a cabeça?» «Sou», respondeu o condenado. «Muito bem» disse o samurai. «Vou separar-te a cabeça do corpo. Ao pé de ti está um marco. Quando não tiveres a cabeça presa, experimenta morder na pedra, parta eu ver. E, se fores capaz disso, então talvez a gente fique aterrada» … «Pois morderei, morderei, morderei…» Houve um relâmpago, um silvo, um golpe seco, e a cabeça do sentenciado caiu sobre os sacos dos calhaus, rolou lentamente até ao marco e, de repente, deu um pulo e ferrou os dentes na pedra. Ninguém disse palavra, mas todos olhavam espantados para o samurai. Desde então, toda a gente, aterrorizada, esperava a vingança do morto, alguns atreveram-se a alvitrar um sègaki para aplacar aquela alma. Mas o samurai respondeu que era completamente desnecessário, pois o morto nada podia fazer, por uma questão simplicíssima: «Só é perigosa a última vontade de um moribundo; quando o desafiei a morder a pedra para me provar a sua cólera, desviei-o de toda e qualquer vingança, pois, como a sua última intenção foi morder a pedra, já não me pode fazer mais nada. E pronto.»


De modo que não foi o Rei-Édipo, nas areias de Tebas, entre as garras descomunais da mulher-leoa, que matava os maus decifradores de charadas, nem a gnose de Pitágoras de Samos, nem ao depois o racionalismo dos enciclopedistas, antes-pelo-contrário, quem descobriu o enigma do Homem que continua desconhecido, esse desconhecido. Como o mago Khayyam que exaltava a vida em beleza, contentemo-nos com o que em todos estes contos é belo, e perdoemos a todos os homens os seus defeitos. A vida é breve, e a sua filosofia pode guardar-se toda neste belo robai de Omar Ibn Ibrahim: Bahrâm ké gûr miguerefti bé kamand, Didi ké tchégune gûr Bahrâm guerefti? – Bahrâm, o que apanhava poldros a laço, vês tu como o túmulo apanhou Bahrâm?

CELESTINO GOMES


(1) Elle Faure

(2) A. H. A. Al-Massudi – Moruf Al Dahad Oua Djanhar.

(3) M. bem Is'hak Al-Nadim – Kitab Al Fihist.

(4) E. Gomez Carrillo

(5) J. C. Mardrus

(6) Idem

(7) D. S. Margoliouth

(8) Ferdinand Herold

(9) Leis de Manu

(10) L. Leupol – Selectae è sanscriticis scriptoribus pagine

(11) Consulte-se o prefácio de Contos Indianos na Coleção «Contos e novelas» das Ed. Gleba.

(12) Hitôpadêça – perde-se, na tradução, um saboroso duplo sentido: o do kumuda, que é um loto que abre durante a noite, e o do sitôpala, que apenas abre durante o dia.

(13) Consulte-se o prefácio dos Contos Chineses, na coleção «Contos e novelas» das Ed. Gleba. (14) Tagawa Daikichiró

4.03.2011


Porque parece que algumas ondas pseudo-feministas se estão a reavivar por aí, faço aqui a minha homenagem a uma das minhas "ídolas" de juventude. Agora já não tenho ídolos, mas companhias fiéis e inspiradoras. Virginia Woolf será sempre uma delas.












O mundo não mudou por causa dos seus livros, evidentemente; mas a minha (e a de muitos) visão do mundo alterou-se bastante, sobretudo com ORLANDO, RUMO AO FAROL, MRS. DALLOWAY, AS ONDAS ou ATÉ MESMO FLUSH, UMA BIOGRAFIA ou Um quarto que seja seu. O feminismo elegeu-a como uma das suas figuras fundamentais, mas o retrato não corresponde; ela não era feminista, era apenas um espírito independente; a sua frase famosa («uma mulher deve ter dinheiro e um quarto que seja seu») referia-se à disponibilidade para escrever. E Virginia Woolf escreveu muito e marcou a modernidade de antes da guerra, quer pela sua escrita (uma torrente incessante que contrasta com a sua "fragilidade"), quer pelo papel que desempenhou como influente intelectual nesses anos difíceis e turbulentos. Virgínia Woolf (1882-1941) morreu há exactamente 70 anos [28 de Março]. Atirou-se às águas do rio Ouse com pedras nos bolsos e passos determinados; o corpo só foi encontrado a 18 de Abril.


O texto que se segue é apenas uma pequena biografia que escrevi há 5 anos; mas quem quiser sentir aquele cheirinho leve que ela deixou na atmosfera cultural adjacente, então pode sempre ver o filme As Horas. E pronto, fica feita a minha homenagem. Porque lembrar nunca é demais.


Filipa Ribeiro


A mulher que decifrou para além do algodão


Amante da vida, suicidou-se aos 59 anos. Pintora do instante, a sua obra projectou-a para o lugar das referências universais. Odiando o seu corpo, filtrou estados de espírito e continua a existir (nos outros).


Ela foi uma mulher que viu além da sua varanda (da vida). Daí viu o horizonte, sendo simplesmente uma mulher, mas com a tal visão. Acima de tudo, ela conseguiu estar nessa varanda apesar de todas as vicissitudes por que passou, entre elas: os raros momentos de intimidade que teve com uma mãe adorada e que, mais tarde, com a morte desta, representou a primeira grande viragem na vida de Virgínia Woolf (V.W.); a falta de formação escolar enquanto criança (muito por ser mulher); a convivência próxima com as depressões do pai; os abusos sexuais por parte dos meios-irmãos; o peso da sociedade vitoriana em que cresceu; os sintomas de uma perturbação mental (psicose esquizofrénica, dizia-se no seu tempo); a morte de um seu irmão; os tormentos das duas Grande Guerras e, claro, a inquietude muito própria e vital para a actividade literária. Hermeneuta da vida, segundo escreve Werner Waldmann, um dos biógrafos da autora de As Ondas, “logo a partir dos primeiros textos sente-se a obstinada procura da escritora quanto a abranger por palavras o mundo que a rodeia e toda a sua profundidade: «toda a realidade», sem ignorar gradações e afastando-se dos clichés e dos métodos literários até então experimentados”. “V.W. não pretende fantasiar histórias, mas arrancar matéria ao caos das sensações interiores, à amálgama de vozes exteriores e interiores”. Como salienta Pierre Nordon, professor emérito de literatura na Sorbonne, em Paris, no artigo A estética do fragmento, publicado no dossier dedicado a V.W, em Le Magazine Littéraire de Dezembro de 2004, “a narrativa woolfiana remete-nos sempre para o universo da pintura”. “Uma das inovações mais marcantes de Virginia é a de, voluntariamente, ter transposto para a literatura a prática dos impressionistas”. Ou seja, toda a vida da escritora foi uma prova de esforço para si própria e para a sua linguagem.




Vida até ao casamento



Filha do segundo casamento de Leslie Stephen com Julia, V.W. nasceu a 25 de Janeiro de 1882. Leslie começou como pastor numa igreja, passando, mais tarde a desempenhar funções como jornalista, biógrafo e historiador. Tido como temperamental, ambicioso e de vivo intelecto, Leslie desde cedo proporcionou um ambiente de elevada intelectualidade na sua casa. Personalidades da cultura britânica de então eram visitas regulares para a família Stephen. Virgínia e a sua adorada irmã Vanessa não receberam qualquer formação escolar, mas antes uma educação própria para senhoras (equitação, canto, música, dança), como convinha à rígida época de costumes em que viviam.


Waldman documenta que ”enquanto criança, V.W. absorvia tudo o que conseguia ouvir, mas não só idiomas. Virgínia aprendeu a ver e sentir o que a rodeava, a apreender o lado visível das coisas e as oscilações invisíveis por detrás das mesmas, todo o espectro de emoções em cada momento da vida”. “Imitava a linguagem dos adultos. Cedo começou a escrever para si, no tom dos adultos, a escrita como imitação. Para ela era um treino, exercícios de dedos para mais tarde”.


Aos 13 anos teve a sua primeira grande crise depressiva por ocasião da morte inesperada e impossível de sua mãe, o que mudou o harmonioso ambiente familiar que, com esforço, existia até àquele acontecimento. Assistir ao profundo sofrimento de Leslie devido à morte da segunda mulher, foi, ao mesmo tempo penoso, revoltante e um ponto de fuga para as irmãs inseparáveis, Virgínia e Vanessa.


É também a partir dessa idade e até aos 21 anos que Virgínia passa a ser vítima de abusos sexuais por parte do meio-irmão George Duckworth, 16 anos mais velho que ela. “Ainda me recordo da sensação quando a mão dele se enfiava por baixo do meu vestido e avançava energicamente e cada vez mais para cima. Recordo-me de como ansiava que ele se apercebesse de como me contraía e desviava quando a sua mão se aproximava das minhas partes sexuais. Recordo-me de que isso me revoltava e repelia – qual é a palavra exacta para um sentimento tão asfixiante e confuso? Deve ter sido forte, pois ainda se conserva na memória”, escreveu no diário que manteve durante toda a sua vida. Mais tarde, Virgínia viria a dizer que Duckworth havia arruinado a sua vida antes mesmo de ter começado. Muito devido a isto, VW nunca viria a desenvolver gosto pelo seu corpo e, mais tarde, nunca se sentiu atraída sexualmente por nenhum homem. “A natureza dotara-o com um excesso de vitalidade animalesca, mas não se dera ao cuidado de inserir um bom cérebro como órgão controlador”, disse sobre o seu odiado meio-irmão.


Até à morte do pai, Virgínia sentiu-se sempre acabrunhada pelo peso da sociedade vitoriana de que Leslie era um poderoso representante, revelando uma personalidade, segundo afirmam diversos críticos e biógrafos da escritora, introvertida, muito sensível, vulnerável, ansiosa, tímida e cheia de complexos de inferioridade. No entanto, o desmoronamento do cenário ideal de família que culminou com a morte de Leslie, em 1904, agravou as manifestações de perturbação psíquica que viriam a ensombrar toda a vida da romancista. Por exemplo, numa carta a Violet Dickinson, comentava que “se houvesse um Deus louvá-lo-ia por me ter liberto da infelicidade dos últimos seis meses [ouvia vozes, tinha pesadelos, nevralgias, enxaquecas]. Não podes imaginar como saboreio agora alegremente cada minuto da minha vida. Só peço que consiga chegar aos 70 anos (…) O desgosto pela morte de meu pai, como agora o sinto, contém algo de apaziguador e torna a vida, ainda que mais triste, igualmente mais valiosa”.


Bloomsburry


Foi no nº 46 de Gordon Square, Londres, que tudo começou para o Grupo Bloomsburry. Já motivada pelas discussões filosóficas que mantinha durante as refeições com o irmão Adrian, onde atiravam cubos de manteiga um ao outro, assim como pela vontade de estar à altura dos amigos do seu culto irmão Thoby e seus amigos, Bloomsburry – o espaço de tertúlias – constituiu uma grande alegria e um enorme estímulo para V.W. Além disso, tornou-se “atraente para uma certa camada social, para os intelectuais, artistas, escritores, jornalistas, pintores, estudantes, numa palavra para os boémios. Cultivava-se o liberalismo, sem grandes discursos a esse respeito”, nas palavras de Waldmann.


Mais uma vez, os seus complexos de inferioridade e o medo de ser ignorante, aguçaram-lhe o espírito para a leitura, sobretudo quando os restantes membros do grupo incitaram a grande silenciosa de Bloomsburry a ter um papel mais activo nas discussões que o grupo promovia.


Por outro lado, como escreveu Hermione Lee, a mais conceituada biógrafa de V.W., num artigo publicado no The Guardian, em Fevereiro de 2003, a autora de Orlando, passou a ser “conhecida por ser uma conversadora brilhante e divertida que arrancava gargalhadas aos amigos” e isto não como forma de provocar a hegemonia masculina da altura, mas mais como forma de dizer que também ela seria capaz, que estava ali. Outros há que associam a esta sua faceta mais social uma manifestação do que hoje se designaria por doença bipolar.


“A presença de Woolf era marcada pela magreza, a bela estrutura óssea, a fragilidade, os olhos, a voz, a mistura de angulosidade e de estranheza”, elucida ainda a investigadora.


O incondicional Leonard


Virgínia foi, apesar de tudo, uma mulher afortunada, por exemplo, quando a vida lhe ofereceu Leonard Woolf, o homem com quem viria a casar em 1912. Mais à frente neste artigo e até na sua última nota de suicídio, ela mostrará o porquê. Ora, foi também entre a intensa actividade cultural que acontecia no grupo Bloomsburry que Virgínia conheceu Leonard – o homem que estava sempre a tremer –, antes deste partir de viagem para o Ceilão. “Fiquei, como é óbvio, profundamente fascinada por este selvático, trémulo e misantropo judeu, que já erguera o punho contra a civilização”, escreveu ela no seu diário sobre o futuro marido. Para aceitar casar-se, muito contribuiu o facto de recear ser marginalizada pela sociedade que a rodeava, bem como se preocupar, como revelou em cartas enviadas à sua irmã Vanessa, em 1911, por aos 29 anos se considerar “uma falhada”, porque não era casada, nem escritora, nem tinha filhos. Afinal, também Virgínia queria partilhar o quotidiano com um companheiro, mesmo que as suas tendências sexuais pendessem para as mulheres, facto que atribuiu quer ao domínio que a figura materna teve em si até aos 40 anos, quer ao facto de saber a sua recusa de tudo o que se interligasse ao seu corpo. Ao mesmo tempo, receava e desejava o amor, os filhos, a aventura, a intimidade e o trabalho próprios do que é um casamento.


Desde a sua união com Leonard, como refere Waldmann, Virgínia não passou por anos fáceis: “a prolongada e sempre recrudescente doença, a constante ameaça de mergulhar por completo no abismo da loucura; a decepção de que problemas indissolúveis pesavam sobre o seu casamento: a falta de filhos, as dificuldades no âmbito sexual; o modesto êxito ideal e material do seu trabalho de escritora; a guerra; amizades que haviam chegado ao fim, o pálido reflexo de Bloomsbury”. Sobre a vida particular de V.W, o biógrafo escreveu: “Virgínia podia confiar em Leonard, que a aceitara tal como ela era. O amor de ambos, se é que assim lhe pode chamar, assentava em bases sólidas, jamais questionáveis. “Estou deitada e penso no meu querido monstro que torna cada dia da minha vida mais feliz do que alguma vez julgara possível. Estou sem dúvida terrivelmente apaixonada por ti. Penso sem cessar no bem que me fazes e tenho de parar – desperta-me logo o desejo de te beijar”.


Viver da e na escrita


A editora que o casal Woolf montou foi uma das maiores aventuras que ambos viveram. V.W. era a responsável editorial da familiar Hogarth Press, enquanto Leonard administrava toda a envolvência do negócio com uma competência e cabeça fria notáveis. T. S. Elliot, Tolstoi, Gorki, Tchekov, Doitoievski, Ítalo Svevo, Rainer Maria Rilke, Gertrude Stein, Vita Sackville-West, H. G. Wells, Freud (V.W. mostrou-se várias vezes céptica em relação às ideias do pai da psicanálise) são apenas alguns dos nomes que fizeram parte do catálogo da editora dos Woolf. Mas o negócio do casal também ficou conhecido por recusar Sartre e, sobretudo, por ter negado a publicação de James Joyce.


Esquizofrenia ou processo criativo?


V.W era uma mulher que vivia no seu tempo e de acordo com a ideia que dela faziam, mas nunca permitiu que isso a manietasse. Sujeitou-se a todas as pressões e impulsionou-as para dentro de si. Deprimiu-se.


Se era ou não esquizofrénica e se isso se retratava na sua escrita é ainda hoje motivo de longas dissertações entre os estudiosos. No entanto, a efabulação e as toxinas que a obrigavam a tomar por causa da tal psicose, proporcionaram-lhe um mundo onde só ela habitava. Era quase como que autista, como muitos escritores e artistas são por necessidade, mas, na verdade, V.W. intercalava alturas de grande excitação, lucidez, criatividade com outras de depressão, isolamentos, medo de não conseguir fazer mais nada. Também por essa razão, escrever um romance causava-lhe, ao mesmo tempo, prazer e terror.


Outra explicação é dada por Diane de Margerie, romancista e autora de um prefácio a uma edição de Orlando, que outorga a V.W. uma “identidade retalhada”, isto é, “à vez nostálgica, deprimida, inquieta, vital, irónica, feroz, mundana, atraente, solitária, concentrada, desconcentrada”. “Ela não poderia viver senão num instante de cada vez”, remata a também ensaísta.


Note-se, por curiosidade, que como explicou Waldmann, após receber a resposta positiva do editor do seu primeiro livro “A Viagem”, V.W. padeceu de profundas depressões e de alucinações devido ao receio da reacção do público ao seu livro. Estas crises repetiram-se sempre que terminava um romance.


Uma das suas obras mais conhecidas – Mrs. Dalloway – que teve como primeiro título As Horas, representou um verdadeiro tormento para V.W. “A concepção é tão estranha e misteriosa”, dizia, referindo-se a “uma luta dos diabos”, e de que ficaria completamente esgotada durante o tempo em que o escreveria, receando acordar novamente o que chamava de loucura. “A parte sobre a loucura põe-me tanto à prova”, clamava Virgínia. As dúvidas constantes assolavam-lhe o espírito: “Terei o poder de transmitir a verdadeira realidade? Ou escrevo apenas ensaios sobre mim própria? Responda o que responder…a minha agitação permanecerá sempre”. Apesar disto, era a escrever que V. W. sentia a força vibrante do seu ser. Penetrar no inconsciente detalhado das personagens, registar a fluidez complexa do quotidiano, confrontar as terríveis associações de que se constitui a vida humana são características claras de uma nova forma de narrativa que V.W. protagonizou e de que Mrs Dalloway é exemplo. “A obra de Woolf é a pragmatização de uma frutuosa pesquisa sobre a arte do romance, da qual resultou uma forma elástica, servida pela representação descarnada da consciência e por um ritmo cada vez mais interiorizado, demanda que consumiu e espelhou a sua vida” (Jornal de Letras, de 5 de Março de 2003). “Qual a fronteira entre o real e a ilusão?”, perguntava ela no livro Um quarto que seja seu.


As Ondas, o outro vértice do triângulo primordial da obra de V.W. (Mrs. Dalloway, As Ondas e Orlando), foi escrito no limiar de mais uma crise depressiva de V.W. Depois de o ter acabado, a autora desabafou assim: “Escrevi as últimas palavras há um quarto de hora – depois de ter desbobinado as últimas dez páginas com tal intensidade que ainda me parece estar a seguir, vacilante o eco da minha própria voz ou antes o eco da voz de alguém (como se estivesse louca) …. Seja como for, está feito e há quinze minutos que estou num estado de êxtase e calma; também chorei um pouco…Como é física a sensação do triunfo e do alívio!” O marido classificou o seu livro como uma obra-prima, o melhor dos seus livros.


Paradoxo humano


V.W., em Rumo ao Farol, apresenta uma visão segundo a qual “cada homem e mulher é uma criatura isolada e cada um deles requer e procura alguma comunicação legítima com os outros em particular e com o mundo em geral”, diz Kenneth Tighe num artigo crítico ao supracitado romance, “Arte e ateísmo em Rumo ao Farol”. Segundo o ensaísta, o isolamento individual das personagens naquele romance é sustentado pela ausência de Deus. Ou seja, sem a presença de Deus como apoio ao humano, cabe ao indivíduo atribuir ordem, significado, sentido de unidade no (seu) universo intrinsecamente caótico. Sendo assim, “para a Sra. Woolf, no romance Rumo ao Farol, a arte é a ponte que se eleva sobre a anarquia do ateísmo”, apesar de o homem e a mulher serem sempre criadores imperfeitos e falíveis. Por outro lado, é perfeitamente visível que V.W. queria um mundo onde a mulher e a diferença fosse reconhecida. Ela desenha esse mundo em Orlando. E é curioso verificar, por exemplo, que o anagrama de Orlando [Leandro] é o paradigma da obra de Lídia Jorge, escritora portuguesa, O Vento assobiando nas Gruas.


V.W. era maçónica (das lojas regulares) e debateu-se toda a vida com o estatuto de menoridade que era atribuído à mulher, inclusivamente depois de ter tido algum êxito com as suas obras. A isso se deve também o facto de se ter imbricado nas teorias humanistas da diferença. Também as suas constantes depressões que a assolaram terão derivado muito dessa dicotomia entre o mundo dos homens e das mulheres que era tão gritante para alguém que apenas queria ser vista como ser humano. Por isso e muito mais, ela tentou, com a vida e com a sua literatura, desvendar a profundidade da alma humana, o que a aproximou de autores como Rainer Maria Rilke, apesar de ambos terem tido trajectos distintos.


Morte no rio


“Tu, sobre quem cavalgo, diz-me que inimigo vemos agora avançar contra nós, neste momento em que golpeias a calçada com os teus cascos? É a Morte. A Morte é o nosso inimigo. É contra a morte que cavalgo de lança em riste e os cabelos flutuando ao vento, como os de um jovem, como os de Percival quando galopava na Índia. Cravo a esporas nos flancos do meu cavalo. Invencível e indómito é contra ti que combato, oh Morte!”, escreveu Virgínia em As Ondas.


Diane de Margerie considera que os vários acontecimentos que implicaram um sofrimento profundo em V.W. resultaram na fragmentação da identidade da escritora, apesar dela sentir uma “intensa nostalgia de uma unidade impossível de alcançar (excepto na morte)”. E é daqui que vem a resposta à frase que serviu de título ao filme de Mike Nichols e a uma peça de teatro de Edward Albee, “Quem tem medo de Virgínia Woolf?”. O mesmo é dizer quem tem medo da morte, quem tem medo do que é a vida, quem tem medo de exceder (-se) nas convenções estabelecidas. Ou seja, a morte é a mais alta forma de dignificar e valorizar a vida, porque é a mistura entre o infinito e a liberdade absoluta. O recurso à morte terá sido, para Virgínia, uma forma de se manter viva. Porque importa não esquecer que Virgínia, sendo uma espécie de morta-viva, sempre amou a vida e os outros.


Como morreu?


V. W. dizia que o oceano lhe ensinava mais sobre a natureza humana do que as próprias pessoas, mas escolheu um rio como leito da sua morte. “Woolf afogou-se num frio dia de Março num perigoso e horrível rio que corre tão rápido que nada cresce nas suas margens. Vestia um velho casaco de pele, botas e um chapéu. Se saltou, entrou ou lutou, não sabemos”, informa Hermione Lee. Com os bolsos cheios de pedras, V.W. terá tido a sua resposta, depois de ter decifrado para além do algodão (=além da realidade da natureza humana): “A morte era um desafio. A morte era uma tentativa de união ante a impossibilidade de alcançar esse centro que nos escapa; o que nos é próximo afasta-se; todo o entusiasmo desaparece; fica-se completamente só...Havia um enlace, um abraço, na morte?”. [Mrs. Dalloway, Livros do Brasil, edição de 1992].


“Mrs. Dalloway mudou a minha existência”


Michael Cunningham, que recebeu o Prémio Pulitzer, pelo romance As Horas, partiu para essa aventura de dar um renascimento à obra de V.W., quando tinha apenas 16 anos, depois de ler Mrs Dalloway. “Este livro foi realmente o primeiro a causar uma impressão real em mim, foi o primeiro a mostrar-me tudo o que se pode fazer com um pouco de tinta e de papel. Nunca mais li frases com tanta densidade, complexidade, musicalidade e beleza. Mrs Dalloway mudou a minha existência, ao revelar-me a literatura”, comentou numa entrevista concedida à ”Le magazine littéraire, edição de Dezembro de 2004. O resultado deste encanto materializou-se em 1996 quando começou a escrever As Horas. Virgínia Woolf: a irmã de Shakespeare que triunfou Um dia foi impedida de entrar numa Biblioteca Pública de Londres por não possuir uma carta do seu marido, autorizando-a para tal. E um dia, em 1929, publica Um quarto que seja seu, cuja ideia principal assenta no facto de as mulheres terem sido sempre subjugadas não devido à sua natureza, mas como resultado de algumas “tristes” circunstâncias económicas e sociais. No entanto, como é referido no livro Mulheres nas Letras, Mulheres dos livros, “aparentemente, ela desfrutava das condições que considerava essenciais para uma mulher se afirmar como escritora, advogadas no seu ensaio Um quarto que seja seu, dispor de espaço físico e psicológico e de dinheiro suficiente para se bastar a si própria”. A propósito disto, inventou uma irmã para Shakespeare que, por ser mulher, nunca poderia ser escritora.

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

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Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

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